...continuação
A cidade de Minas Novas foi construída sobre crista
ascendente de uma colina. De baixo para cima, com o eixo principal a rua, ora
larga, ora estreita, evoluía da parte mais antiga e tranquila à parte mais nova
e movimentada. Ao longo desse eixo sinuoso se dispunham quatro igrejas
seculares, misturadas às demais construções. Todas as igrejas se posicionavam
de frente para a parte baixa, a entrada original da cidade. As ruas e becos
transversais despencavam abaixo, rumo aos vales dos dois rios que cercavam a
zona urbana.
Na parte mais antiga concentravam-se os casarões do século
XVIII, a maioria em péssimo estado de conservação, abandonados, à espera de
verbas para a restauração, verbas muitas vezes aprovadas, mas não liberadas.
Revoltante assistir ao definhamento, ruínas e desabamentos parciais das
construções, em especial aquela ao lado da pousada, cujos cômodos dos fundos já
tinham virado escombros no quintal.
Entre as igrejas de São Gonçalo e São José, originalmente
erguido para ser sede do governo mineiro, o sobrado do século XVIII de quatro
andares, todo de madeira e pau-a-pique, abrigava a Casa da Cultura, escola de
música, museu, secretaria de cultura, lojas de artesanato do vale do
Jequitinhonha. O Sobradão, como era popularmente chamado, estava comprometido
em inúmeros pontos, nos pisos de madeira apodrecendo, tetos despencando,
paredes ruindo. Em todos os pavimentos se notava a inclinação do edifício.
Verbas foram liberadas para restauração emergencial do edifício, mas nada do
cheiro do dinheiro até então.
O museu da Casa da Cultura concentrava obras de artesanato
típico do vale do Jequitinhonha, sobretudo esculturas, miniaturas, arte
figurativa em barro e cerâmica, crua ou pintada, retratando cenas religiosas,
do cotidiano rural das localidades de Caraí e Itinga. Além da arte figurativa,
objetos antigos ocupavam outras bancadas e registravam os quase trezentos anos
de Minas Novas.
Caminhei à parte alta da cidade, completamente sem
atrativos, cujas características principais eram as oficinas mecânicas, lojas
de autopeças, postos de gasolina. Entrei em restaurante com comida servida em
bufê, mas, como passava do horário mineiro, a comida praticamente acabara.
Raspei as panelas sem matar a fome.
Entrei no casarão ainda em pé do outro lado da pousada,
herdado pelo solitário senhor aposentado. Subi as escadas, empurrei a pesada
porta meio aberta. Dei boa-tarde três vezes e ninguém respondeu. Mesmo assim
segui em frente e circulei pelos aposentos, tentando provocar o mínimo de ruído
possível. Cruzei a sala de jantar, a cozinha, um dos três quartos, a sacada
alta, tudo em madeira sobre piso irregular, frágil, rangendo sempre, com
falhas, depressões. A mobília, as paredes, portas, janelas, no entanto, davam
aulas de história. Poucos e pesados móveis se dispunham em grandes espaços. No
quarto, apenas a cama de casal com armação de ferro, o armário, o baú de couro
grosso. Na cozinha, o fogão à lenha, a bancada de pedra e o armário velho. A
sacada dos fundos, estreita e florida, alta, muito alta, sustentada por hastes
finas de madeira, piso também de madeira, remendado por folhas de alumínio,
podia despencar lá embaixo, tamanha a fragilidade. Dei meia volta e desci as
escadas, receoso de acordar o nobre morador. No térreo do casarão, onde se
instalava agência de ecoturismo, o dono me contou histórias do vale do
Jequitinhonha.
Os boruns, moradores originais da região, rebeldes
e guerreiros, usavam botoque nos lábios inferiores. E, por não se submeteram
aos invasores portugueses, foram sumariamente exterminados.
Explicou que a cidade de Araçuaí fora fundada no povoado
de Itira, a partir do núcleo de casas de prostituição, que saciavam os
canoeiros dos vales do Araçuaí e Jequitinhonha, então os únicos caminhos para o
mar. Luciana Teixeira, uma famosa puta, reinava absoluta na zona de Itira. Mas
o padre resolveu acabar com a festa e expulsar as meninas, obrigando-as a subir
o Araçuaí e a se fixarem em outro ponto, ao redor do qual se ergueram novos
puteiros, casas, construções, o futuro núcleo urbano de Araçuaí.
Ele ainda descreveu a invejável aventura de canoa em
expedição fluvial desde o rio Araçuaí, a foz em Itira, o rio Jequitinhonha
abaixo, até o mar em Belmonte, em companhia de fotógrafo, ajudantes, canoeiros
locais. A travessia buscava resgatar a história e denunciar a crescente
degradação socioambiental do vale. Perda de volume das águas dos rios,
desmatamento das margens e cabeceiras, assoreamento, poluição, contaminação,
monoculturas de eucalipto, o chamado deserto verde, catástrofes que agravaram a
miséria e pobreza das populações ribeirinhas. Apresentou resultados e imagens
da expedição em palestras, mas jamais publicou em livros ou na internet.
Mereceria repercussão e divulgação maiores, à altura da importância da pesquisa
realizada.
Caminhões e demais veículos pesados não deveriam cruzar
Minas Novas, mesmo que apenas de passagem. A trepidação afetava as já frágeis
edificações. Ainda mais no caso de patrimônio histórico e arquitetônico pedindo
socorro pela falta de conservação. Pois bem. O anel viário já existia, inclusive
com a ponte de concreto sobre o rio Fanado. As estradas, em cada lado dessa
estrutura, também. Mas não construíram a ligação das estradas com ambas as
pontas da ponte. A ponte ligava, até então, o hiato de um lado com o hiato do
outro lado. Bastariam poucos metros de conexão nas duas extremidades da ponte e
o anel viário se tornaria disponível. Havia mais de dois anos que a situação
permanecia assim, humilhando os moradores de Minas Novas e região. E nenhuma
providência à vista. Os mineiros suportavam o segundo mandato da aliança entre
tucanos do PSDB e demos do DEM, tendo a frente o governador com cara de
mocinho. O mesmo que perseguia os pobres e trabalhadores na base da violência
física, enquanto fazia vista grossa aos desmandos dos ricaços e respectivos
capangas que oprimiam e assassinavam trabalhadores rurais.
Tornava-se um prazeroso ritual minha subida do centro
antigo à parte nova da cidade e vice-versa, passando pelas mesmas quatro
igrejas, até chegar na Gruta, ao redor da qual havia a praça de encontros, o
maior número de barracas de lanches, sorveterias, bares simples.
A chuva ameaçou pela manhã, mas não caiu nem uma gota.
Enrolei no salão do café, junto a outros hóspedes, a fim de assistir à final do
torneio de futebol interclubes. O jogo não empolgava, dava sono. Desisti
definitivamente quando um jogador brasileiro, garoto propaganda do
fundamentalismo evangélico, o tal que alega que casou virgem, comemorou o gol
exibindo a camiseta de baixo com frases da indústria da religião. E ainda dedicou
o feito ao casal preso no exterior e chefe da empresa comercial que se
enriquecia à custa da ignorância dos fiéis.
Parti rumo à antiga cachoeira das Almas, agora barragem e
ponto de encontro dos minasnovenses. Circulei antes de me instalar no bar tocado
por casal de meia idade. Raros fregueses passavam por ali, conversavam, bebiam,
petiscavam, logo iam embora. Pedi cachaça purinha. Ao comentar a sensação de
tijolo no estômago, ele me prescreveu cachaça curtida nas folhas de boldo.
Enquanto me deliciava com doses generosas da
cachaça artesanal, não envelhecida, a purinha, a branquinha, curtida nas folhas
de boldo, amargo para mais da conta, rolaram conversas com os fregueses, entre
eles uma senhora cujo pai mereceria história à parte. Ele fora artista nato,
criativo, improvisador, batuqueiro nos reisados. Muitas pessoas não o
compreendiam e o consideravam anormal. Mesmo nas cenas corriqueiras da vida
cotidiana, ele soltava versos de própria autoria, simples e rimados. Certa vez,
matou um boi e convidou a família e amigos para o banquete. Entregava cada
parte do boi a alguém cujo nome rimava com o nome da referida carne. Ela puxou
da memória e recitou parte desses versos do pai. Todos ali ouviram atentamente
e se encantaram. E a senhora herdara os dotes artísticos do pai, criando artes
em cerâmica e barro. Ainda informalmente, ainda timidamente, receando se
manifestar publicamente, para não a associarem com a suposta insanidade do pai.
A roda proporcionou conversas sobre a diminuição do
volume das águas dos rios, o assoreamento, os desmatamentos das cabeceiras e
das matas ciliares, construções questionáveis de mais hidrelétricas,
deslocamento forçado das populações tradicionais, descaminhos e rumos do vale
do Jequitinhonha. Questionaram fundações e ONG’s estrangeiras atuando na
região, as quais se recusavam a esclarecer os reais propósitos de atuação.
Talvez as respostas estivessem na proliferação pela região das monoculturas de
eucalipto, o famigerado deserto verde.
Depois de horas no papo solto e das pingas curtidas
no boldo, a fome, finalmente, deu sinal de vida. E veio voraz. Imediatamente
pedi meia galinha caipira com arroz. Demorou uma eternidade, mas valeu a pena
esperar. E assim que as tigelas foram dispostas, não vi mais nada ao redor,
mergulhando de cabeça naquela maravilha da culinária brasileira. Não parei até
esvaziar as travessas. Nem a asa da galinha eu perdoei. A porção saciaria a
fome de um batalhão. Me senti nas nuvens. Nem notei que o bêbado da mesa ao
lado começou a roubar os ossos com fiapos que eu deixara no prato.
Mais tarde, vez ou outra, aparecia um energúmeno
ali perto, abria o porta-malas do carro e vomitava, em volume desumano, o som
do lixo descartável. As vinhetas repetitivas avisavam o que e de quem era
aquilo que evacuava das caixas de som. Dezenas de vezes, a gravação do homem
com voz grave, ou da criança com voz estridente, martelava bem alto no meio das
“músicas”:
“DJ Vudu e DJ Kilessi! Aqui quem manda é nóis!
Copiou Zé Ruela?”.
Entrei no quarto do hotel à noite, sedento, com a barriga
inchada, mas em estado de graça pelos momentos ao lado de gente tão acolhedora.
Depois do banho, e ainda estufado de tanto comer, com a sede insolúvel, subi a
crista da cidade e fui à praça da Gruta, aonde todo mundo. Casais, amigos,
famílias, mil paqueras, mas, claro, proibido para maiores de 18 anos. A maioria
se concentrava atrás da Gruta, em bar e sorveteria sob o palanque de concreto.
O DVD da banda Calipso retinha os olhares de alguns frequentadores das mesas,
enquanto consumiam garrafas de dois litros de refrigerante. Ao redor,
circulavam pessoas, outras se sentavam nos degraus da arquibancada da praça ou
nas barracas de lanches. Minas Novas se encontrava na noite quente, sem
preocupações com horário, segurança ou o consumismo alienante das grandes
cidades.
Arrumei a mochila, me despedi de todos, fui
aguardar o ônibus na pequena estação rodoviária de Minas Novas. O veículo
partiu à tarde com meia lotação, mas completou nas cidades seguintes.
Nem bem saímos de Minas Novas e os cartazes de uma
empresa privada cantavam louros à monocultura de eucalipto, cujas plantações se
perdiam de vista no horizonte, em ambos os lados da rodovia. A cidade de
Turmalina, a capital daquele criminoso agronegócio, moderna e sem graça, exibia
dezenas de lojas de autopeças, oficinas mecânicas, material de construção,
fornos de queimar eucalipto, imensos pátios armazenando tocos de árvore.
A estrada seguiu e mais monocultura de eucalipto em
ambas as margens do asfalto. Deserto verde deprimente. Não era à toa que muitos
olhos d’água e córregos secaram, rios assorearam, a fauna e a flora
desapareceram. Tudo graças a empresas privadas, fundações, ONG’s, às demais
empresas estranhas à região. E daí a enorme pressão pela construção de mais
hidrelétricas nos arredores.
Após a feia, suja e apertada cidade de Capelinha,
por onde o ônibus mal conseguia trafegar e fazer as conversões, a monocultura
de eucalipto dividia espaço com cafezais nas encostas das colinas. À medida que
a sinuosa estrada descia para sul, as áreas cultivadas diminuíam, o vale
acidentado e profundo se acentuava, erguiam-se morros altos, o cerrado perdia
espaço para a mata atlântica. A rodovia virava caminho de rato, o ônibus
balançava para ambos os lados. Era praticamente impossível adormecer. Não havia
mais de cem metros planos de reta, mas somente aclives e declives intensos,
curvas fechadas, tudo compensado pelo visual cortado por riachos encachoeirados
e ocupado por casinhas esparsas. De Capelinha a Itabira, cidadezinhas e vilas,
como Água Boa, Santa Maria do Suaçuí, José Raydan, Guanhães.
Novamente a irritante, demorada e desnecessária
parada em Belo Horizonte, como de praxe na monopolizadora empresa Gontijo.
O ônibus entrou na rodoviária do Tietê, em São
Paulo, no fim de dezembro. Eu já sentia saudades do vale do Jequitinhonha, certo
que voltaria à região para maiores explorações.
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