domingo, 21 de novembro de 2010

do Amazonas a Sergipe (parte 6/7)

...continuação
A trilha das Torres começou plana e monótona, por entre plantações e cercas, depois empolgou pelos altos dos paredões. Coberturas rochosas no formato e textura de casca de tartaruga permitiam vistas de outros vales secos e pedregosos, com vegetação que nada tinha de morta, ao contrário, vida animal e vegetal fervia naquela aridez. Antes de iniciarmos a descida, apreciamos os “lapiais”, zonas em camadas do arenito, ricamente coloridas, em alto relevo. O conjunto se destacava pelas cores fortes e alternadas horizontalmente.
A senhora que cozinhava nosso almoço adoeceu durante a noite. Mal medicada por médico incompetente, foi obrigada a se deslocar a Arcoverde a fim de ser corretamente analisada e tentar reverter os efeitos colaterais da primeira medicação. Dormiu bastante na volta e ainda tentava se recuperar. Estava em estado de choque quando a encontramos na volta da trilha. Os olhos da pobre coitada denunciavam o susto que passou durante a madrugada graças à indústria da doença e ao picareta vestido de branco.
Na estrada de volta, uma ONG produzia sucos, doces e castanhas de caju, além da própria fruta fresca. Caminhões e mais caminhões entravam e saíam da propriedade, completamente cercada e fortemente guardada por seguranças uniformizados. Trabalhadores jovens da região passavam disciplinados pelos portões. As mercadorias produzidas no sertão pernambucano eram todas enviadas ao sudeste do Brasil. Para quem iriam os lucros gerados pela organização, teoricamente, sem fins lucrativos? Não percebi nenhuma melhoria nas sofríveis condições de vida do povo ao redor.
  
Partimos no rumo leste até chegar à cidade de Bezerros, famosa pelo carnaval, pelas xilogravuras, pelo Centro de Arte Pernambucana, onde se exibiam diversas formas de manifestações artísticas do estado. Seguimos à oficina de J. Miguel, filho de J. Borges, mestres em xilogravura com temas tipicamente nordestinos. Sempre falante e sorridente, enquanto imprimia as matrizes em ladrilho, tecido, papel, J. Miguel descreveu as aventuras durante o carnaval, quando, ele e os colegas de farra, se fantasiavam de papangu pelas ruas de Bezerros.
Poucos quilômetros depois entrávamos em Gravatá, cidade com casario do início do século XX, lojas de artesanato demasiadamente afetadas. A cidade transformava-se em destino de recifenses desejosos de passeios de um dia e mesmo temporadas, como mostrava a profusão de condomínios fechados ao lado da rodovia, onde se erguiam casas de alto padrão nas encostas das colinas.
Descemos a serra das Russas com destino a Recife.
Praticamente todos os hotéis estavam lotados em razão do congresso brasileiro de cardiologia. Deixei a bagagem no primeiro que encontrei vaga, barato, a três quarteirões da praia da Boa Viagem. Fomos ao cinema na fundação Joaquim Nabuco, reduto de programação de filmes de qualidade. No café aconchegante mergulhei de cabeça no divino bolo de rolo.
Na praia urbanizada de Boa Viagem, com coqueiros e trechos mais sombreados, pouca gente circulava na manhã de segunda-feira. O que mais chamava a atenção eram as constantes e assustadoras placas, espalhadas por toda a extensão da praia, alertando para o alto risco de ataques de tubarão. Observei o fraco movimento da praia, investiguei o mar, antes e depois da linha dos arrecifes, mas nenhum sinal de barbatanas. O calçadão e os prédios se entupiam de cartazes e faixas dos candidatos ao segundo turno da eleição presidencial e estadual.
Peguei ônibus urbano ao centro da cidade e retornei somente à tardinha. O bairro do Recife Antigo guardava aberrações modernas e escondia as poucas e pessimamente conservadas construções dos séculos XVII e XVIII. Os armazéns do cais do porto e o ancoradouro de barcos para passeios turísticos ainda estavam lá. Espalhavam-se espaços culturais, teatro, cinema, bares e restaurantes, mas tudo semiabandonado e de mau aspecto. Os bairros de Santo Antonio e São José, no entanto, exibiam igrejas, conventos, museus, palácios, preciosidades do passado de opulência da cidade. O destaque ficou por conta do complexo da ordem terceira de São Francisco, sobretudo a estupenda Capela Dourada do século XVII, e da igreja de Nossa Senhora do Carmo, repleta de belos interiores.

Perambulei pelas ruas até bater de frente em famoso restaurante aberto em 1882. O ambiente primava pela sobriedade das mesas, bancadas, balcões, das janelas parcialmente escondidas por grossas cortinas de cores escuras. O salão contava com bar clássico ao lado do piano que despejava melodias conhecidas. Engravatados, idosos, aliás, bem idosos em mesas reservadas, grupos de senhores sussurrando conchavos políticos ou comerciais, casais de meia idade, predominavam pelo recinto.
Pela manhã ao litoral sul de Pernambuco via estradas cortando canaviais sem fim em colinas outrora ocupadas pela exuberante mata atlântica. O distrito de Porto de Galinhas contava com dezenas de hotéis e pousadas, bares e restaurantes, lojas de roupas, artesanatos autênticos ou não, comércio bem desenvolvido. O movimento de turistas e moradores não lotava a vila naquela sexta-feira ensolarada. Aos finais de semana, sobretudo em feriados prolongados e férias escolares, o local transbordaria de visitantes. Mas as extensas praias não decepcionavam, especialmente a de Maracaípe, mais vazia e preservada, com ondas bravas e atraentes.
Na volta a Recife, ainda houve tempo para passada rápida pela sofisticada, cara, triste e deprimente região da praia de Muro Alto. Condomínios fechadíssimos, mansões, hotéis luxuosos de inúmeras estrelas, heliportos e tudo o mais para segregar ainda mais a auto-segregada classe dominante brasileira e estrangeira. Mais um gueto das elites. E impediam, ilegalmente, o acesso à praia pública em frente.

Dia para explorar Olinda após mais de trinta anos. E sempre a pé pelas ruas, ladeiras, becos, praças, monumentos, igrejas, lojas de artesanato de bom gosto. Embora a cidade se espalhasse em grande área, a visitação a Olinda se restringia ao centro histórico, facilmente percorrido a pé. O número de turistas não perturbava nas primeiras horas da manhã, ainda silenciosas e frescas. A maior parte da cidade, não turística e nunca visitada, marcava-se pelos problemas sociais típicos das cidades grandes. A igreja e convento de São Bento, com o estupendo altar dourado, e a de São Francisco com azulejos pintados, pátios e impressionantes trabalhos em jacarandá, se destacaram. Mas o melhor do centro histórico de Olinda ficava nas ruas, construções, portas, janelas, detalhes arquitetônicos e decorativos, ateliês artísticos. A catedral da Sé abrigava o túmulo do eterno arcebispo de Olinda e Recife, Dom Helder Câmara. Os olhos do guia local se molharam quando se lembrou do carinho desapegado de Dom Helder pelos pobres e necessitados.
À noite no teatro Santa Isabel, centro de Recife, apresentação do grupo musical liderado pelo Antonio Madureira, membro do antigo e lendário Quinteto Armorial. Valorosa apresentação musical em espaço tão histórico.
Cedinho rumo da Enseada dos Corais, litoral sul pernambucano, residência de casal conhecido. De lá, o cabo de Santo Agostinho, a pequena e deslumbrante praia de Calhetas, encravada em morros desmatados, a praia de Suape, junto ao porto cuja construção causou desequilíbrio ecológico e expulsou os tubarões para Recife, o costão do Paraíso, local bucólico e tranquilo.
Em ônibus a João Pessoa, de violão na mão, o paraibano logo se apresentou aos poucos passageiros dizendo que se preparava para gravar o primeiro CD com o querido parceiro, nome que repetia a todo instante. De olhar vidrado, roupa suja, cabelo despenteado, o artista anunciava que iria cantar a nova composição dele, a ser incluída no novo CD. Mas antes precisava afinar o violão, ato que se estendia no tempo e jamais terminava. Culpava pela demora os problemas nos ouvidos, as janelas fechadas, o ronco do motor do ônibus. O tempo passava e nada de afinar ou cantar. Quase às portas de João Pessoa, duas horas após comunicar que começaria a cantar, e citar novamente o parceiro, finalmente o nobre cantor avisou que o violão estava afinado. Cantou não uma, mas duas canções de própria autoria. E eram boas canções. Trocou números de telefone, enfatizou as próprias qualidades, discorreu mais citações e elogios ao parceiro.

João Pessoa continuava a mesma, bonita, verde, silenciosa e tranquila. Os novos bares e restaurantes não afetaram a calma. O ritmo da cidade se mantinha o mesmo de quatro anos antes.
O dia amanheceu ensolarado e brilhante. A cor do mar em Tambaú convidava a mergulhos. Caminhei pela praia de Cabo Branco, por areias praticamente vazias, até o farol e a Ponta Seixas, o ponto mais oriental da América. O verde das águas, as casas térreas, o silêncio urbano, a brisa, valorizavam a paisagem. No caminho de volta, me sentei sob a sombra dos coqueiros do calçadão. Logo apareceu uma mulata muito magra, moradora do centro da cidade com o filho de dez anos. Com apenas 27 anos, dizia que passara a noite em claro, pelas areias da praia, depois de noite fraca, sem clientes. Falava pelos cotovelos, enquanto observava atentamente os motoristas que passavam na avenida.
contnua...

2 comentários:

  1. Meu Deus!!! Vou MUITO viajar pra todos esses lugares, assim que eu puder! heheh...por enquanto eu fico só de olho no blog! VAleu!!!!

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