quarta-feira, 25 de maio de 2011

Patagônia - Chile e Argentina (parte 2/2)

...continuação
Chegada ao refúgio Grey, na margem gelada do lago de mesmo nome e com pedaços flutuantes de gelo. Desta vez não houve estadunidenses prepotentes e as reservas nos quartos coletivos se mantiveram. Muitas árvores enfeitavam as redondezas do refúgio, mas durante a noite o frio não permitia relaxar do lado de fora. O grupo se retirou cedo para compensar a noite anterior mal dormida.
Pela manhã caminhada à frente da geleira Grey, enorme formação de gelo entre blocos rochosos, que nascia na região do gelo continental e se desprendia lentamente nas águas do lago.
Da geleira Grey, passagem pelo refúgio e caminhada ao lago Pehoé. Novas rajadas de vento pelo caminho em meio a visual impressionante das geleiras e dos lagos. E, finalmente, hospedagem no refúgio Pehoé, a última noite depois do sexto dia de travessia pelo parque nacional Torres Del Paine.
Na manhã seguinte, o barco no cais da ponta do lago Pehoé. As últimas olhadas serviram de despedidas de região tão fascinante. Horas depois por estradas do extremo sul da América, novamente a fronteira da Argentina.
Estadia em El Calafate, cidade metida a besta, porém bem urbanizada e cheia de opções de bares e restaurantes. A avenida principal que cortava a cidade de ponta a ponta cobria-se de lojas de roupas caras e pretensiosas. Nem parecia que a Argentina estava mergulhada em crise profunda. A taxa de conversão entre o peso argentino e o dólar estadunidense ainda estava contida em 1 para 1. Os estabelecimentos comerciais aceitavam ambas as moedas.

Durante aqueles dias, vários presidentes argentinos se sentaram e se levantaram da cadeira oficial. Ninguém fazia previsões seguras. A incerteza pairava no ar. O garçom sexagenário do hotel, assim que servia a mesa do café da manhã, se juntava aos demais empregados e colava o ouvido no rádio da cozinha na busca de notícias alvissareiras. A maioria dos funcionários do hotel, lojas e restaurantes andava cabisbaixo e preocupado. Os olhares denunciavam a apreensão com os destinos do país e com o temor da situação social piorar ainda mais. Não havia espaço para piadas ou brincadeiras.
El Calafate servia como base para visitar o glacial Perito Moreno, distante poucos quilômetros da cidade. Da entrada, no alto do morro, a pé pelas passarelas, dava para circular por entre os vários níveis de observação. Ao descer as plataformas de madeira, mais se aproximavam os paredões de gelo. A visão era deslumbrante da montanha de gelo, alta, extensa e larga, que se debruçava sobre as águas. Vez ou outra, enormes pedaços se desprendiam e despencavam nas águas, causando fortes estrondos. A imensa massa de gelo, de tons azulados principalmente no miolo, se estendia a oeste, rumo ao gelo continental e à fronteira chilena. Horas benvindas de contemplação. Turistas de todos os tipos e idades se espalhavam por ali. Houve passeio de barco até bem perto dos paredões.
À noite em El Calafate, durante o lauto jantar, não foram poucas as garrafas de vinho consumidas. Além da qualidade do produto, das frias temperaturas da noite, a garrafa do precioso líquido custava o mesmo que uma xícara de café. Então, em vez de café, mais uma garrafa de vinho. Dólares estadunidenses e pesos argentinos se misturavam na mesa no momento de pagar a conta.
Pela manhã a caminhonete conduziu à cidadezinha de El Chalten, às portas do parque nacional Los Glaciares e próxima das principais montanhas da região.
El Chalten não era propriamente uma cidade. Ainda. Mas pequeno conjunto de pousadas, hotéis, bares e restaurantes na margem de rio pedregoso que corria no final de planície árida. Da estrada, mesmo distante, se via o vilarejo, as montanhas nevadas e pontiagudas ao fundo. Restaurantes de ótimo aspecto e preços altos apareciam aqui e ali.
Houve tempo suficiente para expedições à laguna Serena, à base do cerro El Chalten (Fitz Roy), à base do cerro Torre, nos pés dos quais se instalavam barracas dos acampamentos base, utilizadas principalmente por escaladores. As caminhadas não cansavam muito, cruzando bosques fechados, trechos mais secos, riachos parcialmente congelados. Nevou, nublou, garoou, esfriou muito. De perto vi apenas as bases das montanhas, desimpedidas das nuvens carregadas. Ventava furiosamente e não consegui permanecer muito tempo nas proximidades.

As comemorações pelo novo ano ocorreram em hotel próximo. Tudo simples, animado e espontâneo. Caminhantes se reuniram para beliscar e beber vinhos.
Em meio a outros turistas, as conversas evoluíram para a política mundial, com alguns argentinos e quatro suíços. Os quatro europeus questionavam a ausência de democracia em vários países da América, a miséria, a corrupção, o narcotráfico, as agressões ao meio ambiente. Avancei o debate no sentido de analisar as causas e os agentes dos problemas. Citei as transnacionais químicas e agrícolas suíças que atuavam impunemente pelo continente americano, agredindo a natureza e explorando a mão de obra barata. Primeiro silêncio e mal estar dos quatro. Também quis saber a posição deles frente ao então recente plebiscito sobre a abolição do sigilo das contas bancárias nos bancos suíços. Eram lá que os ditadores, assassinos, corruptos, megaempresários, traficantes do mundo inteiro, depositavam as fortunas decorrentes da exploração dos pobres. Com esse dinheiro os criminosos internacionais abasteciam a economia da Suíça. Os quatro suíços não responderam e tentaram desconversar. Insisti. E, finalmente, admitiram o apoio ao sigilo bancário dos bancos suíços. Apoiavam, portanto, a fuga de capitais, sobretudo dos países mais pobres. Concordaram que mantinham e desfrutavam do alto padrão de vida na Suíça graças à miséria de milhões de pessoas pelo mundo afora.
Após o acampamento base do cerro El Chalten (Fitz Roy), trilha para lá de íngreme rumo à laguna de Los Três, na base da montanha. Nevou na subida e no nível da lagoa, sem falar no vento gelado. Mas o cenário fascinava. Lagoa de águas azuladas, rochas negras e cinzentas, trechos de neve branca, a montanha, faziam qualquer um esquecer a neve, o vento, o frio.

Já de volta a Buenos Aires, houve tempo suficiente para dar voltas pela cidade, de noite e de dia, pelo centro antigo da capital, as imediações da Casa Rosada. Esticada a San Telmo e Puerto Madero. Aquele último domingo na Argentina seria também o último dia da paridade entre o dólar estadunidense e o peso argentino. As ruas anunciavam informalmente a desvalorização de cinquenta por cento do peso para o dia seguinte. Mas eu já estaria no Brasil.
Desembarquei em São Paulo em janeiro do ano seguinte. As imagens da Patagônia, chilena e argentina, das montanhas nevadas, lagos, vales e bosques impressionantes, do vento intenso sempre presente, não me sairiam da lembrança. Assim como os rostos preocupados dos argentinos frente às trágicas consequências do capitalismo no país que, como no mundo tudo, serve apenas a uma minoria, local e estrangeira, lançando milhões de trabalhadores na pobreza.

2 comentários:

  1. Parabéns pelo blog e pelas publicações. Gostei dos relatos críticos sobre a Patagônia. Me animei bastante a conhecer lá, apesar do frio que deve ser de matar. Abraços e publique mais.

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  2. Olá, obrigado pelo comentário.
    No verão patagônico o frio não incomoda tanto, e sim o vento. Mas tudo fica em segundo plano diante daquelas paisagens deslumbrantes.
    Fique à vontade para ler, comentar, indicar as demais publicações. Já averiguou os relatos e reflexões das inúmeras viagens que fiz pela Amazônia? Valem a pena serem lidos com calma!
    Logo estarei publicando outros relatos. Aguarde.
    Abraços

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