sexta-feira, 25 de março de 2011

Vale do Jequitinhonha (parte 3/3)

...continuação
A cidade de Minas Novas foi construída sobre crista ascendente de uma colina. De baixo para cima, com o eixo principal a rua, ora larga, ora estreita, evoluía da parte mais antiga e tranquila à parte mais nova e movimentada. Ao longo desse eixo sinuoso se dispunham quatro igrejas seculares, misturadas às demais construções. Todas as igrejas se posicionavam de frente para a parte baixa, a entrada original da cidade. As ruas e becos transversais despencavam abaixo, rumo aos vales dos dois rios que cercavam a zona urbana.
Na parte mais antiga concentravam-se os casarões do século XVIII, a maioria em péssimo estado de conservação, abandonados, à espera de verbas para a restauração, verbas muitas vezes aprovadas, mas não liberadas. Revoltante assistir ao definhamento, ruínas e desabamentos parciais das construções, em especial aquela ao lado da pousada, cujos cômodos dos fundos já tinham virado escombros no quintal.
Entre as igrejas de São Gonçalo e São José, originalmente erguido para ser sede do governo mineiro, o sobrado do século XVIII de quatro andares, todo de madeira e pau-a-pique, abrigava a Casa da Cultura, escola de música, museu, secretaria de cultura, lojas de artesanato do vale do Jequitinhonha. O Sobradão, como era popularmente chamado, estava comprometido em inúmeros pontos, nos pisos de madeira apodrecendo, tetos despencando, paredes ruindo. Em todos os pavimentos se notava a inclinação do edifício. Verbas foram liberadas para restauração emergencial do edifício, mas nada do cheiro do dinheiro até então.

O museu da Casa da Cultura concentrava obras de artesanato típico do vale do Jequitinhonha, sobretudo esculturas, miniaturas, arte figurativa em barro e cerâmica, crua ou pintada, retratando cenas religiosas, do cotidiano rural das localidades de Caraí e Itinga. Além da arte figurativa, objetos antigos ocupavam outras bancadas e registravam os quase trezentos anos de Minas Novas.
Caminhei à parte alta da cidade, completamente sem atrativos, cujas características principais eram as oficinas mecânicas, lojas de autopeças, postos de gasolina. Entrei em restaurante com comida servida em bufê, mas, como passava do horário mineiro, a comida praticamente acabara. Raspei as panelas sem matar a fome.
Entrei no casarão ainda em pé do outro lado da pousada, herdado pelo solitário senhor aposentado. Subi as escadas, empurrei a pesada porta meio aberta. Dei boa-tarde três vezes e ninguém respondeu. Mesmo assim segui em frente e circulei pelos aposentos, tentando provocar o mínimo de ruído possível. Cruzei a sala de jantar, a cozinha, um dos três quartos, a sacada alta, tudo em madeira sobre piso irregular, frágil, rangendo sempre, com falhas, depressões. A mobília, as paredes, portas, janelas, no entanto, davam aulas de história. Poucos e pesados móveis se dispunham em grandes espaços. No quarto, apenas a cama de casal com armação de ferro, o armário, o baú de couro grosso. Na cozinha, o fogão à lenha, a bancada de pedra e o armário velho. A sacada dos fundos, estreita e florida, alta, muito alta, sustentada por hastes finas de madeira, piso também de madeira, remendado por folhas de alumínio, podia despencar lá embaixo, tamanha a fragilidade. Dei meia volta e desci as escadas, receoso de acordar o nobre morador. No térreo do casarão, onde se instalava agência de ecoturismo, o dono me contou histórias do vale do Jequitinhonha.
Os boruns, moradores originais da região, rebeldes e guerreiros, usavam botoque nos lábios inferiores. E, por não se submeteram aos invasores portugueses, foram sumariamente exterminados.
Explicou que a cidade de Araçuaí fora fundada no povoado de Itira, a partir do núcleo de casas de prostituição, que saciavam os canoeiros dos vales do Araçuaí e Jequitinhonha, então os únicos caminhos para o mar. Luciana Teixeira, uma famosa puta, reinava absoluta na zona de Itira. Mas o padre resolveu acabar com a festa e expulsar as meninas, obrigando-as a subir o Araçuaí e a se fixarem em outro ponto, ao redor do qual se ergueram novos puteiros, casas, construções, o futuro núcleo urbano de Araçuaí.

Ele ainda descreveu a invejável aventura de canoa em expedição fluvial desde o rio Araçuaí, a foz em Itira, o rio Jequitinhonha abaixo, até o mar em Belmonte, em companhia de fotógrafo, ajudantes, canoeiros locais. A travessia buscava resgatar a história e denunciar a crescente degradação socioambiental do vale. Perda de volume das águas dos rios, desmatamento das margens e cabeceiras, assoreamento, poluição, contaminação, monoculturas de eucalipto, o chamado deserto verde, catástrofes que agravaram a miséria e pobreza das populações ribeirinhas. Apresentou resultados e imagens da expedição em palestras, mas jamais publicou em livros ou na internet. Mereceria repercussão e divulgação maiores, à altura da importância da pesquisa realizada.
Caminhões e demais veículos pesados não deveriam cruzar Minas Novas, mesmo que apenas de passagem. A trepidação afetava as já frágeis edificações. Ainda mais no caso de patrimônio histórico e arquitetônico pedindo socorro pela falta de conservação. Pois bem. O anel viário já existia, inclusive com a ponte de concreto sobre o rio Fanado. As estradas, em cada lado dessa estrutura, também. Mas não construíram a ligação das estradas com ambas as pontas da ponte. A ponte ligava, até então, o hiato de um lado com o hiato do outro lado. Bastariam poucos metros de conexão nas duas extremidades da ponte e o anel viário se tornaria disponível. Havia mais de dois anos que a situação permanecia assim, humilhando os moradores de Minas Novas e região. E nenhuma providência à vista. Os mineiros suportavam o segundo mandato da aliança entre tucanos do PSDB e demos do DEM, tendo a frente o governador com cara de mocinho. O mesmo que perseguia os pobres e trabalhadores na base da violência física, enquanto fazia vista grossa aos desmandos dos ricaços e respectivos capangas que oprimiam e assassinavam trabalhadores rurais.
Tornava-se um prazeroso ritual minha subida do centro antigo à parte nova da cidade e vice-versa, passando pelas mesmas quatro igrejas, até chegar na Gruta, ao redor da qual havia a praça de encontros, o maior número de barracas de lanches, sorveterias, bares simples.
A chuva ameaçou pela manhã, mas não caiu nem uma gota. Enrolei no salão do café, junto a outros hóspedes, a fim de assistir à final do torneio de futebol interclubes. O jogo não empolgava, dava sono. Desisti definitivamente quando um jogador brasileiro, garoto propaganda do fundamentalismo evangélico, o tal que alega que casou virgem, comemorou o gol exibindo a camiseta de baixo com frases da indústria da religião. E ainda dedicou o feito ao casal preso no exterior e chefe da empresa comercial que se enriquecia à custa da ignorância dos fiéis.

Parti rumo à antiga cachoeira das Almas, agora barragem e ponto de encontro dos minasnovenses. Circulei antes de me instalar no bar tocado por casal de meia idade. Raros fregueses passavam por ali, conversavam, bebiam, petiscavam, logo iam embora. Pedi cachaça purinha. Ao comentar a sensação de tijolo no estômago, ele me prescreveu cachaça curtida nas folhas de boldo.
Enquanto me deliciava com doses generosas da cachaça artesanal, não envelhecida, a purinha, a branquinha, curtida nas folhas de boldo, amargo para mais da conta, rolaram conversas com os fregueses, entre eles uma senhora cujo pai mereceria história à parte. Ele fora artista nato, criativo, improvisador, batuqueiro nos reisados. Muitas pessoas não o compreendiam e o consideravam anormal. Mesmo nas cenas corriqueiras da vida cotidiana, ele soltava versos de própria autoria, simples e rimados. Certa vez, matou um boi e convidou a família e amigos para o banquete. Entregava cada parte do boi a alguém cujo nome rimava com o nome da referida carne. Ela puxou da memória e recitou parte desses versos do pai. Todos ali ouviram atentamente e se encantaram. E a senhora herdara os dotes artísticos do pai, criando artes em cerâmica e barro. Ainda informalmente, ainda timidamente, receando se manifestar publicamente, para não a associarem com a suposta insanidade do pai.
A roda proporcionou conversas sobre a diminuição do volume das águas dos rios, o assoreamento, os desmatamentos das cabeceiras e das matas ciliares, construções questionáveis de mais hidrelétricas, deslocamento forçado das populações tradicionais, descaminhos e rumos do vale do Jequitinhonha. Questionaram fundações e ONG’s estrangeiras atuando na região, as quais se recusavam a esclarecer os reais propósitos de atuação. Talvez as respostas estivessem na proliferação pela região das monoculturas de eucalipto, o famigerado deserto verde.
Depois de horas no papo solto e das pingas curtidas no boldo, a fome, finalmente, deu sinal de vida. E veio voraz. Imediatamente pedi meia galinha caipira com arroz. Demorou uma eternidade, mas valeu a pena esperar. E assim que as tigelas foram dispostas, não vi mais nada ao redor, mergulhando de cabeça naquela maravilha da culinária brasileira. Não parei até esvaziar as travessas. Nem a asa da galinha eu perdoei. A porção saciaria a fome de um batalhão. Me senti nas nuvens. Nem notei que o bêbado da mesa ao lado começou a roubar os ossos com fiapos que eu deixara no prato.
Mais tarde, vez ou outra, aparecia um energúmeno ali perto, abria o porta-malas do carro e vomitava, em volume desumano, o som do lixo descartável. As vinhetas repetitivas avisavam o que e de quem era aquilo que evacuava das caixas de som. Dezenas de vezes, a gravação do homem com voz grave, ou da criança com voz estridente, martelava bem alto no meio das “músicas”:
“DJ Vudu e DJ Kilessi! Aqui quem manda é nóis! Copiou Zé Ruela?”.
Entrei no quarto do hotel à noite, sedento, com a barriga inchada, mas em estado de graça pelos momentos ao lado de gente tão acolhedora. Depois do banho, e ainda estufado de tanto comer, com a sede insolúvel, subi a crista da cidade e fui à praça da Gruta, aonde todo mundo. Casais, amigos, famílias, mil paqueras, mas, claro, proibido para maiores de 18 anos. A maioria se concentrava atrás da Gruta, em bar e sorveteria sob o palanque de concreto. O DVD da banda Calipso retinha os olhares de alguns frequentadores das mesas, enquanto consumiam garrafas de dois litros de refrigerante. Ao redor, circulavam pessoas, outras se sentavam nos degraus da arquibancada da praça ou nas barracas de lanches. Minas Novas se encontrava na noite quente, sem preocupações com horário, segurança ou o consumismo alienante das grandes cidades.
Arrumei a mochila, me despedi de todos, fui aguardar o ônibus na pequena estação rodoviária de Minas Novas. O veículo partiu à tarde com meia lotação, mas completou nas cidades seguintes.
Nem bem saímos de Minas Novas e os cartazes de uma empresa privada cantavam louros à monocultura de eucalipto, cujas plantações se perdiam de vista no horizonte, em ambos os lados da rodovia. A cidade de Turmalina, a capital daquele criminoso agronegócio, moderna e sem graça, exibia dezenas de lojas de autopeças, oficinas mecânicas, material de construção, fornos de queimar eucalipto, imensos pátios armazenando tocos de árvore.
A estrada seguiu e mais monocultura de eucalipto em ambas as margens do asfalto. Deserto verde deprimente. Não era à toa que muitos olhos d’água e córregos secaram, rios assorearam, a fauna e a flora desapareceram. Tudo graças a empresas privadas, fundações, ONG’s, às demais empresas estranhas à região. E daí a enorme pressão pela construção de mais hidrelétricas nos arredores.
Após a feia, suja e apertada cidade de Capelinha, por onde o ônibus mal conseguia trafegar e fazer as conversões, a monocultura de eucalipto dividia espaço com cafezais nas encostas das colinas. À medida que a sinuosa estrada descia para sul, as áreas cultivadas diminuíam, o vale acidentado e profundo se acentuava, erguiam-se morros altos, o cerrado perdia espaço para a mata atlântica. A rodovia virava caminho de rato, o ônibus balançava para ambos os lados. Era praticamente impossível adormecer. Não havia mais de cem metros planos de reta, mas somente aclives e declives intensos, curvas fechadas, tudo compensado pelo visual cortado por riachos encachoeirados e ocupado por casinhas esparsas. De Capelinha a Itabira, cidadezinhas e vilas, como Água Boa, Santa Maria do Suaçuí, José Raydan, Guanhães.
Novamente a irritante, demorada e desnecessária parada em Belo Horizonte, como de praxe na monopolizadora empresa Gontijo.
O ônibus entrou na rodoviária do Tietê, em São Paulo, no fim de dezembro. Eu já sentia saudades do vale do Jequitinhonha, certo que voltaria à região para maiores explorações.

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