segunda-feira, 21 de outubro de 2024

da Bolívia ao Piauí (via Bolívia, Peru, AM, PA, MA, PI) parte (7/7)

 ...continuação

Na parte da manhã tomei carro de aplicativo local, cópia bem copiada de aplicativo estrangeiro, até o porto na beira do Tapajós. O motorista, nissei paranaense, morara no Japão e lá conhecera a esposa, brasileira de Santarém. Retornaram ao Brasil para morar na cidade natal dela. Ele se deu bem com a família dela e o casamento corria às mil maravilhas. Mas câncer fulminante a levou em poucos meses. Ambientado na cidade e em boas relações com a família dela ele permaneceu por ali. Decidiu ser motorista para ganhar algum, se relacionar com gente e afastar a depressão que o assolava após a viuvez precoce. Falava sem parar. Na verdade desabafava com quem o ouvia com paciência. Ao final da corrida me agradeceu por tê-lo ouvido e pela oportunidade de se dirigir a alguém.

A tripulação ainda fazia a limpeza e a arrumação geral da embarcação que, estranhamente, partiria no mesmo dia da chegada. Normalmente os barcos permaneciam dias nos portos das extremidades do percurso para lavagem e organização geral.  Nenhuma suíte ou camarote se encontrava disponível. As expressões cansadas e irritadas dos tripulantes davam os primeiros sinais de navio mal administrado e mal comandado.

Com menos da metade da ocupação dos passageiros nos dois pisos para armação das redes, o navio partiu de um dos portos de Santarém. Permaneci um tempo no piso de Lazer, sob as estrelas e relâmpagos a oeste.

Encerrei O Boto, de Tadeu Sarmento. Era livro de aventura fantástica, embora o autor ameaçasse destrinchar um Brasil dilacerado pelo capitalismo, ONG’s, empresas evangélicas, entre outros fundamentalismos.


Comecei a ler Pagu – Vida e Obra, de Augusto de Campos. No livro o concretista esmiuçava a vida heroica e sofrida da personagem, além de presentear os leitores com as principais obras dela, de ficção e não ficção. Oportunidade de ouro para me familiarizar com Patrícia Galvão, a Pagu, personalidade marcante do Brasil do século XX, muito citada, mas pouquíssimo lida e estudada.

Retirei o lençol do beliche superior para servir de lençol de cima no beliche inferior, onde eu dormiria aquelas noites. Era de elástico e ficou perfeito, me protegendo feito saco de dormir. Nem saí da suíte para assistir a chegada e a partida na cidade de Monte Alegre. Tampouco acompanhei a parada antes do amanhecer em Prainha.

No café da manhã, pago à parte, sanduíche de presunto e queijo, café com leite, canjica ou mungunzá, maçã.

Sob o céu nublado e chuvoso, bandos de andorinhas faziam a festa ao redor do navio, entre acrobacias, voos rasantes, curvas fechadas, às vezes quase parando no ar, entre tantas brincadeiras ao som dos cantos de todas elas. Alegria total e exibição gratuita aos passageiros, pelo menos para aqueles que levantavam o focinho dos celulares para apreciar o espetáculo da natureza.

No meio da manhã os passageiros tiveram que suportar longa parada abaixo da cidade de Almeirim, em porto particular, para carregar itens de interesse do proprietário da embarcação. Aproveitei para comprar queijo coalho dos vendedores locais que subiam nos pisos do navio.

Logo a jusante de Almeirim ocorria a bifurcação, em meio a ilhas gigantescas, entre as rotas das embarcações que se dirigem ao sul da ilha de Marajó e a Belém e aquelas que seguem para o Amapá.

Parada noturna em Gurupá.

O dia clareou num dos inúmeros estreitos pertencentes ao labirinto de ilhas ao sul do arquipélago de Marajó. Chamava a atenção a maior quantidade de açaizeiros e aningas na beira das águas, embelezando ainda mais a paisagem com casinhas de madeira sobre as palafitas. O que sempre estragava as imagens e, sobretudo, a vida dos ribeirinhos, era a praga das empresas comerciais evangélicas, traficando com a fé do povo, o esmagando na miséria e na ignorância, fatores de manutenção do poder das classes dominantes.

Parada em Breves pela manhã.

Encerrei o essencial livro Pagu – Vida e Obra, de Augusto de Campos. Depois de virar a última página me aproximei mais da vida artística, militante e combativa de Patrícia Galvão, nome tão importante, mas injustamente desprezado e ignorado, na história política e cultural do Brasil. Emendei com a leitura de Autobiografia Precoce, de Pagu. Eu acessaria na fonte as ideias e as ações, as certezas e as inseguranças, além de mais obras e criações dela, Patrícia Galvão.

Durante longas horas permaneci sentado do lado da sombra no piso de Lazer. A largura e a amplidão inacreditável do rio espantavam os olhos, ao mesmo tempo em que provocavam sonolência. A modorra, a preguiça e o calor daquele horário da tarde, no entanto, foram quebrados por vendedores de creme de açaí, camarão e outros quitutes. Provenientes das margens, eles se aproximavam do navio em voadeiras. Laçavam os pneus de amortecimento lateral e embarcavam para vender as mercadorias, ou vendiam do barco mesmo, esticando os braços para entregar os produtos e receber o pagamento. Raramente voltavam às moradias ribeirinhas com mercadorias não vendidas.


Mais a jusante, em trecho estreito e curto, mulheres, somente mulheres, se aproximavam a bordo de canoas motorizadas ou a remo esperando doações dos passageiros, da mesma forma que no famigerado estreito de Breves. Do navio poucas doações foram lançadas nas águas dentro de sacos plásticos ou, com muita sorte, dentro das próprias canoas. Nesses trechos havia também casos de prostituição, embora, dessa vez, não notei mulher ou menina embarcar e desembarcar mais tarde. Várias igrejas evangélicas, aquelas empresas que traficam com a fé do povo, erguidas nos vilarejos de onde as mulheres vinham, provavelmente iria embolsar parte ou tudo do que foi doado pelos bem intencionados passageiros dos navios em circulação. Assim, a alienação fundamentalista religiosa se fundia com a indústria da caridade na maior cara de pau.

Anoiteceu. O navio passou ao lado da iluminada cidade de Barcarena, atraindo os olhares de todos para tanta luz e tanto brilho.

Com muitas horas de atraso deliberado, o navio atracou em Belém tarde da noite.

Pela manhã, caminhei do bairro de Nazaré à beira da baía de Guajará para perambular pela zona do mercado Ver-O-Peso. Obras em andamento por ali, de melhorias e ampliação da Estação das Docas. Tapumes metálicos cobriam áreas consideráveis. Quiosques temporários foram improvisados para que o comércio se mantivesse vivo.

Encurtei a estadia em cidade grande que tanto explorara e que tanto me fascinara em viagens anteriores.

O ônibus saiu lotado ao anoitecer.

O trajeto atravessou de oeste e leste o norte do estado do Maranhão, possibilitando ver das janelas do ônibus as festas juninas a todo vapor nas cidadezinhas, como Santa Luzia do Paruá, Zé Doca, Araguanã. As administrações públicas não se cansavam de mutilar criminosamente as árvores em figuras geométricas ou temáticas, matando a vegetação e a as tão necessárias sombras.

Entre os passageiros do ônibus, a mulata clara, trintona, vinha acompanhada de gringo da mesma faixa etária. Embarcaram em Belém e conversavam em inglês. Ela, brasileira do norte ou nordeste. Ele, de país do hemisfério norte cuja língua nativa não era o inglês. Reparei que outros passageiros repararam neles e comentavam sei lá o quê. Parecendo se sentir culpada de algo, ela evitava o olhar de todos. Minhas suspeitas sem provas para explicar aquilo não eram das melhores.

Do lado de fora, a paisagem aplainada reservava babaçuais, cerrado, carnaubais, e trechos tristes de monocultura extensiva de capim ou algo similar. Nesse último caso, ao lado de silos enormes e de lojas de produtos agropecuários importados daquele regime terrorista ao norte do México.


No meio da tarde o ônibus embicou na estação rodoviária da piauiense Parnaíba, cidade também bastante explorada em viagens passadas.

Jantei no canteiro central da avenida São Sebastião. Mergulhei de cabeça em trezentos gramas de picanha fatiada, baião-de-dois, o cearense por ser mais cremoso, salada, farofa e vinagrete. E coroei o lauto jantar com jarra de suco de limão.

Li mais capítulos de Autobiografia Precoce, de Pagu. A cada linha mais eu me impressionava com a vida e, sobretudo, a qualidade da obra dessa brasileira única.

Caminhei quilômetros por vias entre a avenida São Sebastião e a margem esquerda do rio Igaraçu. Trecho silencioso da cidade que surpreendia pelo urbanismo eficaz e ausência de gente nas ruas e calçadas. Em construção, outra ponte sobre o rio Igaraçu, ligando, como a já existente, o centro de Parnaíba à Ilha Grande de Santa Izabel, à praia da Pedra do Sal, ao município de Ilha Grande, ao vilarejo de Tatus. Aquela grande volta me conduziu ao Porto das Barcas, centro histórico de Parnaíba, vazio, silencioso, tranquilo, na beira do rio.

Pela manhã, tomei o ônibus à praia do Coqueiro, no município de Luís Correia.

Já na praia caminhei bastante, avancei a ponta de pedras e atingi praia completamente vazia, em dia de maré baixa. Delícia das delícias. Eu, a areia, o mar, o farol da marinha mais atrás. E mais ninguém. Entrei no mar de águas límpidas, sob o céu azul e sem nuvens. A maré baixa garantia ondas inofensivas. Mergulhei, flutuei, nadei, fiquei de pé, deitei, sentei. Em varredura de trezentos e sessenta graus não se via mais nenhum ser humano. Aproveitei e fiquei como vim ao mundo, largando a sunga na areia seca. Entrei mais vezes naquelas águas mornas.

De volta à praia do Coqueiro entrei na barraca mais vistosa e relaxei o esqueleto. Tomei duas caipirinhas razoáveis preparada com cachaça piauiense. Para enganar bem o estômago, pedi espeto generosamente servido de camarões grandes, gratinados e empanados. Numa mesa próxima, três gerações se faziam presentes. Até aí nada de anormal. O degradante, inaceitável, repugnante, era a presença da empregada, explicitamente vestida de empregada. A única negra em mesa de branquelos, quase aloirados, cuidava de duas crianças mimadas, animalescas e mal encaradas. As duas gerações de adultos, dos pais e dos avós, desrespeitavam e humilhavam abertamente a empregada e babá. A mãe das crianças, trintona a quarentona, loira natural ou tingida, com o marido ao lado, me olhou interessada mais de uma vez, escancarando a hipocrisia e a falência da família burguesa tradicional. Jamais me envolveria com quem se comportava como senhora de escravas.


Acabei a leitura do ótimo Autobiografia Precoce, de Pagu, a Patrícia Galvão, livro que precisaria ser lido pelos interessados em artes e na história do Brasil.

Comecei a reler contos variados do mestre Lima Barreto e me deslumbrar com a realidade e a análises incrivelmente atuais do autor.

Na manhã seguinte tomei dois ônibus à praia da Pedra do Sal. Pelo trajeto, ao longo da ilha Grande de Santa Izabel, carnaubais belíssimos, sobre alagados, de ambos os lados da estrada. No ponto final, a ponta de pedras com o farol, a baía de águas mansas à esquerda, a baía de águas bravas à direita. Esta, visualmente prejudicada pela profusão de imensos coletores de energia eólica a perder de vista. Como de praxe, pouca gente, raras e esbagaçadas barracas de comes e bebes. E vento, muito vento, vento forte e constante.

Permaneci sentado durante horas sobre ripa de madeira disposta dentro de restos de barraca rústica e parcialmente coberta de folhas de palmeiras. Ninguém por ali. À minha frente, a paisagem da areia e do mar, sem fim. Vez ou outra eu avistava jangadas mar adentro. Os pensamentos vaguearam sem rumos e provocaram deliciosa sensação de liberdade.

Andei bastante pela zona norte de Parnaíba, próximo à margem do rio Igaraçu, à estação ferroviária de bairro. A estação e a ferrovia foram criminosamente desativadas pela ditadura do transporte rodoviário. Triste calamidade em todo o Brasil, porém mais dramática no nordeste do país, região que foi servida por dezenas de linhas férreas atravessando os interiores dos estados. Por toda a região, ao lado dos trilhos soterrados pelo asfalto que multiplica o calor e a impermeabilidade do solo, ainda se encontram antigas estações ferroviárias, muitas delas utilizadas por órgãos públicos, ou simplesmente abandonadas, em ruínas, servindo de abrigo de dependentes químicos.

Continuava mergulhando nas preciosidades literárias de Lima Barreto, relendo a infinidade de contos agrupados em edição caprichada. Destaques, entre tantos, para os contos Um Músico Extraordinário e Como o Homem Chegou.

Embarquei em ônibus leito à noite.

Não desci nas paradas das cidades cearenses de Camocim e Sobral. Desembarquei ao amanhecer no terminal rodoviário de Fortaleza e logo me dirigi ao aeroporto.

Em voo lotado, durante o trajeto aéreo de quase três horas, me salvaram as crônicas de Rubem Braga, me transportando para os fatos e as fantasias do autor capixaba, que merece com folga a fama que a história lhe deu.

Entrei em casa no final da tarde daquele mês de julho, sob o frio suave e o céu nublado e feio, combinando perfeitamente com as características físicas da cidade de São Paulo.