terça-feira, 7 de junho de 2016

Guatemala e Honduras (parte 2/6)

...continuação
Em carroceria de caminhonete, meio de transporte muito comum no país, cruzei toda a vila de Santiago Atitlán, passando acima de dezenas de lavadeiras esfregando e estendendo roupas sobre pedras na beira das águas.
Desci para conhecer local de culto sincrético entre o cristianismo e as tradições da cultura maia-quiché, em torno da divindade chamada Maximón. Nos fundos de casa simples, com muito lixo na entrada e no acesso à precária construção, uma estátua ou figura humana masculina coberta de oferendas e panos, ao lado da imagem do Cristo morto. Na penumbra apenas iluminada por velas esparsas ou filetes de luz natural, os fieis ofereciam dinheiro, tabaco, álcool, orando para pedir sorte, felicidade, cura de doenças, isso e aquilo.
A caminhonete me deixou nas imediações do mercado central. Mais autêntico que o de Chichicastenango, e também ao ar livre, voltado para a população local, o mercado de Santiago Atitlán vendia produtos espalhados principalmente sobre tecidos estendidos no chão. Perambulei pelas estreitas e lotadas vias entre as centenas de barracas, comidas sobre esteiras no meio das ruas e becos, lojinhas nas calçadas.
Novamente a lancha para cruzar as águas do lago Atitlán, no sentido da cidade de Panajachel. Depois, as já familiares estradas pelas montanhas que rodeiam o lago Atitlán. Passou novamente por Sololá e o trevo de Los Encuentros, de onde pegou a rodovia pan-americana, via com tráfego intenso de automóveis, ônibus, caminhões.
Parada para almoçar em restaurante de beira de estrada. Nenhum turista, apenas guatemaltecos em trânsito. Fui de pimentão recheado, arroz com legumes, salada mista e, é claro, não poderia faltar, tortillas, muitas tortillas, para dar sustância. E ainda acrescentei torta de frutas variadas.
E mais rodovia pan-americana antes do ramal rumo à cidadezinha de San Andrés Xecul, em cujo centro se erguia igreja pitoresca e destino de peregrinações. A construção, pesada como todas as de herança do barroco espanhol, comportava frente pintada de amarelo vivo e chamativo, repleta de imagens de santos católicos e divindades maias, expondo, novamente, o sincretismo religioso tão comum na América. Os interiores da igreja guardavam rachaduras significativas decorrentes dos diversos terremotos da história da Guatemala.
Retomada da rodovia pan-americana, de pista simples após o trevo de Quetzaltenango. Não faltaram buracos e trechos sem asfalto nas imediações de Quatro Caminos e San Francisco El Alto, fatores agravados pelo tráfego intenso, pelas curvas acentuadas, pelo sobes e desces do altiplano guatemalteco. Impossível superar a velocidade média de 50 km/h.
E surgiam placas nas margens da rodovia, especialmente junto a zonas residenciais, alertando que a vizinhança se encontrava treinada e preparada contra a delinquência. Combater as causas sociais e primeiras da delinquência, porém, não parecia ser a prioridade de ninguém por ali.
O relevo subia sem parar. Cruzamos a barreira dos três mil metros de altitude. A neblina e as nuvens baixas cobriram tudo e complicaram a visibilidade. E escureceu sob a chuva fina e intermitente.
No começo da noite, a feia cidade de Huehuetenango. Depois de largar as tralhas no quarto, desci ao salão de jantar do hotel, demasiadamente formal. No momento em que eu tocava no guardanapo, artisticamente dobrado sobre o prato, o garçom apareceu voando, retirou o guardanapo da minha mão, executou trejeitos no ar, soltando o nó do tecido, e o colocou feito dançarino clássico sobre meu colo, como se fosse véu único e valioso.
Escolhi sopa típica daquela região, recheada de legumes, queijo, frango, milho, temperos marcantes. As tortillas, sempre elas, não faltaram e me ajudaram a forrar o estômago. O atendimento, exageradamente afetado dos garçons descendentes diretos dos antigos maias, mas simpático, acolhedor, sorridente, perdurou por todo o lauto jantar.
Nada do bom e velho bufê livre no café da manhã. Escolhi a opção chapin, ou guatemalteca, contando com ovos mexidos com tomate e cebola, pasta de feijão preto, queijo branco, banana assada, manteiga, tortillas, café com leite. Certamente me abasteceria mais e melhor do que as familiares e mais leves.
Huehuetenango, cidade de importância econômica e logística, mas sem belezas arquitetônicas, era base conveniente para explorar os arredores. Nem bem acabaram as ruas da cidade, e passando por Chiantla, as estradinhas asfaltadas, mas estreitas e extremamente íngremes, começaram a serpentear a serra dos Cuchumatanes, subindo acentuadamente, em meio a cruéis sinuosidades. Nos ziguezagues fechados, os veículos maiores precisavam invadir a pista contrária a fim de conseguir completar o movimento. As lotações com passageiros locais transitavam como loucos, ultrapassando nas curvas, em trechos sem suficiente visibilidade, arriscando a vida de todos. Não por acaso se viam cruzes afixadas nas beiradas da pista indicando vidas perdidas pela imprudência deliberada. Precipícios se multiplicavam à medida que a estrada subia.
O tempo que amanhecera encoberto e ameaçador abriu, liberando o sol para brilhar no céu incrivelmente azul. E o frio veio com tudo.
Comunidades esparsas cultivavam o mínimo essencial naquelas altitudes. Solos rochosos com evidências vulcânicas. Espécies de sisal de grande porte, pequenas hortas, rebanhos de ovelhas. População inteiramente indígena.
O veículo alcançou o topo da serra dos Cuchumatanes, a 3.500 metros de altitude. Dali a vista estupenda, acima das nuvens, do vale a oeste, dos ziguezagues da estrada, dos precipícios, encostas, vilarejos, partes da cidade de Huehuetenango, vulcões distantes, inclusive o Tajumulco, o mais alto da Guatemala, já extinto, com mais de 4.200 metros de altitude.
Crianças e uma senhora idosa logo rodearam implorando ajuda pra enfrentar as carências da vida miserável. Pedintes e indigência seriam regra naquela viagem. A situação de miséria e pobreza que vivia a maior parte do povo da Guatemala decorria de sucessivas ditaduras, civis ou militares, com ou sem eleições, a serviço das corporações estadunidenses. E esse longo ciclo de opressão e exploração teve início com o golpe de Estado de 1954, organizado, financiado e posto em prática pelo regime terrorista ao norte do México, através de bombardeios aéreos, de apoios logísticos e de armas, de recrutamento e treinamento de exércitos de mercenários junto a miseráveis dos países vizinhos, de propaganda na mídia para semear o pânico, de apoio total e escancarado à elite local e às corporações estadunidenses, em especial à infame United Fruit, La Frutera. Os contos do livro Week-End Na Guatemala, de Miguel Ángel Asturias, tratam com rara lucidez e brilho literário aqueles eventos criminosos.
Mais adiante dos altos da serra, o veículo percorreu o altiplano das Cuchumatanes, pouco povoado e raramente cultivado. O frio e o vento constante fustigavam a paisagem.
Entre mais ziguezagues e relevo acidentado, iniciamos a descida do outro lado da serra, rumo ao vale onde se localiza a cidadezinha de Todos Santos Cuchumatán. A descida por estradas estreitas cruzava pequenas propriedades, construções recentes de dois ou mais pavimentos. Algumas delas exibiam a bandeira do regime estadunidense, em razão do dinheiro ali empregado vir das remessas dos guatemaltecos que eram obrigados a se sujeitar a subempregos naquele país. País cujo regime, não por acaso, era o responsável pela miséria dos guatemaltecos.
E continuou a descer cada vez mais, até a entrada da pequena vila de Todos Santos Cuchumatán, encravada na encosta montanhosa. A estrada principal prosseguia no sentido noroeste, rumo a uma das fronteiras com o México.
Era o dia da feira semanal dos sábados, ao ar livre. Destaque para os trajes tradicionais dos descendentes dos maias. Eles, crianças, jovens e adultos, vestiam roupas impecavelmente novas, limpas, passadas. Calças longas e largas, vermelhas com listas verticais brancas, camisões brancos com detalhes e listas finas e verticais azuis, bolsa de tecido estampado e colorido, chapéu de abas curtas com círculo decorado em tons azulados. Compunham festival de cores vivas e alegres. Elas naquele festival de cores e bordados, predominando os azuis, levando o filho enrolado às costas.
Embora de pequena extensão, o mercado a céu aberto vibrava pelos produtos oferecidos, circulação do povo vestido a caráter para ocasião tão nobre, sorrisos sempre presentes, pela transparência da manhã ensolarada, pelo otimismo, ainda que passageiro, dos que se deslocaram de tantos vilarejos das redondezas.
O veículo refez todo o trajeto da manhã, subindo e descendo as encostas sinuosas e íngremes da serra dos Cuchumatanes. Passou batido ao lado de Chiantla e Huehuetenango. Retomou a rodovia pan-americana, ali ainda de pista simples e trânsito infernal.
Parada para experimentar os chicharrones, o popular torresmo de porco. Era barraca de beira de estrada caindo aos pedaços, velha e encardida, atendida por casal idoso vestindo roupas velhas e encardidas. Água corrente ou demais serviços sanitários por ali, nem pensar. E provei aquela iguaria tão comum nos interiores guatemaltecos, acompanhada de tortillas, é claro, e rabanete picado. Tudo na beira da rodovia, estreita, entupida de ônibus, lotações, caminhões e mais caminhões, com direito a poeira, fumaça de escapamentos, poluição sonora.
A rodovia pan-americana retomou a pista dupla e melhores condições do asfalto a partir do trevo de Quetzaltenango, em Quatro Caminos. O tempo voltou a fechar com nuvens baixas e escuras. A temperatura que voltara a subir caiu levemente.
Perto de Tecpán, almocei carne de porco e guacamole, acompanhada de, adivinhem, é claro, tortillas, muitas delas, claras e escuras.
Recomeçou a chover fino nas proximidades de Chimaltenango e Mixco, acompanhado de congestionamento respeitável. Entrei na capital da Guatemala antes de anoitecer.
Levantei com tempo suficiente para detonar no café da manhã que consistia de farto e variado bufê, livre, à vontade. Ataquei sem dó nem piedade.
O veículo cruzou avenidas planejadas e bem arborizadas do centro expandido da Cidade da Guatemala. Margeou a periferia, assustadoramente pobre, com barracos em vias de despencar dos altos paredões verticais. E pegou a rodovia de pista dupla no sentido do vale do Motagua.
O sudeste da Guatemala era mais seco, de clima semiárido. Vegetação rala, solo pedregoso, eventuais leitos de riachos sem um pingo de água na superfície, pouca terra cultivada, esparsos rebanhos bovinos e ovinos. E não havia o colorido das culturas indígenas do altiplano. Os tipos físicos mantinham ainda traços dos descendentes dos maias, porém mais claros, mestiços, vestindo roupas padrões do mundo ocidental. Em terrenos isolados das margens da estrada, culturas irrigadas de melões, melancias, mamões. Banquinhas junto ao asfalto ofereciam os produtos frescos aos viajantes. A pobreza, regra geral em toda a Guatemala, ali se escancarava com mais evidência, nas moradias, vestimentas, aspecto de tudo.
Veículos decorados com guirlandas coloridas, inclusive os alegres e charmosíssimos ônibus antigos, as camionetas, faziam o caminho de volta de romaria ao local onde se venerava um Cristo negro.
O veículo avançava pelas estradas. Passou ao lado de Sanarate, Guastatoya, Teculután, Rio Hondo, Estanzuela, Zacapa, Chiquimula, Jocotán, El Florido. Pertenciam geograficamente ao vale do Motagua, o que fez lembrar o delirante conto Americanos, Todos!, incluído no livro Week-End Na Guatemala, de Miguel Ángel Asturias.
À medida que a fronteira hondurenha se aproximava, mais miséria e desolação do povo guatemalteco. Numa parada nas imediações de El Florido, os moradores, sobreviventes na verdade, das casas de taipa cobertas de palha, apareceram e, assustados, me observaram entre sorrisos tímidos. Eletricidade, água e esgotos, nem pensar. O Estado não existia por ali, talvez somente com a costumeira repressão contra os pobres.
E surgiu a fronteira internacional. Os chapéus gigantescos, de abas largas e curvadas para cima, invariavelmente brancos ou de cores claras, na cabeça de praticamente todos os homens adultos, deram as boas-vindas a Honduras. Automaticamente me lembrei da figura do ex-presidente hondurenho Manoel Zelaya, deposto por golpe de Estado em 2009, financiado e apoiado pelo regime terrorista daquele país ao norte do México, pelo simples fato do governo dele ter se preocupado com os pobres.
continua...

8 comentários:

  1. Parabéns pelo blog e por esses relatos.
    Muito interessante a maneira de vocês escreverem e descreverem o que passa. Não dá para parar de ler.
    A Guatemala parece diferente a cada local visitado.
    Vou continuar acompanhando e pesquisarei outros destinos que vocês exploraram.
    Saudações.

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  2. Olá, obrigado pela visita e pelos comentários.
    Durante esses relatos se surpreenderá com o quanto a Guatemala varia fisica e culturalmente em poucas distâncias. Publicarei com calma para todos saborearem lentamente.
    Já publicados no blog, diversos relatos referentes a inúmeras viagens realizadas pelos interiores do Brasil e de outros países da América, Ásia, África, Europa.
    Leia, comente, divulgue...
    Abraços.

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  3. Conhecer o mundo através dos olhos de um viajante,tudo indica ,jovem e politicamente esclarecido e um previlégio.Gostei tanto que recorri ao mapa da Guatemala.Obrigado por me fazer companheiro de sua viagens.

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  4. Olá!
    Obrigado pela visita e pelos comentários.
    Procuro evitar incluir nos relatos apenas dicas e descrições dos locais visitados. De posse de conhecimentos históricos e literários, além da experiência adquirida em viagens anteriores, enfatizo as impressões e sensações vividas, aliadas a reflexões possíveis.
    E que bom que você se identificou com essas características dos relatos.
    Tem muita coisa já publicada nesse blog, referentes a outras viagens pelos interiores do Brasil e de países da América, África, Ásia, Europa.
    Conto com seus comentários.
    Abraços!

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  5. Que bom que podemos conhecer o mundo através dos olhos de um viajante...e a forma como escreve faz com que a gente se sinta lá...muito bom!

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  6. Olá,
    Obrigado pela visita e pelos comentários.
    É porque uso e abuso da espontaneidade. Registro em palavras o que vejo e sinto.
    Conto com seus comentários nos inúmeros relatos já publicados neste blog.
    Abraços!

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  7. A minha enorme admiração pelos relatos das suas preciosas viagens! Trabalho sublime! Abraço e felicidades. Ana Maria Oliveira

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  8. Oi Maria!
    Obrigado pela visita e comentários.
    Espero que continue lendo, se empolgando e...comentando.
    Abraços!

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