...continuação
Na parte da manhã tomei carro de aplicativo local, cópia
bem copiada de aplicativo estrangeiro, até o porto na beira do Tapajós. O
motorista, nissei paranaense, morara no Japão e lá conhecera a esposa,
brasileira de Santarém. Retornaram ao Brasil para morar na cidade natal dela.
Ele se deu bem com a família dela e o casamento corria às mil maravilhas. Mas câncer
fulminante a levou em poucos meses. Ambientado na cidade e em boas relações com
a família dela ele permaneceu por ali. Decidiu ser motorista para ganhar algum,
se relacionar com gente e afastar a depressão que o assolava após a viuvez
precoce. Falava sem parar. Na verdade desabafava com quem o ouvia com
paciência. Ao final da corrida me agradeceu por tê-lo ouvido e pela
oportunidade de se dirigir a alguém.
A tripulação ainda fazia a limpeza e a arrumação geral da
embarcação que, estranhamente, partiria no mesmo dia da chegada. Normalmente os
barcos permaneciam dias nos portos das extremidades do percurso para lavagem e
organização geral. Nenhuma suíte ou
camarote se encontrava disponível. As expressões cansadas e irritadas dos
tripulantes davam os primeiros sinais de navio mal administrado e mal
comandado.
Com menos da metade da ocupação dos passageiros nos dois
pisos para armação das redes, o navio partiu de um dos portos de Santarém. Permaneci
um tempo no piso de Lazer, sob as estrelas e relâmpagos a oeste.
Encerrei O Boto,
de Tadeu Sarmento. Era livro de aventura fantástica, embora o autor ameaçasse
destrinchar um Brasil dilacerado pelo capitalismo, ONG’s, empresas evangélicas,
entre outros fundamentalismos.
Comecei a ler Pagu – Vida e Obra, de Augusto de Campos. No livro o concretista esmiuçava a vida heroica e sofrida da personagem, além de presentear os leitores com as principais obras dela, de ficção e não ficção. Oportunidade de ouro para me familiarizar com Patrícia Galvão, a Pagu, personalidade marcante do Brasil do século XX, muito citada, mas pouquíssimo lida e estudada.
Retirei o lençol do beliche superior para servir de lençol
de cima no beliche inferior, onde eu dormiria aquelas noites. Era de elástico e
ficou perfeito, me protegendo feito saco de dormir. Nem saí da suíte para
assistir a chegada e a partida na cidade de Monte Alegre. Tampouco acompanhei a
parada antes do amanhecer em Prainha.
No café da manhã, pago à parte, sanduíche de presunto e
queijo, café com leite, canjica ou mungunzá, maçã.
Sob o céu nublado e chuvoso, bandos de andorinhas faziam a
festa ao redor do navio, entre acrobacias, voos rasantes, curvas fechadas, às
vezes quase parando no ar, entre tantas brincadeiras ao som dos cantos de todas
elas. Alegria total e exibição gratuita aos passageiros, pelo menos para
aqueles que levantavam o focinho dos celulares para apreciar o espetáculo da
natureza.
No meio da manhã os passageiros tiveram que suportar longa
parada abaixo da cidade de Almeirim, em porto particular, para carregar itens
de interesse do proprietário da embarcação. Aproveitei para comprar queijo
coalho dos vendedores locais que subiam nos pisos do navio.
Logo a jusante de Almeirim ocorria a bifurcação, em meio a
ilhas gigantescas, entre as rotas das embarcações que se dirigem ao sul da ilha
de Marajó e a Belém e aquelas que seguem para o Amapá.
Parada noturna em Gurupá.
O dia clareou num dos inúmeros estreitos pertencentes ao
labirinto de ilhas ao sul do arquipélago de Marajó. Chamava a atenção a maior
quantidade de açaizeiros e aningas na beira das águas, embelezando ainda mais a
paisagem com casinhas de madeira sobre as palafitas. O que sempre estragava as
imagens e, sobretudo, a vida dos ribeirinhos, era a praga das empresas
comerciais evangélicas, traficando com a fé do povo, o esmagando na miséria e
na ignorância, fatores de manutenção do poder das classes dominantes.
Parada em Breves pela manhã.
Encerrei o essencial livro Pagu – Vida e Obra, de Augusto de Campos. Depois de virar a última
página me aproximei mais da vida artística, militante e combativa de Patrícia
Galvão, nome tão importante, mas injustamente desprezado e ignorado, na
história política e cultural do Brasil. Emendei com a leitura de Autobiografia Precoce, de Pagu. Eu
acessaria na fonte as ideias e as ações, as certezas e as inseguranças, além de
mais obras e criações dela, Patrícia Galvão.
Durante longas horas permaneci sentado do lado da sombra
no piso de Lazer. A largura e a amplidão inacreditável do rio espantavam os
olhos, ao mesmo tempo em que provocavam sonolência. A modorra, a preguiça e o
calor daquele horário da tarde, no entanto, foram quebrados por vendedores de
creme de açaí, camarão e outros quitutes. Provenientes das margens, eles se
aproximavam do navio em voadeiras. Laçavam os pneus de amortecimento lateral e
embarcavam para vender as mercadorias, ou vendiam do barco mesmo, esticando os
braços para entregar os produtos e receber o pagamento. Raramente voltavam às
moradias ribeirinhas com mercadorias não vendidas.
Mais a jusante, em trecho estreito e curto, mulheres, somente mulheres, se aproximavam a bordo de canoas motorizadas ou a remo esperando doações dos passageiros, da mesma forma que no famigerado estreito de Breves. Do navio poucas doações foram lançadas nas águas dentro de sacos plásticos ou, com muita sorte, dentro das próprias canoas. Nesses trechos havia também casos de prostituição, embora, dessa vez, não notei mulher ou menina embarcar e desembarcar mais tarde. Várias igrejas evangélicas, aquelas empresas que traficam com a fé do povo, erguidas nos vilarejos de onde as mulheres vinham, provavelmente iria embolsar parte ou tudo do que foi doado pelos bem intencionados passageiros dos navios em circulação. Assim, a alienação fundamentalista religiosa se fundia com a indústria da caridade na maior cara de pau.
Anoiteceu. O navio passou ao lado da iluminada cidade de
Barcarena, atraindo os olhares de todos para tanta luz e tanto brilho.
Com muitas horas de atraso deliberado, o navio atracou em
Belém tarde da noite.
Pela manhã, caminhei do bairro de Nazaré à beira da baía
de Guajará para perambular pela zona do mercado Ver-O-Peso. Obras em andamento
por ali, de melhorias e ampliação da Estação das Docas. Tapumes metálicos
cobriam áreas consideráveis. Quiosques temporários foram improvisados para que
o comércio se mantivesse vivo.
Encurtei a estadia em cidade grande que tanto explorara e
que tanto me fascinara em viagens anteriores.
O ônibus saiu lotado ao anoitecer.
O trajeto atravessou de oeste e leste o norte do estado do
Maranhão, possibilitando ver das janelas do ônibus as festas juninas a todo
vapor nas cidadezinhas, como Santa Luzia do Paruá, Zé Doca, Araguanã. As
administrações públicas não se cansavam de mutilar criminosamente as árvores em
figuras geométricas ou temáticas, matando a vegetação e a as tão necessárias
sombras.
Entre os passageiros do ônibus, a mulata clara, trintona,
vinha acompanhada de gringo da mesma faixa etária. Embarcaram em Belém e
conversavam em inglês. Ela, brasileira do norte ou nordeste. Ele, de país do
hemisfério norte cuja língua nativa não era o inglês. Reparei que outros
passageiros repararam neles e comentavam sei lá o quê. Parecendo se sentir
culpada de algo, ela evitava o olhar de todos. Minhas suspeitas sem provas para
explicar aquilo não eram das melhores.
Do lado de fora, a paisagem aplainada reservava babaçuais,
cerrado, carnaubais, e trechos tristes de monocultura extensiva de capim ou
algo similar. Nesse último caso, ao lado de silos enormes e de lojas de
produtos agropecuários importados daquele regime terrorista ao norte do México.
No meio da tarde o ônibus embicou na estação rodoviária da piauiense Parnaíba, cidade também bastante explorada em viagens passadas.
Jantei no canteiro central da avenida São Sebastião. Mergulhei
de cabeça em trezentos gramas de picanha fatiada, baião-de-dois, o cearense por
ser mais cremoso, salada, farofa e vinagrete. E coroei o lauto jantar com jarra
de suco de limão.
Li mais capítulos de
Autobiografia Precoce, de Pagu. A cada linha mais eu me impressionava com a
vida e, sobretudo, a qualidade da obra dessa brasileira única.
Caminhei quilômetros por vias entre a avenida São
Sebastião e a margem esquerda do rio Igaraçu. Trecho silencioso da cidade que
surpreendia pelo urbanismo eficaz e ausência de gente nas ruas e calçadas. Em
construção, outra ponte sobre o rio Igaraçu, ligando, como a já existente, o
centro de Parnaíba à Ilha Grande de Santa Izabel, à praia da Pedra do Sal, ao
município de Ilha Grande, ao vilarejo de Tatus. Aquela grande volta me conduziu
ao Porto das Barcas, centro histórico de Parnaíba, vazio, silencioso,
tranquilo, na beira do rio.
Pela manhã, tomei o ônibus à praia do Coqueiro, no
município de Luís Correia.
Já na praia caminhei bastante, avancei a ponta de pedras e
atingi praia completamente vazia, em dia de maré baixa. Delícia das delícias.
Eu, a areia, o mar, o farol da marinha mais atrás. E mais ninguém. Entrei no
mar de águas límpidas, sob o céu azul e sem nuvens. A maré baixa garantia ondas
inofensivas. Mergulhei, flutuei, nadei, fiquei de pé, deitei, sentei. Em
varredura de trezentos e sessenta graus não se via mais nenhum ser humano.
Aproveitei e fiquei como vim ao mundo, largando a sunga na areia seca. Entrei
mais vezes naquelas águas mornas.
De volta à praia do Coqueiro entrei na barraca mais
vistosa e relaxei o esqueleto. Tomei duas caipirinhas razoáveis preparada com
cachaça piauiense. Para enganar bem o estômago, pedi espeto generosamente servido
de camarões grandes, gratinados e empanados. Numa mesa próxima, três gerações
se faziam presentes. Até aí nada de anormal. O degradante, inaceitável,
repugnante, era a presença da empregada, explicitamente vestida de empregada. A
única negra em mesa de branquelos, quase aloirados, cuidava de duas crianças
mimadas, animalescas e mal encaradas. As duas gerações de adultos, dos pais e
dos avós, desrespeitavam e humilhavam abertamente a empregada e babá. A mãe das
crianças, trintona a quarentona, loira natural ou tingida, com o marido ao
lado, me olhou interessada mais de uma vez, escancarando a hipocrisia e a
falência da família burguesa tradicional. Jamais me envolveria com quem se
comportava como senhora de escravas.
Acabei a leitura do ótimo Autobiografia Precoce, de Pagu, a Patrícia Galvão, livro que precisaria ser lido pelos interessados em artes e na história do Brasil.
Comecei a reler contos variados do mestre Lima Barreto e
me deslumbrar com a realidade e a análises incrivelmente atuais do autor.
Na manhã seguinte tomei dois ônibus à praia da Pedra do
Sal. Pelo trajeto, ao longo da ilha Grande de Santa Izabel, carnaubais
belíssimos, sobre alagados, de ambos os lados da estrada. No ponto final, a
ponta de pedras com o farol, a baía de águas mansas à esquerda, a baía de águas
bravas à direita. Esta, visualmente prejudicada pela profusão de imensos
coletores de energia eólica a perder de vista. Como de praxe, pouca gente,
raras e esbagaçadas barracas de comes e bebes. E vento, muito vento, vento forte
e constante.
Permaneci sentado durante horas sobre ripa de madeira
disposta dentro de restos de barraca rústica e parcialmente coberta de folhas
de palmeiras. Ninguém por ali. À minha frente, a paisagem da areia e do mar,
sem fim. Vez ou outra eu avistava jangadas mar adentro. Os pensamentos
vaguearam sem rumos e provocaram deliciosa sensação de liberdade.
Andei bastante pela zona norte de Parnaíba, próximo à
margem do rio Igaraçu, à estação ferroviária de bairro. A estação e a ferrovia
foram criminosamente desativadas pela ditadura do transporte rodoviário. Triste
calamidade em todo o Brasil, porém mais dramática no nordeste do país, região
que foi servida por dezenas de linhas férreas atravessando os interiores dos
estados. Por toda a região, ao lado dos trilhos soterrados pelo asfalto que
multiplica o calor e a impermeabilidade do solo, ainda se encontram antigas
estações ferroviárias, muitas delas utilizadas por órgãos públicos, ou
simplesmente abandonadas, em ruínas, servindo de abrigo de dependentes químicos.
Continuava mergulhando nas preciosidades literárias de
Lima Barreto, relendo a infinidade de contos agrupados em edição caprichada.
Destaques, entre tantos, para os contos Um
Músico Extraordinário e Como o Homem
Chegou.
Embarquei em ônibus leito à noite.
Não desci nas paradas das cidades cearenses de Camocim e
Sobral. Desembarquei ao amanhecer no terminal rodoviário de Fortaleza e logo me
dirigi ao aeroporto.
Em voo lotado, durante o trajeto aéreo de quase três horas,
me salvaram as crônicas de Rubem Braga, me transportando para os fatos e as
fantasias do autor capixaba, que merece com folga a fama que a história lhe
deu.
Entrei em casa no final da tarde daquele mês de julho, sob
o frio suave e o céu nublado e feio, combinando perfeitamente com as
características físicas da cidade de São Paulo.