...continuação
Tomei o ônibus que, após cruzar a linha do equador e
entrar no hemisfério norte, me deixou no centro de Macapá. Mas bem longe do
hotel. Andei bastante, saltando os obstáculos das calçadas ou da falta delas.
Faminto e sedento coloquei o chapéu e, besuntado de
protetor, caminhei na direção do rio Amazonas. Duro eram as calçadas, a
descontinuidade delas, a ausência pura e simples delas. A caminhada se tornou
verdadeiro salto de obstáculos. No trajeto, imóveis baixos, raríssimos
edifícios altos, árvores e sombras eventuais. Me intrigaram as coberturas
contra o sol sobre os túmulos do cemitério. Para os vivos, porém, a sombra era
artigo raro.
Avistei ao fundo as águas barrentas do rio Amazonas, distantes
da murada naquele horário. A maré baixa expunha extensa faixa de areia, indo
além do longo e estreito trapiche e da estátua de São José, padroeiro da
capital amapaense. Erguida na beira do rio, em formato pentagonal, impondo
respeito pelas extensas dimensões horizontais, o forte de São José de Macapá se
postava no trecho mais avançado nas águas, rodeado de gramados, árvores
esparsas, ciclovias.
Mais ao sul, o cais de algumas linhas menores de barcos e
lanchas, inclusive com destino à cidade suspensa de Afuá, situada no noroeste
da ilha do Marajó, onde permaneci anos antes. Pelo ancoradouro, tudo seco,
somente um barco estacionado sobre a areia. O final da tarde, horário em que a
maré encheria, permitiria novamente a circulação fluvial e marítima. O
restaurante onde tanto me esbaldei naqueles anos, em caldeiradas divinas, do
outro lado da avenida do cais, não existia mais, substituído por dois hotéis
envidraçados.
Após o almoço comprei um litro de açaí fresco, que matei
em minutos dentro do quarto do hotel, sem açúcar mesmo, direto do furo no saco
plástico que fiz com o canivete.
Jantei entre caipirinhas bem temperadas, picanha alta e ao
ponto, acompanhamentos saborosos, porém, redundantes. Serviram arroz e
baião-de-dois. Serviram farofa e farofa de ovo. Música ao vivo com os padrões
da MPB, no formato voz e violão, em volume civilizado. Saí feliz e estufado,
tanto que circulei pelas redondezas para facilitar a digestão e reduzir o
inchaço.
O ônibus cruzou bairros e mais bairros de Santana e
Macapá. Não notei miséria evidente, apenas a tradicional pobreza da maioria que
contava com o mínimo para sobreviver. E valeu também para apreciar as atraentes
macapaenses e santanenses.
Encarei a caminhada de volta ao hotel debaixo de sol
absurdamente, escandalosamente, indecentemente, quente. Às vezes pensava que
minha cabeça iria rachar ou que desmaiaria a qualquer momento. O sol da linha
do equador era de impor respeito e temor.
No jantar experimentei bistrô em bairro que, a despeito do
festival de horrores das calçadas, concentrava as camadas altas da sociedade
macapaense. O pequeno estabelecimento lotou de galera branca, clara, de olhos
verdes, vindo em carrões. Ninguém, absolutamente ninguém, indígena, mestiço,
cafuzo, mulato, mameluco, caboclo. Descolei mesinha do lado de fora para evitar
me contagiar daquilo.
Dei voltas pela região da avenida FAB, repleta de escolas.
Estudantes lotavam calçadas e pontos de ônibus. No mais, bairro vazio, com
comércio e vários bares fechados. Tudo estava na penumbra naquela noite do meio
da semana. A avenida FAB leva esse nome por ter sido pista de pouso de
aeronaves durante os primórdios da ocupação do homem branco, em que o Amapá era
ainda território federal.
Visitei o marco Zero, a linha do equador, situado no
bairro macapaense de Zerão. A atração oferecia o monumento suspenso,
assinalando a linha do equador, marcos de concreto, e finalmente o obelisco bem
alto, com listas verticais em verde e amarelo, mais o orifício circular no
topo. Do lado oeste, o estádio Olímpico Zerão. A leste, a avenida Equatorial
que levaria, bem adiante, à margem do Amazonas.
O trânsito de ambas as cidades amapaenses não era
agressivo. Pedestres levantavam o braço e logo os veículos paravam para eles
atravessarem. O gerente mineiro do hotel lamentava os altos preços praticados
no Amapá, de imóveis, alimentos, combustíveis, serviços. Por outro lado estava
gostando da terra e das pessoas, tanto que a esposa viria se instalar em breve.
No início da manhã eu já embarcava no navio, no porto do
Grego, em Santana. Antes circulei pela região do porto, interessante ponto de
comércio, bares, hotéis barra-pesada, puteiros.
Depois de apitar muito, e aguardar calmamente os
retardatários, que corriam para embarcar cheios de bagagens, o navio partiu em
meio às águas levemente agitadas do rio Amazonas, passando ao lado de navios
cargueiros, tendo em terra, à esquerda, a praia da Fazendinha.
Conversei com o soldador, morador de Altamira, que se
aventurara em garimpar pelo Amapá. Chegou a acumular oito gramas de ouro. Acabou
por se desencantar. Partia para tentar nova vida em Imperatriz, no Maranhão. Descreveu
a criminalidade insana na paraense Altamira após a invasão de todo o tipo de
gente durante a construção da hidrelétrica de Belo Monte.
Ignorei a refeição paga à parte do preço da passagem. Comi
o sanduíche de salame e queijo, mais duas bananas, trazidos do bufe do café da
manhã do hotel em Macapá.
À medida que o navio se afastava do litoral amapaense, a
cidade de Macapá surgia ao fundo, com a linha dos edifícios em destaque. Mais
adiante, o estreito composto pela comunidade do Limão, ao longo do qual, da
mesma forma que no também marajoara estreito de Breves, crianças, acompanhadas
ou não das mães, se aproximavam em canoas. Aos gritos e abanando as mãos,
pediam doações dos passageiros, alimentos, roupas, o que fosse. Alguns a bordo
lançavam sacos plásticos recheados. Não por acaso, nas margens do estreito,
empresas evangélicas escravizavam a mente dos moradores usando e abusando de balelas
como “deus proverá”, “só cristo salva”. Mas quem provia mesmo, quem salvava
mesmo, eram os passageiros dos navios e balsas que por ali trafegavam. O
fundamentalismo servia para sequestrar mentes e bolsos dos pobres coitados.
Aproveitei as nuvens e me abandonei no piso de cima,
dotado de mesas e cadeiras fixas, entre conversas com o soldador, enquanto
apreciava a paisagem e as voadeiras que atracavam para vender camarão e açaí. De
uma das voadeiras, pulou no navio uma adolescente de longos cabelos pretos e
shortinho milimétrico, cheia de amor para dar aos eventuais interessados. Aningas
abundavam nas margens dos canais indicando nos caules afinados o nível da maré
alta. As nuvens engrossaram e escureceram. Ventou forte. A pancada de chuva
expulsou todos dali. Cada um se refugiou na respectiva rede, suíte, ou na área
coberta da lanchonete.
E o navio seguia em meio ao labirinto de águas e ilhas
pertencentes ao arquipélago do Marajó. Local facílimo para se perder pelos
canais, estreitos, água grande, curvas, retas. Nova pancada de chuva ao
anoitecer, dessa vez precedida de raios e trovões, compondo visual
impressionante de nuvens cor de chumbo, cobrindo as copas das árvores da
floresta, se aproximando aos poucos do navio.
Algum movimento ali na lanchonete da popa. Na mesa do
canto, as latinhas vazias de cerveja lotavam o espaço. Noutra, um casal em que
ela me olhava de vez em quando. Em pé, três adolescentes sussurravam com
expressões adultas. Duas mulheres do outro lado se mostravam disponíveis.
Entre ligeiras acordadas, dormi profundamente durante a
noite. Nem ouvi as paradas previstas, em Curralinho e São Sebastião da Boa
Vista, vilarejos do Marajó. O café da manhã, única refeição gratuita daquele
trajeto, veio de melão, melancia, cuscuz, pão com queijo, café com leite,
mingau. O navio percorria água grande, as margens muito distantes.
Estava demorando pra começar a tortura! Antes das 8h as
caixas de som da lanchonete começaram a vomitar o lixo fundamentalista
evangélico. Buscavam cooptar mais ovelhinhas para engordar o faturamento das
empresas do ramo. Fornecer alimentação incluída no preço da passagem, como
praxe na maioria das linhas fluviais de passageiros da Amazônia, nem pensar. O
negócio era faturar para o comércio da fé.
O navio voltou a percorrer canais estreitos após visões das
unidades de beneficiamento de bauxita. Passou ao lado de toda a cidade de
Barcarena. E novamente trechos largos, cujas margens se afastavam a leste e a
oeste.
E a linha dos edifícios altos de Belém apareceu no
horizonte. Em seguida a embarcação perfilou o centro velho, a casa das Onze
Janelas, o forte do Castelo, as igrejas, o mercado Ver-O-Peso, os casarões. Após
me despedir dos passageiros chegados, desembarquei na Doca da capital paraense.
Depois de beliscar no entorno do mercado Ver-O-Peso, à
noite deu vontade de comer bem. Escolhi a dedo o restaurante. Conversei com o
garçom, com a recepcionista, ambos simples e, como eu, contrastando com a
formalidade artificial do ambiente. Nas demais mesas ocupadas, a fina flor da
elite belenense. Aniversariantes com direito a bolo, garçons mascarados e
fantasiados coreografando e cantando o feliz aniversário, em ritmo de salsa. E cantando
em inglês e espanhol, nadinha em português, a língua falada em Belém, inclusive
pelos da mesa festeira. Os clientes próximos sorriam acanhados, não sabendo se
era de bom tom se imiscuírem. As mesas livres se ocupavam aos poucos. As
belenenses aterrissavam vestidas para matar, nem sempre com bom gosto ou
discrição. A ideia era chamar a atenção, para o bem ou para o mal. Rostos
entupidos de maquiagem, vestidos estrambólicos, provocantes, chamativos. Entre
garfadas e goles, ouvi os garçons comunicarem que de outubro ao natal a casa e
os garçons se decoravam para os festejos, envolvendo os clientes na atmosfera
tocante. Saí de lá embriagado, com o estômago forrado, feliz da vida e com
direito a contemplar a nata da cidade botando para quebrar.
Almocei em restaurante especializado em comidas paraenses.
A comida vinha emoldurada com suposto refinamento, atendimento atencioso e,
sobretudo, preços bem salgados, ainda mais se comparadas com a mesma comida
servida na simpática região do mercado Ver-O-Peso. Mas valeu o filé de filhote
grelhado, acompanhado de arroz com cenoura, farinha d’água, vinagrete e meio
litro de açaí cremoso. Mesmo sem fome, comi tudo, principalmente o açaí,
ingerido à paraense, sem açúcar, na base de colheradas entre as garfadas ao
peixe.
No avião de volta para casa, mais leituras e cochilos.
O avião pousou no aeroporto internacional de Guarulhos.
Ônibus comum, numa marginal Tietê surpreendentemente sem congestionamento, ao
metrô Tatuapé. Entrei em casa em meados de agosto. O frio e a garoa me
recepcionaram depois de dois meses afastado de São Paulo.
Augusto, estava relendo posts antigos do meu blog e vi um comentário seu de 2012 (na época o blog tinha outro nome). Cliquei no seu link e fiquei feliz de ver que seu blog continua firme e forte. Enfim, só quis dar um oi aqui! Abraço!
ResponderExcluirOi Douglas, como vai?
ExcluirQue bom que estamos firmes e fortes, relatando e compartilhando nossas impressões, sensações e reflexões de viagens pelo Brasil e outros países.
Agradeço e retribuo o seu OI.
Abraços e comente sempre!
Oi Viajante,
ResponderExcluirMaravilhosos seus relatos pela Amazônia. Jamais pensei que o Amapá fosse visitado turisticamente.
Você escreve muito bem e não dá vontade de parar de ler.
Como organiza suas viagens?
Parabéns pelo Blog!!!
Rodolfo
Oi Rodolfo, obrigado pela visita e pelos comentários.
ExcluirO Amapá vale sim várias visitas, pela capital e pelos interiores. Paisagens fascinantes, culturas ricas e povos acolhedor é o que não falta.
Viajo por conta própria e sem qualquer tipo de patrocínio. Me interessam mais o cotidiano dos povos visitados e a a paisagem ao redor do que atrações turísticas previsíveis.
Abraços e comente sempre!
Boa noite amigo. Uma magnitude viagem.Lindas paisagens.Relatos ricamente descritos.Parabéns pelo Blog
ResponderExcluirOlá, Viajante.
ResponderExcluirEstava lendo seu post e também gosto de viajar, fiquei curiosa em conhecer a Amazônia, espero passear em breve por estes lados.
https://assistentedeviagem.com.br/seguro-viagem/"
Oi Vania Maria, obrigado pela visita e pelos comentários.
ResponderExcluirQue bom que gostou. Procuro sempre escrever o que vejo e sinto.
Há diversos relatos publicados no blog referentes às viagens pelo Brasil e outros países da América, África, Ásia, Europa.
Pesquise, leia e comente sempre!
Oi Fabiana, obrigado pela visita e pelos comentários.
ResponderExcluirRelatos de viagens pela Amazônia não faltam nesse blog. Explorei a região por diversas vezes e publiquei minhas experiências aqui.
Pesquise, leia e comente sempre!
Interessante suas experiências e os relatos de suas viagens. Fico aqui imaginando, como deve ser viajar na Amazonas, e contato com outras culturas.
ResponderExcluirOlá, obrigado pela visita e comentários. Não imagine, faça e experiêncie a viagem. Não vai se arrepender. Comente sempre ...
ExcluirIsto foi uma boa viagem, bem detalhada, Eu tenho vontade de fazer este trajeto. Vou esperar minha filha crescer e poder carregar minha bagagem para poder fazer esse caminho e a viagem para Macchu Picchu.
ResponderExcluirOI Jorge, obrigado pela visita e comentários.
ExcluirFique à vontade de pesquisar e ler esse e outros tantos relatos de viagens pelos interiores do Brasil e outros países, inclusive ao Peru e Machu Pichu. Comente sempre...
Gostei de seu blog, relatos e fotos muito interessantes. Estou descobrindo agora esse mundo dos blogs de viagem.
ResponderExcluirOlá, obrigado pela visita e comentários.
ExcluirFique à vontade de pesquisar e ler esse e outros tantos relatos de viagens pelos interiores do Brasil e outros países.
E comente sempre...