sexta-feira, 21 de setembro de 2018

do Juruá ao Tapajós (via Transamazônica) (parte 5/7)

...continuação
Cidade de garimpeiros e indígenas da etnia Munduruku, Jacareacanga tinha tudo de vila provisória. Feia, desmantelada, desorganizada, suja, com construções inacabadas, ou caindo aos pedaços, em ruínas, muitas de madeira podre, no centro urbano. Funcionando na prática como escala temporária de pessoas de fora, garimpeiros e indígenas, as administrações públicas pouco se lixavam para os moradores permanentes. O próprio prédio da prefeitura exibia aspecto desolador. E ainda havia os piuns para atacarem sem dó, em qualquer parte da cidade.
Num dos muitos braços do rio Tapajós, cujo leito principal corria a mais de dois quilômetros da cidade, voadeiras se amontoavam ao lado do barro arenoso. Em terra, botecos, puteiros, bares, tudo barra-pesada, de estilo bem garimpeiro, do jeito que eles gostam. E lá estavam eles, embriagados logo pela manhã, agarrados ou não a mulheres, maiores e menores de idade, elas também caindo aos pedaços. Ambiente e cenas mais autênticas e emblemáticas, impossível. Pelas demais ruas da cidade, revestidas de asfalto, lajotas de cerâmica ou areia, inúmeros grupos de Munduruku, perambulando pelo comércio, nas unidades de saúde, nos centros de assistência social e médica, específicos para eles, mas em construções podres, imundas, escuras. Os responsáveis por tal situação, todos brancos, mais destratavam e humilhavam os legítimos donos de todas aquelas terras do que prestavam os serviços previstos na Constituição do Brasil. Tais desserviços só se agravavam com o regime que assaltou o governo federal através do golpe de Estado de 2016.
Estabelecimentos comerciais especializados atendiam garimpeiros, comprando ouro. Dentro, balanças, peças e assistência técnica, sem falar na segurança triplamente reforçada. Pelas ruas também se viam lojas de joias fabricadas localmente.
Desde que o rio Tapajós corria longe da zona urbana, e inacessível a pé pelos vários braços alagados durante as cheias, Jacareacanga não apresentava nada de atraente, sob qualquer aspecto. Permanecer ali somente pelo motivo de descansar, comer e dormir bem, se recuperar dos dois longos trechos anteriores pela rodovia Transamazônica, e se preparar para o terceiro daí uns dias.
À noite comi em local coberto, mas sem paredes e naturalmente ventilado, em frente ao rascunho de praça de lazer dotada de quiosques de lanches, espetinhos, sorvetes. Noutra esquina, bar de sinuca genuinamente frequentado por garimpeiros, putas, indígenas desfigurados, em ambiente também aberto. Mais bares de bebuns e com música em volume alto conviviam democraticamente com locais familiares e ingênuos.
Aquelas cenas lembraram as noites de Oiapoque, cidade do norte do Amapá, mais populosa, mais agitada e muito mais perigosa. Lá também havia grande concentração de garimpeiros e putas, então em trânsito para a Guiana Francesa e o Suriname.
Comi o café da manhã na mesa da cozinha do hotel junto à proprietária, e um casal jovem, ele garimpeiro e calado, ela submissa e calada. Falante, sessentona, separada, a dona era boa companhia e tocava com capricho e asseio o hotel básico.
Circulei pelas periferias de Jacareacanga, silenciosas naquela manhã de domingo. Moradias de alvenaria e madeira. Ruas não pavimentadas. A floresta muito perto. De volta ao centro, permaneci um tempão sentado na arquibancada de madeira do campo de futebol municipal, sem muros, aberto, vazio, ventilado, quieto, ideal para relaxar e refletir.
Almocei galinha caipira mais os acompanhamentos de praxe em restaurante ajeitado, limpo e arejado, sem as paredes laterais e a frontal. Em outra mesa, três clientes. Uma trintona cheinha, um indígena ou descendente próximo, um homem corpulento, moreno claro, cabelos pretos, lisos e com franjinha. O grandalhão vestia camiseta regata, pulseira de ouro, correntinha de ouro no pescoço e mais um pingente feito de várias peças de ouro em formatos variados, com dimensões ao redor de cinco centímetros cada uma delas. Todos os ouros polidos e resplandecentes à luz diurna. Exibia expressão sisuda, de poucos amigos. O grupo, sobretudo o agigantado, atuava direta ou indiretamente nos garimpos da região do alto Tapajós.
Os passageiros apareceram em cima da hora e o micro partiu no meio da manhã. Sentei na primeira fileira, de cara à paisagem da estrada. Ao meu lado sentou jovem com filha de cerca de três anos, provavelmente caso e filha de garimpeiro da região. A criança não parava quieta e a mãe, de expressão e movimentos abobados, não dava conta. A todo instante eu tinha que empurrar a pequena que se derretia sobre meus ombros. Aos poucos fui perdendo a paciência e passei a empurrar ambas para o outro lado, com gestos cada vez menos delicados.
Dos três trechos percorridos da Transamazônica naquela viagem, desde Humaitá, aqueles últimos quatrocentos quilômetros apresentavam melhores condições de tráfego. Porém, como os demais, raríssimos veículos nos dois sentidos. O leito da estrada estava mais marcado, os trilhos sinuosos dos pneus se avistavam ao longe. Havia estirões mais largos, alguns terraplanados recentemente. Até placas de sinalização apareciam de quando em vez. Longe do paraíso para os veículos transitarem, aquele intervalo da Transamazônica, praticamente paralelo ao rio Tapajós, era o mais bem conservado desde o rio Madeira. No entanto, surpreendentemente, foi nesse pedaço paraense, entre Jacareacanga e Itaituba, que a floresta amazônica mais se fez presente nas beiras da rodovia, inclusive nos momentos em que se alargava ligeiramente. Árvores de pequeno, médio e grande porte praticamente tocavam no micro ônibus. Em certas partes os galhos das árvores das margens se encontravam acima, formando impressionantes túneis de coloração verde-escuro. Avistei aves diversas, macaquinhos, jabutis, cruzando a pista. Os olhos e a alma agradeciam tamanho impacto visual da exuberante Amazônia.
A maioria dos passageiros do micro, assim como os das esparsas caminhonetes cabine-dupla que passavam voando em ambos os sentidos, era de pessoas ligadas às atividades do garimpo de ouro. Durante as paradas de embarque e desembarque as conversas giravam invariavelmente sobre as centenas de garimpos espalhados pelo alto Tapajós. Eles atuavam, atuaram ou iriam atuar num daqueles pontos no curto prazo. Elas, enrabichadas ou não com alguém, salvo exceções isoladas, trabalhariam como cozinheiras ou putas.
Parada para almoçar no isolado restaurante na beira da estrada. Assim que desembarcaram os passageiros foram atacados impiedosamente por nuvens de piuns famintos por sangue novo. Insuportável. Apelei para o repelente guardado estrategicamente no fundo da mochila de ataque e apliquei nos braços e mãos, descobertos então. E emprestei o frasco aos colegas próximos. Amenizou parcialmente a fúria dos insetos.
Mais adiante da Transamazônica, na parada denominada Sol Nascente, o micro parou para desembarque de um casal jovem. Ali era ponto de partida para inúmeras áreas de garimpo na região. E o mais impressionante, aquela clareira repentina no meio da floresta amazônica abrigava vários aviões monomotores, todos estacionados na beira da estrada, ao lado de galpões e oficinas. Visão apocalíptica e preocupante.
Seguindo em frente na rodovia, menos de uma hora depois, o motorista recolheu moço que caminhava pela borda da estrada carregando mochila pequena às costas. Assim que entrou passou a contar a própria história recente, ao motorista e a quem mais quisesse ouvir. Atacado de malária, o coitado abandonara o emprego em determinado garimpo, embora a patroa o obrigasse a trabalhar mesmo tiritando de febre. Recebera 2,3 gramas de ouro por duas semanas de trabalho, mas ia procurar e reivindicar os direitos trabalhistas contra a opressão da tal patroa. Descrevia os infortúnios de maneira emocionada e com os olhos vidrados, pelo cansaço, sede, fome, pela febre da malária. Desembarcou em outro ponto base de garimpo de ouro.
Poucos quilômetros à frente, a sudeste da rodovia Transamazônica, enorme barranco era derrubado por retroescavadeira. O material desagregado era recolhido e lavado logo ao lado. Mais um garimpo ilegal de ouro, só aguardando a interdição pelos órgãos policiais e consequente destruição dos equipamentos, ação semelhante à ocorrida no rio Madeira tempos antes e que incitou a reação explosiva e incendiária por parte dos garimpeiros.
O micro ônibus rodou mais meia hora e entancou no meio de outra pista de pouso na margem da Transamazônica, com aviões, oficinas, dormitórios, galpões, tudo novo e recém-pintado de branco e azul. Era a base do cearense que, segundo depoimento dos passageiros, chegou na região anos antes como vendedor de redes para dormir de porta em porta e, em pouco tempo, se tornou um dos reis do garimpo do alto Tapajós.
Eu mais ouvia do que falava com os demais passageiros. E aprendia muito. O mercúrio ainda era usado indiscriminadamente nos garimpos de ouro a fim de lavar o metal, conforme ressaltaram os colegas. Garantiam que não havia outro jeito para o ouro fino. Somente para o ouro grosso outros métodos, sem mercúrio, se adequavam à lavagem. Afirmaram ainda que a maioria dos afluentes, e o próprio Tapajós, apresentavam contaminações significativas de mercúrio. A deficiência nas espinhas e costelas dos peixes, tornando-as frágeis e quebradiças, além de sintomas leves e graves em humanos, dentro e fora das áreas de garimpo, eram o sinal amarelo, ou mais precisamente o sinal vermelho, diante da calamidade socioambiental.
Porém, exceto essas clareiras mencionadas, repentinas e ilegais, que alertavam sobre a situação social desesperadora de parte da população brasileira, a floresta parecia preservada e imponente aos olhos dos passageiros. O rio Tapajós corria ao sul da Transamazônica, paralelo e não muito distante, podendo ser avistado de relance em trechos mais altos da estrada.
A Transamazônica passou a percorrer área do parque nacional da Amazônia. Se a floresta e a natureza encantavam antes, ali no meio do parque nacional ainda mais, impressionando e deslumbrando até os que por ali trefegavam regularmente.
No começo da noite, onze horas e quase quatrocentos quilômetros depois de deixar Jacareacanga, o micro entrou nas ruas escuras de Itaituba.
A pequena janela do quarto do hotel permitia vislumbrar parte do rio Tapajós e da margem oposta, onde se erguia a vila de Miritituba.
Itaituba cresceu em quinze anos, desse minha visita anterior. Ganhou ares de cidade grande, com trânsito, semáforos, ruas comerciais de intenso movimento, gente com pressa. A orla do Tapajós foi reurbanizada do ponto da balsa até pouco além do terminal hidroviário. Quiosques, bancos, áreas livres, se perfilavam. Tipos físicos bem diversos pelas ruas, inclusive grupos indígenas. O Tapajós se encontrava cheio, largo, caudaloso, batendo no paredão da orla.
Uma após a outra, balsas transportavam veículos leves e pesados, pedestres, motos e bicicletas, à margem direita do rio, à cidadezinha de Miritituba. Motoristas de micro ônibus gritavam os destinos para eventuais novos passageiros, emitindo os bilhetes ali mesmo sobre a balsa. Mais à frente da cidadezinha, para o leste, prosseguia a rodovia Transamazônica, no rumo das infames cidades de Altamira, na margem do Xingu, e Marabá, na margem do Tocantins, entre outros aglomerados urbanos, bucólicos e deveras seguros para o gênero humano. Ao percorrer aqueles trechos vários anos antes, me deparara com o descalabro social, cultural e ambiental. Jamais pretendia repetir tal façanha da qual sobrevivera milagrosamente.
Pouco ou nada para observar em Miritituba. Bares, agências de transportes, filas de veículos para a balsa, poeira, poluição sonora, gente trançando para lá e para cá. Embarquei na primeira balsa e retornei a Itaituba.
Almocei bem e acompanhado do inseparável copo de suco de cupuaçu. E emendei com tigela de açaí fresco, de lamber os beiços, em estabelecimento típico localizado em rua transversal.
Razoável movimento na orla urbanizada do Tapajós na noite de terça-feira. Na balaustrada da beira do rio, pescadores de linha tentavam algum brinde fluvial. Nas barracas de tacacá, de sanduíches, de pasteis, de comes e bebes em geral, a mídia burguesa idiotizava pelos televisores a plateia que deitava os olhares bovinos na tela luminosa. Cenas deprimentes. Mas alguém lhes oferecia outras formas acessíveis de informação, formação, lazer? Realidade nua e crua. E ainda tem gente que culpa o povo pelas escolhas!
Jantei peixe ensopado de frente ao vaivém suave dos itaitubenses. Andei de leve, para cá e para lá, sob o céu escandalosamente estrelado.
Pela manhã andei pela orla do Tapajós no sentido sul, bem depois da igreja Matriz. Ruas calmas, casas simples ao lado de mansões de mau gosto, muitas destas obstruindo a passagem para a margem do Tapajós. De qualquer forma, refúgio bucólico em trecho não urbanizado da orla de Itaituba.
A simpática orla urbanizada, na margem esquerda do Tapajós, mostrava o orgulho que Itaituba tinha do rio que a banha, não lhe dando as costas conforme outras cidades amazônicas desgraçadamente faziam. Sempre havia alguém correndo ou caminhando para se exercitar. Em cidade com muita imigração, rostos e corpos dos mais variados. As filhas da própria terra ganhavam em beleza, simpatia, sensualidade, se comparadas com as desajeitadas e branquelas sulistas.
continua...

2 comentários:

  1. Olá, Augusto,

    Parabéns pelo seu trabalho. É muito bom saber que existe um blog de viagens com esse perfil.

    Convido você e seus leitores a conhecerem o meu, que é mais voltado para as questões históricas e culturais. Creio que 'Viajante sustentável' e 'Lugares de memória' são trabalhos complementares.

    Vou deixar o link aqui para que você e seus leitores possam acessar. Grande abraço!

    https://www.lugaresdememoria.com.br

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  2. Oi Sylvia!
    Obrigado pela visita e pelos comentários.
    Vamos sim trocar informações e divulgar nossos trabalhos.
    Comente sempre.
    Abraços!

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