terça-feira, 11 de outubro de 2011

Portugal e Espanha (parte 3/3)

...continuação
Depois do desembarque na suja e desorganizada estação rodoviária de Granada, em meio a pedintes, caminhei pela avenida principal e me hospedei no albergue da juventude.
A vida noturna da cidade se agitava naquela noite de sábado, nas dezenas de bares, cafés, restaurantes, pubs, em cuja frequência predominava os adolescentes. As meninas se pintavam e se produziam de maneira tão exagerada que mais pareciam vedetes de cabaré, rindo e falando escandalosamente alto.
A cidadela de Alhambra, construída pelos árabes no século IX, complexo de castelos, palácios, igrejas, jardins, fontes, bosques, se erguia próximo às montanhas. Durante séculos, Granada tornou-se a principal cidade árabe da península ibérica. A cidadela encantava pelas salas, pátios, fontes de água, arabescos, detalhes instigantes, colunas, água corrente em canais e valetas, madeira e pedra talhadas com desenhos e escrita árabe. Mais jardins, em formato de labirinto, e muito verde surgiam no caminho ao palácio de Generalife.
Albaicin, o antigo bairro árabe e invariavelmente pintado de branco, com becos e ladeiras sinuosas e estreitas, abrigava as camadas pobres e médias da população. Dali, o Alhambra e a Sierra Nevada coberta de neve mais ao fundo.
Os espanhóis jogavam lixo nas ruas, ignorando as lixeiras disponíveis. O mesmo acontecia nos vagões de trem, onde fumavam mesmo com os avisos de não fumar afixados nas paredes do trem e nos bilhetes de viagem.
Desembarquei debaixo de chuva na estação ferroviária San Bernardo em Sevilha. Diversas pessoas assediavam com propostas de pensões e hospedarias baratas, lembrando a Bolívia e o Peru. Cruzei o bairro antigo de Santa Cruz e me perdi feio. À medida que tentava sair dos labirintos, mais eu me perdia nos becos, vielas. Mas me deliciei com toda aquela história ao meu lado.
As linhas de trem entre Sevilla, Ayamonte e o sul de Portugal tinham sido canceladas. A estação rodoviária de Damas em Sevilha conseguia a triste proeza de ser pior que a de San Bernardo. Ainda mais suja, apertada, desorganizada. Não havia plataformas de indicação, nada. Qualquer terminal rodoviário dos interiores distantes do Brasil poderia ganhar fortunas vendendo consultoria à Espanha de como construir, organizar e administrar uma estação rodoviária decente.
Não havia locais fixos das partidas dos ônibus. Os veículos surgiam do nada e quase atropelavam os passageiros, envenenando-os com os escapamentos desregulados. O setor de informações daquele hospício desinformava. Mal encarados e mal humorados, os balconistas nada informavam, nada sabiam. Mas acabei encontrando a explicação para tanta incompetência. Aquele local fedido, as linhas, os ônibus, motoristas e funcionários em geral, pertenciam a empresas privadas. Se os trens estatais, mais eficientes e mais baratos, estivessem em funcionamento, os passageiros não sofreriam para garantir o lucro fácil às empresas privadas.
O trajeto durou cerca de três horas, e passou por Huelva, cidade espanhola na beira de praia plana, suja e sem atrativos. O relevo aplainado contava com plantações de oliveiras e laranjeiras. A pobreza estava em todos os lugares. Desembarquei na imunda cidade espanhola de Ayamonte. Cruzei de barco a fronteira internacional e botei os pés na cidade portuguesa de Vila Real de Santo Antônio, dando impressão que eu tinha entrado na civilização.
Plana, mais organizada e mais limpa que a rival espanhola do outro lado do rio, Vila Real contava com traçado quadriculado das ruas, quase todas iguais e sem praças ou áreas verdes, somente o longo calçadão na beira do rio. O conjunto arquitetônico, no qual as paredes e as entradas das casas ficavam na beira da calçada, lembrava cidadezinhas dos interiores do Brasil.
Anoiteceu e a cidade fantasma mergulhou em silêncio. Ninguém nas ruas. Todos deitavam os olhos nos televisores, inclusive nos raros bares e restaurantes abertos. Comi algo parecido com enguias ensopadas em restaurante fúnebre, onde os garçons e os poucos clientes se hipnotizavam com olhares fixos voltados para o televisor.
Os espanhóis invadiam a cidade portuguesa diariamente para comprar produtos isentos de impostos. Eram lojas ou ambulantes que expunham produtos dos mais variados tipos, couros legítimos ou não, roupas, bugigangas inúteis, sobre pedaços de pano estendidos no chão. O flexível comércio da fronteira aceitava escudos portugueses e pesetas espanholas.
Porta de entrada para o Algarve, a praia de Monte Gordo, a cinco quilômetros do centro, naquela baixa temporada com frio e céu cinzento, era procurada por turistas do norte da Europa, que, de bermudas e camisetas, se deliciavam com o tórrido calor diurno de 10 graus.
No posto de informações turísticas, entre um e outro atendimento aos turistas estrangeiros, aproveitei para conversar com o português e a assistente. Mas logo me cobriram de perguntas sobre o tema predileto de Portugal, as telenovelas brasileiras. Não lhes interessava saber sobre o Brasil, os brasileiros, a cultura, a geografia. Estavam obcecados pelas telenovelas, apenas pelas telenovelas já exibidas no Brasil. Queriam a todo custo saber o que aconteceria no final de cada uma delas ou, pelo menos, nos próximos capítulos. De nada adiantou eu declarar que nunca assistia às telenovelas. Os olhos de ambos brilhavam na ansiedade das respostas que eu não trazia. Por fim, resignados, desistiram de implorar sobre as telenovelas. E desistiram também da minha presença. Eu não possuía mais nada que lhes interessasse.
A viagem de ônibus a Lisboa foi regada a serviço de bar, música ambiente e filmes do tipo Rambo III, ilustre representante do lixo oficial estadunidense. As janelas permaneciam trancadas e o ambiente abafado. Os passageiros portugueses fumavam apesar da proibição, enevoando de nicotina o ambiente.
Na paisagem do lado de fora, o destaque ficou por conta de pitoresca cidadezinha de Tavira, margeada pelo rio, as pontes de pedra, o casario antigo formando conjunto harmônico e pitoresco. Senti vontade de sair pela janela, ficar na cidade, fugir do ambiente asfixiante e cancerígeno do interior do ônibus da empresa privada.
Grande parte do centro antigo de Lisboa carecia de restauração. Comentários diversos garantiam que grandes empresários da especulação imobiliária apostavam no agravamento do estado das construções, torciam por desmoronamentos “naturais”, criavam fatos consumados. Depois bastava limpar a área e construir novos prédios. E, nos bairros, os mesmos empresários construíam edifícios padronizados e tristes.
Almoço tardio com amigos em restaurante típico português. Pediram Sapateiras, caranguejos imensos dos mares profundos da costa africana. Somente o corpo central do dito cujo ocupava todo um prato normal. Sem falar nas patas grandes e pequenas. O miolo foi servido ricamente temperado e, por mais que eu tentasse esvaziá-lo, a saborosa carne não acabava nunca. Delicioso! Para acompanhar, nada melhor que garrafas de vinho verde branco.
Em sala de cinema em Lisboa, minutos antes do intervalo, uma espectadora começou a esbravejar contra o homem sentado próximo. Alegava, aos gritos que o indivíduo lhe passara a mão na perna. A sala inteira lançou os olhares e os ouvidos naquela direção. O tal tarado se levantou e se retirou.
Permanecemos bastante na Feira Popular, ambiente antigo e agradável, cheio de atrações, brincadeiras, parques de diversão, comes e bebes. Passamos boas horas em barraca simples que servia gigantescas porções de sardinhas assadas e fatias de porco frito.
Nas estradas ao norte de Portugal, passamos pelas já conhecidas Fátima e Boleiros. O diferencial ficou por conta de finas camadas de neve acumulada. O inverno se aproximava oficialmente nas imediações da serra da Eira. Mergulhando novamente na maravilhosa culinária portuguesa, me empanturrei do Leitão à Bairrada, prato típico da região.
Entramos muito tarde na fascinante cidade de Coimbra, quase sem luz natural, para apreciar o centro antigo, repleto de ladeiras. Depois, as bucólicas estâncias de Cúria e Luso, mais voltadas a tratamentos hidrominerais.
O voo me trouxe a São Paulo em meados de dezembro.
Aquela viagem, mais de levantamentos do que de turismo, chegava ao fim. E sem registros fotográficos. Os slides foram inteiramente danificados durante a revelação. As imagens ficariam apenas na mente, o quanto minha memória as conservasse.

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