quarta-feira, 15 de setembro de 2010

do Mato Grosso à Bahia, via Amazônia (parte 3/7)

...continuação
Os demais da expedição finalmente chegaram. A chuva torrencial desabou durante a refeição coletiva. O ruído no teto metálico da casa impedia a audição de qualquer conversa. Repentinamente começou e, uma hora depois, repentinamente parou. O ar ficou mais fresco e a caminhada menos desgastante. Mergulhamos os corpos até o pescoço nas águas do rio por horas e horas, jogando conversa fora. Voltamos para a arrumação das mochilas e os últimos preparativos para a partida da manhã seguinte rumo ao Pico da Neblina.
Saímos a bordo da carroceria da caminhonete, onde se ajeitou, lado a lado, toda a bagagem, motor do barco, comida para doze dias e mais sete pessoas. Outros integrantes foram na cabine junto com o motorista. Desembarcamos horas depois e subimos em barco de madeira com mais combustível.
A rota fluvial, entre sol e chuva, iniciou descendo igarapés até o rio Cauaburi, onde acampamos no posto da FUNAI, responsável por 1.200 indígenas, separados em 38 etnias, distribuídos em várias aldeias, como os Yanomami e os Tukano. O posto contava com eletricidade de gerador próprio, rádio transmissor, antena parabólica e a onipresente televisão para auxiliar no embrutecimento cultural.
Composto de arroz, linguiça calabresa e farinha, o jantar queimou no estômago. Pelo menos água para beber não seria problema para matar a sede insaciável. Choveu fraco durante toda noite, mas o calor interno da barraca me ensopou de suor. Usei a mochila como travesseiro e, apesar da histeria do galo e do cachorro, consegui dormir.
No café da manhã, os alimentos desidratados trazidos de Belo Horizonte, como vitaminas de frutas e mingau, eram simplesmente horríveis. Quase vomitei ao tentar forçá-los goela abaixo. Mas não havia opções.
No segundo dia, mais de oito horas de barco subindo o rio Cauaburi, sentados em ripas de madeira, diante de trajeto espetacular, com a floresta exibindo todo o esplendor. A estreiteza do rio colaborava para o contato mais estreito com a natureza. Diversas aves sobrevoavam o rio e os igarapés de coloração escura. O morador de aldeia Yanomami nos acenou da margem. Estava com forte inflamação no olho e nos pediu medicamentos. Fornecemos, orientamos, conversamos. Depois de muitos agradecimentos, nos despedimos para seguir viagem rio acima. Parada para lanche em ponto usado por pescadores e lotado de mosquitos famintos por sangue novo. Na parte da tarde surgiram, acima da copa das árvores, as primeiras montanhas ao norte.

Dormimos em clareira na barranca do rio onde havia cabanas de palha abandonadas. Estava infestado de formigas, pulgas e bicho do pé, além de muita sujeira. Não havia igarapé por perto e a única solução foi se abastecer com a água barrenta do rio.
Ainda percorremos longo trecho de barco antes do início da trilha. Fomos abordados outra vez pelos Yanomami. Desta vez nos alcançaram de barco. Reclamaram por não pararmos na aldeia, nem para cumprimentar, nem para avisar para onde íamos. Não havia o que contestar. Estávamos na terra deles.
Atingimos o igarapé onde começamos a segunda etapa da expedição, somente por trilha. O relevo ainda era plano, o calor intenso, o suor escorria aos montes. Cruzamos igarapés de águas límpidas e frescas, nos reconfortando parcialmente. As extensas e úmidas raízes das árvores deixavam o piso escorregadio. Centenas de formigas vermelhas se acumulavam nas enormes folhas. Balançadas pelos passantes, pulavam nos seguintes. Atacavam na nuca, braços, cabeça, mãos, irritadas por terem sido perturbadas. O corpo parecia pegar fogo. Prazer com a beleza natural e atenção redobrada eram sentimentos sempre presentes.
Depois de montadas as barracas, o banho refrescante no igarapé ao lado, o jeito foi encarar o jantar à base de macarrão passado com molho de tomate em conserva. Ao lado das barracas havia área coberta de lona para armar redes. Dois garimpeiros e um Yanomami balançavam nas redes quando chegamos. Pelo menos até ali era mais aconselhável dormir em redes. Mais fresco, mais leve, mais prático.
Outro terrível café da manhã. Fomos obrigados a enfiar goela abaixo o lixo desidratado. Com todos esses quitutes a nossa disposição, soava cínica a recomendação do famigerado guia mineiro para nos alimentarmos bem em função do dia puxado que teríamos.
Na trilha cruzamos com mais Yanomami. Vestindo calção e camiseta, trabalhavam como carregadores de rancho para garimpeiros. Indígenas nas próprias terras carregando alimentos para garimpeiros. E dentro do parque nacional. Havia algo errado ou eu estaria divagando?
Enfrentamos várias horas de subida, alternada com trechos planos, até o segundo acampamento. A floresta estava fechada e sem ventilação. O calor castigava. Por absoluta falta de planejamento da chefia da expedição, os carregadores com a comida ficaram para trás e percorremos todo o trajeto sem comer. Depois de muita lama, cansaço e fome, chegamos ao acampamento tremendo de fraqueza. Alguém abriu o pacote de biscoitos de chocolate e atacamos como animais. A desorganização se resolveria facilmente se o grupo pudesse participar, sugerir, criticar. Mas o autoritarismo do tal guia se mostrava cada dia mais desastroso. Cinquenta metros abaixo do nosso ponto de pernoite havia igarapé com pequena queda d’água. As águas frias não impediram de mergulhar de roupa e tudo naquele calor. Lavei o que deu para lavar, subi ao acampamento e montei a barraca.

Mais um dia bastante longo e pesado. Subidas íngremes exigiram esforço físico exagerado. Todo o grupo, exceto o doce guia mineiro, reclamava de fraqueza e fome, derivados da pouca e fraca alimentação. Muitos passaram mal e o cinegrafista, especialmente convidado para o registro da viagem, sentiu tonturas e náuseas. À medida que subíamos no relevo o clima se alterava. A vegetação se tornava de menor porte e surgiam muitas bromélias. O vento, antes quase inexistente, agora refrescava, ou até esfriava. A neblina cobria parcialmente a paisagem. Ainda nos defrontamos, antes do campo base, com extenso atoleiro. Por mais que se tentássemos evitá-lo, nos agarrando e nos equilibrando por sobre as bromélias, afundávamos até os joelhos na lama.
A área do campo base do Pico da Neblina, a dois mil metros de altitude, estava bastante deteriorada. O igarapé corria em meio a muito cascalho oriundo dos garimpos. Algumas barracas de lona azul, utilizadas pelos garimpeiros, ainda estavam armadas. Embora o ouro fosse escasso e a área ser unidade de conservação, eles insistiam em permanecer no local. Além de picaretas, marretas e bateias, utilizavam explosivos e o mercúrio, contaminando os cursos d’água.
Depois de montar a barraca aproveitei para me lavar e tentar remover a lama das botas e meias. A água estava gelada, mas revigorava os ânimos. O guia local, de São Gabriel da Cachoeira, não se entendia com o guia de Belo Horizonte. Insistia em afirmar que houve vetos a compra de determinados alimentos para não encarecer a expedição. O sargentão mineiro negava. Os demais duvidavam de ambos. Enquanto isso o grupo sofria e se prejudicava.
Despertar ainda no escuro e o costumeiro café da manhã ralo para o tão esperado ataque ao topo do Pico da Neblina, nos altos da serra do Imeri.
Exagerando na voz solene, o sargentão mineiro nos censurou por transformarmos pequenos problemas em grandes problemas. Mas recusou-se a comentar o péssimo planejamento da expedição e o próprio autoritarismo centralizador. Nenhuma novidade vinda do milico frustrado. Como ninguém pretendia estragar ainda mais o ambiente, começamos logo a caminhar.
Depois do aperitivo do dia anterior, foram horas e horas transpondo o infindável atoleiro com pedras e raízes submersas. A subida começou ainda com lama, mas depois se tornou rochosa e mais íngreme. Usamos as mãos em poucos trechos e, em dois deles, cordas de segurança. As rochas aderiam, mesmo com a umidade, e as raízes das plantas, sempre presentes, ajudavam na sustentação. Os frequentes fios de água que desciam as encostas refrescavam e matavam a sede.
Paramos, forramos o bucho e os ânimos se elevaram.
Perto do meio-dia atingimos o ponto culminante do Brasil, o Pico da Neblina, na altitude, até então, de 3014m. O topo consistia do pequeno patamar, cercado por rochas com inúmeras placas contendo os nomes das equipes, datas e pessoas que o conquistaram. A maioria era de militares brasileiros. No topo da rocha mais alta, a bandeira do Brasil amarrada ao mastro. Dentro da caixa plástica, o pequeno caderno recebia as anotações dos visitantes, os depoimentos, registro da chegada, reflexões. A vegetação era rasteira e de pequeno porte, muitas delas cobertas por gotículas de água, sobre as quais a luz produzia efeito intenso e brilhante. O tempo, nublado e coberto de neblina, fazia jus ao nome. Nada se via abaixo ou mesmo a poucos metros de distância.

Foi grande a emoção da chegada e da conquista. Abraços, gritos, muitas fotos individuais e em grupo, registraram o momento único. Abrimos a lata de cocada para a celebração. A filmadora do cinegrafista enguiçou e foram necessárias quatro pessoas a abraçarem para gerar calor e afastar a umidade.
Permanecemos no cume o tempo suficiente. Ainda estava prevista a conquista do pico denominado, com o perdão da palavra, 31 de Março. Um dos carregadores, sem casaco para o frio e chuva, avisou que voltaria ao campo base. Certamente iríamos chegar tarde da noite no acampamento. E as lanternas não ajudariam muito. A extensão até o outro pico provocaria horas desgastantes a mais de caminhada. E para apreciar somente a densa neblina. Eu e o carregador decidimos voltar, mesmo diante das ameaças e chantagens emocionais do sargentão de Belo Horizonte.
Iniciamos cuidadosamente a descida. As pedras escorregavam e os dois trechos com cordas de segurança exigiram mais cuidado que na subida. Logo atingimos a extensão dos atoleiros. Parecia não ter fim. As raízes e pontas de pedra batiam nos joelhos e canelas. Atingimos o acampamento no final da tarde, esgotados e famintos.
Me lavei no igarapé. Tirei a lama das roupas, meias e botas. Depois de vestir roupas secas, me dirigi à barraca do garimpeiro, sede da nossa cozinha. Maranhense, muito simpático, falante e morando sozinho no campo base, o garimpeiro afirmou que a retirada de ouro era irregular e incerta. Abrimos a garrafa de conhaque para esquentar e relaxar. Matada a fome com a refeição bem servida, energias repostas, mais minutos do bom papo e o sono bateu em cheio. Deixei as boas companhias e entrei na barraca.
O restante do grupo só chegou no meio da noite.
Dia de preguiça e descanso. Muitos aproveitaram para levar e tentar secar as roupas. Pequena fogueira foi acesa para defumar as meias e tentar espantar a umidade.
Os diversos pontos de exploração de ouro dos arredores consistiam de pequenas clareiras, buracos profundos, igarapés desviados, rochas perfuradas ou estilhaçadas por explosivos, deixando o local desolado e triste. Os poucos garimpeiros que ali permaneciam ainda caçavam para se alimentar. O garimpo estava dentro dos limites do parque nacional do Pico da Neblina, unidade de conservação administrada pelo IBAMA. As reservas indígenas são administradas pela FUNAI. O exército, por ser região de fronteira internacional, também se fazia presente. E esses três órgãos públicos federais toleravam abertamente a manutenção do garimpo.
O dia seguinte foi de levantar acampamento e descer a serra. Antes da partida, as nuvens se dissiparam e o tempo abriu ligeiramente. A serra do Imeri e o pico da Neblina se exibiram, imponentes, acima da vegetação. Depois de transpormos os atoleiros, entramos para valer na íngreme, longa e extenuante descida. A presença de lama, pedras e raízes molhadas tornavam o percurso mais delicado, compensado, porém, pelo tempo aberto e ensolarado que possibilitou avistar as planícies da floresta abaixo. A noite caiu agradável e fria. O luar prateado, que brilhava por entre as árvores, iluminava o acampamento e nem precisamos acender as lanternas.
No outro dia chegamos cedo ao ponto do acampamento, em tempo para aproveitar o refrescante igarapé ao lado. Mergulhei, nadei, relaxei. O calor ajudou a secar as roupas, meias e botas. Aparecendo somente abaixo de novecentos metros de altitude, os mosquitos não davam folga. Fora da água, para evitar o excesso de repelente na pele, me cobria com roupas compridas.

Vez ou outra passavam grupos de Yanomami carregando provisões para o garimpo em mochilas de palha entrelaçada. Nem eles se acostumavam com os mosquitos, espantando-os a todo instante das costas e braços. Decidiram pernoitar no mesmo acampamento. Parte do nosso grupo removeu as redes armadas justamente no pedaço mais protegido, liberando espaço para os verdadeiros habitantes do território. Nós éramos os visitantes e não os Yanomami. Nos pediram faca emprestada para limpar na beira do igarapé o macaco guariba caçado. Tiraram os pelos e o couro. Colocavam a caça limpa e preparada em grande panela sobre o fogo. Depois de nos oferecerem, comeram com gosto.    
Último de dia de caminhada. Reduzi bastante o ritmo a fim de melhor aproveitar os últimos momentos daquela exuberância. Nem retirei as roupas. Mergulhei na água refrescante e me larguei na leve e gostosa correnteza. As águas tinham baixado e precisamos empurrar o barco até o ponto mais profundo. Estendi as roupas, meias e botas na proa do barco para secarem. Descia o rio Cauaburi conosco um casal de garimpeiros cuja mulher adoentada buscaria assistência médica.
Subimos o igarapé Maturacá, de águas escuras e calmas, até a aldeia Yanomami. Fomos recebidos por uma antropóloga antipática, pertencente a uma ONG, depois de conseguir a autorização de entrada por rádio. Em parceria com a ONG, a missão salesiana cristianizava compulsoriamente a população indígena da aldeia, retirando as crianças das famílias para jogá-las em internatos religiosos. Nas malocas ao longe, se ouviam sons de rituais e danças. Cadeias montanhosas da serra do Padre se avistavam mais ao fundo. Ouvimos que certa empresa de turismo canadense trazia os turistas na aldeia com a promessa de exibir-lhes os povos mais primitivos do planeta. Além do impacto negativo sobre a cultura local, nenhum centavo dos quatro mil dólares cobrados de cada turista estrangeiro chegava à população das aldeias.
continua...

2 comentários:

  1. Tomar banho num rio de roupa e tudo é uma coisa bem boa pra se fazer.
    Acho que de certa forma, parece ajudar lavar a alma e aliviar as lembranças pesadas.
    Aquelas que você conta sobre as misérias, a prostituição infantil, desigualdade social, poluição, conflitos... E outras situações com que nos deparamos sejam onde for. Causam em mim a sensação de inutilidade e incapacidade que me constrange socialmente e emocionalmente. Mesmo que por vezes temos a vontade de ficar alheio a tudo isso e ter olhos somente para as coisas boas, na pratica não funciona. Deveria existir um pensamento comum, eliminando quaisquer formas de descriminação e segregação. Primar por uma sociedade aberta e acessível a todos os grupos, que encoraje a participação e aprecie a diversidade e as experiências humanas.
    Ianomâmis trabalhando como carregadores em suas próprias terras assola meu coração.
    Mas, podemos fazer a nossa parte com certeza. Exemplo é como você tem feito Escrevendo e relatando coisas assim em seu blog “viajante sustentável” Faz toda a diferença para quem lê.

    Mas voltando àquelas coisas que me deixam encantada, achei linda a foto do “Profeta” e mais lindo ainda é a coragem e a garra do motorista do profeta, e sua luta diária.
    Viajante, mesmo com todo desconforto, eu me arriscaria de barco também. Só para sentir a floresta bem de perto. Poder olhar ...
    E eu também fiquei bastante emocionada com o relato da emoção do grupo na chegada ao Pico da Neblina. Ainda mais por ter sido tão desgastante e difícil. Foi lindo ler. Obrigada !
    E pra não perder o habito, e porque combina demais...

    “Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser. Que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver”
    Amyr Klink

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  2. Essa reflexão do Amyr Klink resume bem o que pensamos.
    Não viajar ou viajar alienadamente em nada contribui para nós ou para quem é visitado.
    Podemos e devemos influir nas nossas origens e destinos, sempre respeitando a autodeterminação de cada um, claro.
    Jamais dissocio me divertir de aprender, relaxar de analisar, respeitar de opinar, me descontrair de refletir e questionar.
    Mais um comentário espetacular da Lorena. Obrigadão de verdade!
    Abraços e comente sempre.

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