quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

do Nepal ao Camboja (parte 5/12)

...continuação
Embarque à noite em vagão dormitório com quatro camas largas e confortáveis por compartimento. E o funcionário do vagão ainda me entregou roupa de cama completa, limpa e cheirosa, multiplicando o conforto. Ao lado, o indiano visitaria a família depois de estudos na Inglaterra. Dormi bem a noite curta em cama confortável. Que delicia estar de volta aos ótimos trens indianos!
O estudante sugeriu o desembarque na penúltima estação. Assim daria para pegar o segundo trem sem trocar de estação ferroviária em Mumbai, a maior e mais populosa cidade da Índia. Seguimos até o final e nos demos mal. O tempo apertado nos obrigou a morrer com táxi, da estação ferroviária de chegada até a estação de partida. O motorista aproveitou a pressa e esfaqueou cobrando adicional pelas bagagens no porta-malas, pela rapidez do percurso, por sei lá mais o quê. O veículo naquela manhã atravessou a orla de Mumbai, o mar, prédios altos, ruas arborizadas, dezenas de restaurantes e bares. Em cima da hora, embarque no trem com vagão tradicional, bancos acolchoados e ventilação natural. Havia lugar marcado para até quatro passageiros no banco, mas nos momentos mais cheios sentaram cinco ou seis pessoas. Parada longa na cidade de Puna, famosa no ocidente pelos centros de estudos filosóficos e religiosos, chamados de ashram, uns autênticos, outros nem tanto.
Desembarque em Solapur, ainda no estado de Maharasthra, no final da tarde, depois de dois dias e duas noites em trânsito. Do hotel, nem precisou atravessar a rua da cidadezinha para encontrar restaurante com legítima comida indiana, saborosa, em quantidade para ninguém botar defeito. E mais sucos de manga.

Embarque matinal a Badami em trem ainda mais simples que o anterior, cruzando a fronteira do estado de Karnataka por paisagem plana, muito verde, plantada. Os habitantes revelavam tons de pele mais escuros. Em trem quase vazio, conversas e trocas de sinais e sorrisos com os passageiros que faziam várias perguntas, pediam endereços, adoravam ver e tirar fotos. E apareceu novamente o casal de franceses, ele bom de papo, ela muda e com cara de desgosto.
Na estação ferroviária de Badami, charrete compartilhada com os dois franceses, em longo percurso até a cidade, em meio ao aperto das bagagens amontoadas. Logo após a instalação no hotel, a parede vizinha do quarto ao lado começou a ser derrubada. E a barulheira e a poeira dominaram o ambiente.
A dúzia de bananas, os pães de canela e a água mineral encheram o bucho no café da manhã.
Viva! Dia sem viagens em ônibus ou trens, sem embarques e desembarques, sem carregar mochilas. E livre para apreciar as belezas da Índia. Badami contava com rua principal que a cortava de ponta a ponta, ao longo da qual se dispunha o terminal rodoviário, pontos de ônibus, charretes e carroças, hotéis, restaurantes, algumas árvores. A cidade atraía pela simpatia das casas claras, becos estreitos, moradores alegres. As crianças pediam de tudo, canetas, balas, dinheiro, insistentes como moscas. Os alto-falantes das mesquitas chamavam os fiéis para os cultos e orações.
No fundo da cidade se erguiam enormes paredões de arenito avermelhado, guardando templos, grutas, ruínas de fortes encravados na rocha, e entre tudo, um imenso lago de águas esverdeadas. Extensas e sinuosas escadarias levavam aos pontos mais pitorescos das escarpas. Trabalhos em alto relevo, esculturas, colunas, imagens e pinturas desgastadas, predominavam no sitio arqueológico. Era o tipo de lugar para andar a esmo, sem pressa, despretensiosamente. Nada de rigor, muito de descontração.
A lanchonete especializada em comidas rápidas do sul da Índia, servindo masala dosa e idli, se transformou na preferida para os jantares. Eram vários deles para matar a fome, entre conversas com os frequentadores. Um senhor de sarongue branco, emaranhado em baixo das pernas como os usados por Gandhi, se aproximou e, sem mais introduções, perguntou: “quantos filhos vocês têm?” E se sentia satisfeito com a resposta, a felicidade brilhando no rosto.
Ônibus local à cidadezinha de Patadakal. Valeu pela harmonia e beleza do complexo de templos, embora nos detalhes deixasse a desejar, com imagens e esculturas gastas e mal conservadas.
Mais dois trens simples, em vagões quase vazios, pelo norte de Karnataka, até Hospet. O segundo trem parou fora da plataforma obrigando todos a desembarcar entre os trilhos e as dormentes. Nesse momento um garoto com o rosto coberto por máscara de festa regional aproveitou e passou a mão no meio das pernas dela. Mais à tarde, depois de bem hospedados, o encontramos na rua. Ela o reconheceu, mesmo sem a máscara, e o cobriu de tabefes e chutes. Prováveis familiares, dele e dos amiguinhos, se sentavam na porta das casas e assistiram imóveis à cena, talvez desconfiando das razões. Hospet era barulhenta, empoeirada, cidade indiana de verdade.
Depois de noite bem dormida e farto café da manhã, ônibus lotado até Hampi, permanecendo de pé e esmagados durante todo o percurso.

O complexo de ruínas de Hampi se compunha de construções isoladas em extensa área formada por morros, vales e planícies. Os enormes blocos rochosos se amontoavam de maneira esparsa, eram acinzentados, pouco ou nada trabalhados, muitas vezes escorados por colunas, também de coloração cinza, funcionando como remendos recentes, mal feitos, destoando do conjunto. Apenas os templos de Vittala e Hazara Rama se destacaram. Estátuas, colunas, trabalhos em alto relevo nas pedras, ornamentavam as construções. Valia pelas caminhadas sem compromisso pelas trilhas que levavam às ruínas. Pouca gente circulava pelas imediações, garantindo paz e tranquilidade durante as explorações. Na parte mais baixa do complexo, à margem do lago, moradores, vestindo sarongues, saris, túnicas, subiam em barcos redondos rumo à zona rural.
No dia seguinte percorremos novamente as trilhas, de maneira solta e despreocupada. E a avaliação positiva compensou. A vila de Hampi, no entanto, transformava-se a passos largos em mais um daqueles guetos turísticos previsíveis. A proliferação de pousadas, restaurantes e bares ocidentalizados, tráfico de drogas em meio a estrangeiros pseudoalternativos, lixo sonoro estadunidense, a fauna característica que infestava esses pontos, retiravam o pouco que restava da atmosfera autenticamente indiana.
Muitos turistas ocidentais carregavam consigo a inseparável cola, o roteiro informal preparado a partir de experiências anteriores por viajantes conhecidos deles. Na cola havia aonde ir, como ir, onde se hospedar, onde comer, o que ver, o que não ver, o que buscar, o que evitar. Tudo enfim. Seguiam fielmente o que estava escrito na cola. Jamais desviavam um milímetro sequer do estipulado. O que foi feito dos mochileiros aventureiros e exploradores?
Conseguimos sentar em banco arejado e estrategicamente posicionado no ônibus de volta a Hospet. Mas o danado quebrou poucos metros depois. Desembarcamos e tivemos que esperar o seguinte, que partiu lotado. De novo de pé e tentando segurar onde e como podia.
Fomos acordados antes do amanhecer pela poluição sonora. Não das ruas da cidade, mas dos corredores e portas do hotel, onde inúmeros funcionários gritavam, lavavam o piso, batiam e esfregavam portas, pregavam batentes. A barulheira vibrava pelas paredes e móveis. Era a Índia.
Preguiça nos jardins do hotel esperando o embarque no trem noturno. O estômago chiava e as suspeitas recaíam sobre o carneiro ensopado com o qual me empanturrara na noite anterior. Mas o prato estava divino, esplendidamente temperado, como sempre. As travessas ficaram vazias e reluzentes após raspá-las com vários chapattis para não perder nem uma gota daquela delícia.
Desembarque no início da manhã na estação ferroviária de Bangalore. Ao tentar adquirir as passagens de trem noturno para Ernakulan caímos em lista de espera. Os prestativos funcionários da estação sugeriram as cotas de emergência. E funcionou, bem e rápido. Em minutos, lugares marcados e confirmados. O sistema ferroviário público e estatal da Índia demonstrava cada vez mais a eficiência. Qualidade nada desprezível em país pobre com mais de um bilhão de habitantes. As linhas, trens e estações estavam em constante renovação, ampliação, modernização. A informatização da compra de bilhetes e marcação de lugares atingia quase a totalidade do sistema. Em nenhuma das dezenas de viagens pelo país, nas mais variadas classes e tipos de trens, ocorreu qualquer problema com os lugares marcados, nos bancos ou camas.

A despeito do trânsito intenso e das buzinas, que caracterizava as grandes cidades indianas, Bangalore se diferenciava das demais, revelando-se mais arejada, arborizada, com mais parques e, por incrível que pareça, calçadas para pedestres. O povo mais discreto não abordava com insistência. Mas parte dele tendia a ocidentalização. Mulheres vestiam calças, minissaias, malhas amarradas na cintura. Homens usavam bonés. A decoração nas ruas e nos centros comerciais imitava costumes natalinos de outros países, inclusive com o deprimente papai Noel. Cartazes de filmes estrangeiros abundavam nos cinemas. Grupos de amigos trocavam olhares invejosos e competitivos, reparavam nas roupas e cabelos, engoliam a insípida comida rápida das redes transnacionais. Outros trocavam presentes e sorrisos falsos. E me entristeci ao ver a fascinante cultura da Índia esmagada pelo lixo consumista e individualista do ocidente. Ainda que em apenas pequenas e isoladas partes do país, as transnacionais abriam brechas para a destruição cultural indiana.
Noite confortável no trem a Ernakulan sobre os acolchoados do vagão. Pelas janelas do vagão, cenários tropicais enquanto o dia clareava no estado de Kerala. Muito verde e água, coqueirais, palmeirais, arrozais, se alternavam na paisagem. Desembarque em Ernakulan no meio do dia, sob um sol escaldante. Os condutores de riquixá pediam fortunas se negando a pechinchar. Seguimos a pé mesmo.
Acordamos tarde depois de noite interrompida pelo calor, mosquitos e a fome, a bem recebida fome. Café da manhã, farto e saboroso, com direito a vários ovos, em bar animado e bastante frequentado por indianos de sarongue branco.
Barco rumo à cidade antiga de Kochi, local pitoresco e ideal para relaxar. Perambulamos pelas ruas. Sentamos na murada na beira do mar. Os pescadores iam e vinham manuseando estranhas redes de pesca, que lembravam imensas aranhas ao jogar os tentáculos nas águas. Comemos peixe frito.
O sul da Índia guardava atmosfera mais leve e relaxante. O povo não abordava e tudo parecia mais fácil. A frequência turística também se diferenciava da parte central do país. Predominavam estrangeiros mais arrumados, convencionais, recém-saídos das lojas. Exibiam olhares e andares idiotizados. Os pseudoalternativos não apareciam nas ruas. Por outro lado, era evidente o maior nível social e cultural de Kerala, apresentando os melhores índices do país em alfabetização, emprego, poder aquisitivo, distribuição de renda, saúde, habitação, situação social da mulher. Era resultado de décadas de governos estaduais de esquerda que priorizaram o social.
À noite, danças típicas do estado de Kerala em centro cultural. Novas e vãs tentativas de encontrar lugares para jantar em Ernakulan. Duas tentativas sofríveis. E também pizza em lanchonete popular. A grossa massa mais parecia borracha. E a dividiam em quatro pedaços com potente machado, lembrando um matadouro, tal a violência dos golpes. Nem sempre acertavam a mira e a divisão gerava formatos imprevisíveis.
Novamente barco com destino a Kochi. Circulamos pelas ruas comerciais, armazéns, a área do palácio caindo aos pedaços. Em Kochi atraíam os passeios descontraídos, sobretudo pelo acesso ao porto, em rua tomada por velhos armazéns e depósitos, sempre charmosos e interessantes.
À noite, o famoso espetáculo de dança Kathakali, típica de Kerala, cercados de turistas ocidentais das excursões convencionais que mais filmavam ou fotografavam que apreciavam o espetáculo. Os dançarinos dançavam com máscaras e cores esverdeadas.

De ônibus à cidade de Allapuzha onde enchemos a barriga no café da manhã. Na beira do canal o barco partiu com dezenas de turistas estrangeiros. Embarcaram como cavalos, se empurrando como bárbaros, disputando os melhores lugares da mesma maneira que os respectivos governos invadem, pilham, matam nos demais países. Os indivíduos do assim chamado primeiro mundo jogavam lixo diretamente nas águas dos canais. Entregavam “presentes” às crianças das margens, cultivando a mendicância. E lançavam às cegas. A maioria das canetas despencava na água, obrigando as crianças a mergulharem na disputa para pegá-las. Fotografavam como famintos e, para os melhores ângulos, não se importavam em pisar ou empurrar quem estivesse pela frente. E continuavam a atirar objetos, aliviando culpas seculares. Eis os legítimos cidadãos dos regimes que ainda dominam o mundo, possuindo a história recheada de invasões e atrocidades contra outros povos.
O barco percorreu paisagens bucólicas e tropicais. A vida nos canais que corriam paralelos à costa se ativava pela agricultura, pesca, artesanato, pequenas manufaturas de fibras de coco. Coqueirais se estendiam próximos às águas calmas. Habitantes serenos e sorridentes davam muita vida aos pequenos vilarejos.
Do ancoradouro do desembarque, ônibus até Kollan. Em hotel imenso, o bom quarto conquistou pela amplidão e iluminação natural que entrava pelas grandes janelas. O chuveiro frio do banheiro contava com água forte e refrescante. Parecia tranquilo e calmo. A descoberta que havia uma mesquita na parede ao lado do quarto ocorreu antes do amanhecer ao convocarem os fiéis para os cultos e orações. Os alto-falantes começaram a detonar os chamados no último volume. Quase despencamos da cama de susto. E as cenas se repetiam em outros horários do dia.
Dia para ir e voltar de trem à praia de Varkala. A extensa praia apresentava altas falésias de terra e areia em estado avançado de erosão, incluindo numerosos deslizamentos. Águas claras e calmas convidavam a vários mergulhos. Não estava cheia e poucos estrangeiros se distribuíam esparsamente. Os selvagens do barco dos canais provavelmente se dirigiram a locais mais convencionais. A maioria dos bares, restaurantes e pousadas se concentrava na parte superior da falésia. Para não destoar das demais cidades de Kerala, a comida decepcionou. O restaurante simples e pitoresco na beira do mar ofereceu insípidos pratos com frutos do mar. A gororoba só serviu para encher o estômago.
Volta em trem lotado e de pé na ponta do vagão. Adolescentes se movimentavam para cá e para lá a fim de impressioná-la, se penteando diante dos espelhos do fundo do vagão. Faziam poses e expressões de artistas do cinema indiano, lançando olhares canastrões. Os galãs vestiam camisas sociais, por dentro de calças também sociais, com cinto, sapato e tudo o mais.
Detonamos dois convidativos abacaxis da feira de Kollan na mesa do quarto do hotel, ao lado da porta de entrada. O líquido das frutas escorreu pela mesa e chão do quarto. A água trazida do banheiro disfarçou a limpeza, mas passou por baixo da porta, chamando a atenção dos funcionários, sempre aos montes nos corredores. Bateram na porta sem entrar. As gargalhadas só foram quebradas pelo som ensurdecedor dos alto-falantes da mesquita vizinha. As convocações para os fiéis mais uma vez ocupavam o quarto. E não deixava de ser divertido também.
continua...

2 comentários:

  1. A India com sua densa população é um país de contraste, como falou que a ferrovia é estatal é informatizada e eficiente.O sul da Índia, em Kerala, apresentando, entre os estados indianos, os melhores índices de alfabetização, emprego, poder aquisitivo, distribuição de renda, saúde, habitação, situação social da mulher.Isto é muito bom é o desenvolvimento. Por outro lado, a rica e curiosa cultura da Índia está sendo ocidentalizada. Então, a milenar cultura indiana aos poucos vai sendo destruída o que é uma grande perda para a humanidade.

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  2. Bom dia Ivete!
    Grande Índia, grandes culturas indianas!!!
    A ocidentalização, avançadíssima em países vizinhos, naqueles anos, se restringia a algumas das principais cidades indianas, e mesmo assim não em todas as partes delas.
    Espero que o mundo perceba que perder aqueles conhecimentos, assim como perder os conhecimentos milenares dos indígenas do Brasil e região, será, como bem frisou, uma perda irreparável para a humanidade.
    Bom domingo!

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