Crescia a vontade de percorrer novamente os interiores do
Brasil. E mais uma vez a Amazônia brotou como principal candidata. O oeste do
Acre e o alto rio Juruá caíam como luva para o ponto de partida. E lá eu desenharia
o prosseguimento do roteiro.
No começo de abril o avião pousou em Cruzeiro do Sul.
Passava da meia noite, horário local, mais de duas horas da madrugada segundo
meu relógio biológico. E despenquei na cama do hotel.
Ao amanhecer, pela janela do quarto do hotel, a visão da
curva do Juruá a jusante do centro da cidade. Vista animadora para começo de
viagem repleta de ideias e carente de planos definidos.
A uma quadra do hotel, a construção de Unidade de Pronto
Atendimento, ligada ao Ministério da Saúde, obra do governo federal dos tempos
progressistas de Lula e Dilma. No entanto as obras estavam paradas,
abandonadas, num desserviço a população, resultado da ditadura iniciada com o
golpe de Estado de 2016.
Cruzeiro do Sul continuava sem beleza e sem urbanismo
definido, conforme eu verificara na visita quatorze anos antes. O Tribunal de
Justiça no alto do morro mais alto da cidade, de costas para o rio. A ponte da
União, construída nos tempos progressistas de Lula e Dilma, atravessava o
Juruá, levando à margem direita e à continuidade da BR-364 no sentido leste, ao
restante do estado do Acre. Antes, apenas balsas atravessavam o rio.
Na rampa de terra, a jusante da ponte, o que seria o porto
da cidade. Para o local ser chamado de precário teria que melhorar muito ainda.
Amontoados, acessados por frágeis pinguelas ou pranchas de madeira, flutuantes
caindo aos pedaços ofereciam passagens de lanchas rio acima e rio abaixo. Barcos
nada convidativos, a maioria de somente um piso, transportavam cargas e
passageiros nos dois sentidos, em viagens mais lentas e mais baratas.
Cruzeiro do Sul, ao contrário do costume em cidades
quentes, sobretudo as amazônicas, se encontrava deserta de almas no começo da
noite. Comi muita carne na churrascaria de gaúcho natural de Arvorezinha, cidade
serrana do Rio Grande do Sul. Apenas duas mesas ocupadas. O proprietário,
vestido a rigor, sugando a cuia de chimarrão e tudo mais, se ressentia das
noites vazias da cidade. A situação contrastava com até três anos antes, quando
o estabelecimento vivia cheio e com espera de mesas. Segundo ele, os altos
índices de violência na cidade, com pelo menos um assassinato por dia, afastavam
os moradores da vida noturna. E alertou dos perigos de circular pelas ruas após
o anoitecer. Resolvi não arriscar. Mesmo porque não haveria aonde ir diante daquele
clima de cemitério.
Nem bem clareou o dia e a cidade despertou. Pedestres,
bicicletas, motos, carros, circulavam pelas ruas e calçadas. Voadeiras zanzavam
em todas as direções pelas águas do Juruá. A Cruzeiro do Sul que se recolhia no
começo da noite em pânico pela insegurança pulava da cama bem cedo.
O Acre era o estado brasileiro que mais demarcou
territórios indígenas, não obrigando as populações originais a perambularem
pelas cidades por falta de terras para viverem e manifestarem as culturas tradicionais.
As duas campanhas da borracha, no final do século XIX e em meados do século XX,
deslocaram multidões dos sertões nordestinos, sobretudo do Ceará, para regimes
de quase escravidão na coleta e defumação do látex proveniente das
seringueiras. Desse modo, o Acre, especialmente Cruzeiro do Sul, parecia filial
do Ceará, apesar de deveras distante daquele estado.
Em meia hora o ônibus urbano cruzou a divisa entre o Acre
e o Amazonas e me deixou na pacata Guajará. A cidadezinha amazonense se erguia
também na margem esquerda do Juruá. Contava com orla fluvial urbanizada,
calçadão, quiosques, árvores, sombra, tudo bem de frente às águas do rio. As
ruas transversais ou paralelas ao rio, majoritariamente de terra ou com restos
de asfalto velho, primavam pelo sossego e tranquilidade. Muitas moradias e
comércios construídos em madeira e levemente acima do solo. O porto, dotado de
ampla balsa flutuante acessado por rampa asfaltada, humilhava o lamaçal de
Cruzeiro do Sul, cidade no mínimo quatro vezes maior que Guajará.
Andei e me sentei em banco do calçadão, sob as sombras da
orla, com direito à vista privilegiada do Juruá, da margem oposta, praticamente
desabitada, das poucas canoas em circulação.
Perto da modernosa igreja de São Francisco de Assis, com
discreta praça e coreto em frente, almocei no restaurante familiar. Fui de
frango ensopado, arroz, feijão, saladinha. E caminhei lentamente ao ponto do
ônibus de volta a Cruzeiro do Sul.
Perambulei pela zona do mercado e pelo principal trecho
comercial da cidade. Apesar de dinâmicos e vibrantes, os vários setores do
mercado, dispostos em construções separadas, compunham conjunto feio de doer.
Nada, absolutamente nada, chamava visualmente a atenção.
Em quiosque do canteiro central da avenida Rodrigues Alves
preenchi o estômago vazio. Inúmeros cachorros e pedintes ziguezagueavam pelas
mesas de plástico. E, em cidade esvaziada à noite, retornei ao hotel para ler bastante
A Elite do Atraso, livro de Jessé
Souza.
Sem o café da manhã do hotel me dirigi a pé ao flutuante
precário de onde partiria a lancha Juruá acima. Sentei na última fileira da
embarcação. Atrás de mim o cubículo do banheiro e o motor de 200 HP. A lancha,
coberta, mas sem proteção lateral fixa, apenas com lonas plásticas móveis,
comportava vinte e oito passageiros, distribuídos em sete fileiras. Não havia
corredores laterais ou centrais. No meio de cada uma das fileiras havia encosto
móvel, com trincos, para que os passageiros da frente pudessem acessar o
banheiro, atrás. Imaginem a operação de guerra para que os mijões atingissem o
cubículo da popa. Um passageiro de cada fileira, o sentado no centro, se
levantava. Alguém abria o encosto móvel deslocando os trincos nada
lubrificados. Assim, o mijão se deslocava, lentamente, fileira por fileira, da
proa até a popa. Na volta tudo se repetia no sentido contrário. E usei o dito
cubículo. Eu não conseguia ficar de pé devido ao teto de cerca de um metro e
meio de altura. Agachado também não em razão da altura do vaso sanitário.
Sentado, nem pensar pelas condições de higiene. Acabei ficando numa posição
desconfortável, nem de pé, nem de cócoras, nem sentado, com os músculos
tensionados, a cabeça prensada no teto.
Nas primeiras horas fez frio, sensação agravada pela chuva
fina e pelo deslocamento da lancha. As lonas plásticas laterais foram arriadas.
Aí não dava para ver nada do lado de fora, apenas as cabeças dos passageiros à
frente. Os assentos não eram dos piores anatomicamente, acolchoados, num bloco
contínuo para cada fileira. Inacreditável era o volume do motor da popa. O
piloto o exigia ao máximo. Na primeira parada, para desembarcar passageiro numa
comunidade ribeirinha, o motor foi desligado e logo percebi que estava quase
surdo. Eu pouco ouvia o que acontecia ao meu redor. As vozes, inclusive a
minha, além de baixas, pareciam vir de um pato, por ondas curtas, de um rádio
amador antigo. E ali ainda era o comecinho do percurso. Definitivamente a opção
mais apropriada de navegar pelos rios era em barco tradicional, lento, com
espaço para andar, circular, apreciar a natureza do entorno da maneira
desejada.
O Juruá se estreitava rio acima e a vazante avançava com
rapidez. Se sucediam as famosas curvas do rio, sem perdão, algumas perto de
cento e oitenta graus.
Parada em Porto Walter no meio do dia, cidade erguida também
na margem esquerda do rio. Os passageiros interessados teriam meia hora para encomendar
almoço em pensão no centro, a poucas ruas dali. O motor da lancha foi desligado.
Alívio dos alívios, mesmo sem ouvir nada ao meu redor. Subi a alta escada de
madeira do porto, alcancei a rua da beira do rio, caminhei ao centro da cidade.
Estiquei as pernas.
Passageiros almoçados, lanchados, descansados. E a viagem
prosseguiu Juruá acima. A chuva passou. O sol ameaçava furar o bloqueio das
nuvens carregadas. As lonas laterais foram recolhidas e a paisagem das margens
do rio se descortinou. A floresta, comunidades isoladas, placas indicativas dos
limites do parque nacional da Serra do Divisor na margem esquerda.
Vez ou outra a lancha se encostava à margem para que o piloto
pudesse desenroscar folhas e raízes da hélice ou entregar encomendas aos
ribeirinhos. Nesses momentos, de maneira fulminante, os piuns atacavam em
bloco, visando especialmente carne e sangue novo. Os braços ficaram pontilhados
de picadas que coçavam barbaridade logo de cara.
Ao final da tarde, após curva acentuada, mais uma entre as
milhares do sinuoso Juruá, surgiu no alto do barranco da margem esquerda a
cidadezinha de Marechal Thaumaturgo, exatas nove horas depois da partida de
Cruzeiro do Sul.
Desembarquei no flutuante, subi a longa escada de madeira,
avancei a rampa asfaltada e, logo no começo da rua beira-rio, entrei no hotel
sem recepção. O funcionário do mercado embaixo me indicou quarto básico, limpo,
amplo, suficiente. Antecipei o banho frio em local nem tão quente assim. Estava
quase surdo, é verdade, mas bem disposto.
Saí cedo para
jantar bem no único restaurante da cidade. Em ambiente caseiro comi filé e
picanha grelhada na chapa, acompanhados de arroz, feijão, macaxeira cozida,
purê de macaxeira, farofa. E um generoso copo de suco de cupuaçu para não
perder o costume.
Silêncio na cidade naquela noite de sábado. Adolescentes
se olhando na praça alta, em desnível e de frente para o Juruá. Outros nas
janelas. Poucas motos e carros. Poluição sonora quase zero. Delícia das
delícias. Meus ouvidos, ainda zunindo terrivelmente, agradeciam a folga. As
ladeiras sobre o barranco alto e de frente para o rio atraíram logo de cara.
Me lembrei das imagens pela internet da impressionante
passeata, toda vermelha de bandeiras e bandeirolas, feito cobra comprida e sinuosa,
pelas ruas de Marechal Thaumaturgo durante a campanha eleitoral municipal de
2016. A luta dos moradores era para manter a administração da prefeitura pelo
PT. Pela diferença de menos de um por cento nos votos, porém, venceu o
representante das classes dominantes, com apoio da grande mídia que participou
do golpe de Estado de 2016.
Uma das muitas ações arbitrárias, desumanas e ilegais do
novo prefeito empossado em 2017 foi deixar de pagar os salários dos
funcionários públicos municipais. A categoria corretamente se revoltou, ocupou
a prefeitura e trancou o prefeito no interior do prédio. Somente quando o dito
cujo liberou a metade do valor devido, os funcionários soltaram o meliante. Na
pequena câmara dos vereadores apenas um parlamentar ainda o apoiava. Para
auxiliar a população, a limpeza das ruas estava por conta do governo estadual,
encabeçado pelo PT.
Na margem do rio Juruá oposta à cidade, indígenas do povo
Ashaninka montavam acampamentos provisórios enquanto duravam os afazeres na
cidade. De voadeira vinham a Marechal Thaumaturgo para compras, assistência
médica, social, entre outras tarefas urbanas. Elas vestiam as tradicionais
túnicas folgadas e coloridas. Eles, mais comumente usando calção e camiseta, cumprimentavam
e conversavam. Os Ashaninka eram trilíngues e fluentes em ashaninka, espanhol e
português. As principais aldeias se localizavam Juruá acima, tanto em
território peruano como brasileiro.
Reparei também em casal jovem na praça central. Ele, de calção
e camiseta, rosto pintado de vermelho. Ela, de vestido acima dos joelhos. Ambos
sorridentes e sempre me cumprimentavam. Eram da etnia Kashinawa. Vez ou outra
circulavam em grupos maiores.
continua...
Boa noite amigo Augusto, super relato!!!.É pura verdade a questão da violencia nessas cidades pequenas!.Eu morei em uma cidade garimpo no Maranhão Chamada ( chega tudo )...a noite super perigosa... nossa🙏🏼
ResponderExcluirA violencia também aconteceu muito nos seringais do Acre, os cearenses,praticamente poucos voltaram para seu Estado Natal e muitos pobres!.Realidade de trabalho triste nas terras brasileiras!.Quem lucrou muito foi a Malasia, cujo robaram sementes do Brasil.Hoje reconhecida com a Boracha. Chico Mendes so lembrado pelos Historiadores
A QUESTÃO dos pins é grande, quando eu voltei do amazonas com ton sür ton de picadas
E sempre esperança na politica do Brasil ,com terras para os Indios, agricultotes e crescimento economico para o País🇧🇷🇧🇷🇧🇷🇧🇷
Olá!
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
Precisas as suas observações nos detalhes. É por aí mesmo.
Somente em viagens assim aprendemos o que é o Brasil de verdade. O Brasil real é muito diferente da ladainha a favor do sistema vomitada diariamente pelos meios de comunicações da burguesia. Nos defeitos e nas qualidades.
Então vamos viajar bastante em busca da alma brasileira.
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