...continuação
Ao anoitecer fui ao bucólico e aconchegante largo de São
Sebastião, em cujo centro se ergue o imponente teatro Amazonas. Saboreei caldeirada
de peixe. As duas caipirinhas, bem temperadas, carregadas no limão suculento,
animaram a já animada alma.
A esplendorosa cidade de Manaus nada mudara em dois anos.
Obras e mais obras, a maioria interrompida, suspensa, inacabada. Tapumes
envelhecidos cercavam arremedos de praças, ruas, construções antigas e novas.
Caminhar nas assim chamadas calçadas manauaras se transformava em verdadeiros
enduros de resistência e equilíbrio. Somado à crônica ausência de árvores nas
ruas ou de praças refrescantes, do urbanismo submisso aos automóveis, circular
pela cidade durante o dia se mantinha uma temeridade. Eu continuaria batendo na
mesma tecla até que uma administração democrática e popular expulsasse os
criminosos da prefeitura e da câmara de vereadores, reorientando os rumos
urbanísticos da cidade. Enquanto isso, porém, Manaus continuaria anti-amazônica
e anti-indígena, desumana para a sofrida população manauara.
Mas nem tudo beirava à catástrofe social em Manaus. A
beira do rio Negro, o mesmo rio a que a cidade dava as costas, permanecia
fascinante. Vida, muita vida, pulsava na feira da Manaus Moderna, na avenida
que margeia o rio, no vibrante porto da Escadaria. Balsas, navios, barcos,
canoas, lanchas, voadeiras, de diversos tipos e tamanhos. Passageiros
embarcando e desembarcando repletos de bagagens e histórias. Carregadores
enchendo e esvaziando caminhões e embarcações. Vendedores de passagens, de passeios
turísticos, de comes e bebes. Barbearias nas calçadas ou nas balsas flutuantes.
Peixes recém-pescados vendidos ou leiloados na beira das águas. Trabalhadores,
curiosos, turistas, oportunistas, putas, vagabundos, aproveitadores. Gente,
muita gente, em atividade frenética. Manaus fervia assim havia décadas. E aquela
miríade me embevecia sempre.
A deliciosa mudança de planos naquela viagem desamarrada começou
com lampejos no último dia do navio pelo vale do Amazonas. E menos de vinte e
quatro horas depois se tornava realidade. Consultei as opções de navios com
destino a Tabatinga pelas imediações da estação hidroviária. Pechinchei,
choraminguei, antes de atingir valor aceitável, para ida e a volta em suíte no
navio escolhido.
Na manhã seguinte, toca enfrentar o asqueroso café da manhã
do hotel. Logo ao descer ao salão do subsolo, sem janelas e com a televisão
ligada, avistei as frutas velhas e passadas na bancada. Havia cerca de dez
fatias de abacaxi no prato, oito delas com mancha preta ocupando mais da metade
do círculo. O garçom vestia uniforme puído, anacrônico e inadequado ao clima
amazonense, na base de calça preta, camisa branca e gravata borboleta. Comi o
que deu para comer, pouco ou quase nada.
Lá fomos eu e o colega manauara a restaurante
especializado em caldeiradas. Duas caipirinhas bem temperadas precederam a
generosa e saborosíssima caldeirada de tucunaré. A porção servia três pessoas,
mas detonamos tudo em minutos.
Conversamos sobre política nacional, o golpe de Estado de
2016 no Brasil, as possíveis saídas para conquistar a democracia social.
Abordamos as qualidades e as mazelas de Manaus. Também sobre o festival do
Boi-Bumbá de Parintins. Ele e a namorada desfrutaram por cinco dias da
manifestação cultural, ainda que pasteurizada pela indústria cultural.
Anoitecia ao visitarmos o parque Rio Negro, inaugurado
anos antes, justamente onde funcionou o antigo cais de São Raimundo, do qual partiam
as embarcações rio Negro acima. Na época local imundo, decrépito, sobre lamaçal,
ao lado de favelas, puteiros, botecos barra-pesada. Sem ser enorme, o parque
seduzia pela vista do rio Negro, pelas boas instalações para os manauaras
caminharem, se exercitarem, relaxarem, pescarem, se socializarem. Mas,
principalmente, pela possibilidade de a cidade começar a se abrir para a
natureza e se reaproximar das belezas do rio Negro, rompendo com a lógica
estúpida de lhe dar as costas. Que servisse de exemplo para outras iniciativas
de espaços públicos e democráticos na margem de águas tão fascinantes.
Comprei o último número da revista Caros Amigos e, no sebo na praça da Polícia, o livro Estas Histórias, de Guimarães Rosa.
Almocei por ali mesmo, depois de ter traçado meio litro de açaí fresco com
farinha de tapioca, seguido de trezentos ml de guaraná com limão e mel.
À noite, bares e restaurantes do largo São Sebastião
apresentavam pequeno e silencioso movimento, apesar do céu escandalosamente
estrelado, da lua quase cheia, da temperatura agradável compensando o caldeirão
diurno. A carruagem estacionada próxima à entrada do teatro Amazonas atraía
fotos.
Enquanto relaxava nos bancos sob as árvores, ao lado do
sebo em construção metálica do largo São Sebastião, três músicos locais, com
vinte e poucos anos, vestindo roupas surradas e sujas, se sentaram e
cantarolaram canções próprias ao violão, informalmente, para eles mesmos, para
passar o tempo. Melodias, letras, vocais, da mais alta qualidade. Eu ficaria
ali por horas ouvindo aqueles desconhecidos talentos manauaras.
A ideia de assistir no teatro Amazonas ao espetáculo com
texto e atuação de Paulo Betti veio a calhar. A peça divertiu a despeito da
péssima acústica do teatro, mais voltado a concertos musicais do que a vozes
sem microfone. E havia a imponência da construção interna, o teto, a disposição
dos diversos setores pelos andares, a suntuosidade. A decoração, totalmente
estrangeira, nos temas, motivos, materiais, autoria, ignorava o universo artístico,
temático e a abundância de materiais da Amazônia, mesmo ao redor de Manaus. O
bom público riu, se emocionou, aplaudiu intensamente o autor e ator sorocabano.
Separei três sanduiches de queijo, com pães dormidos
mesmo, do sofrível café da manhã do hotel. Seria meu primeiro almoço no navio,
que provavelmente serviria apenas o jantar, a refeição tradicional das
primeiras noites fluviais. Caminhei à estação hidroviária, o porto
criminosamente privatizado pelo coronel da época, encarecendo passagens e
fretes, em construções amplas, mas eternamente vazias pela ausência de
interessados.
Entrei no navio, embarcação mais organizada, mais
confortável, mais segura, mais robusta que as demais.
Após a conferência informatizada fui designado à suíte marcada.
E que suíte! Saleta de entrada com frigobar e bancada, cama de casal em quarto
amplo, com mesa e duas cadeiras, ar condicionado, espelho grande, outra bancada
em “L”, banheiro espaçoso, pequenas janelas basculantes no quarto e no
banheiro, sacada grande e privativa. Várias tomadas e cabides disponíveis
enriqueciam a funcionalidade da cabine. Mais dois salva-vidas, como norma de
segurança. O navio contava com enfermeira, duas salas de estar, salão de
beleza, lanchonete, copa e mesa de refeições no formato de bufê.
A cheia no setor de redes do piso Superior fez com que
liberassem aos novos passageiros também a área coberta do piso de Lazer para
atar redes. Infelizmente. Duas televisões no piso de Lazer, na área coberta e
na área descoberta. Infelizmente. Na parte descoberta, pequena churrasqueira,
aparelhos de ginástica aeróbica.
O embarque seguia a passos rápidos, mas a lotação máxima
de 676 passageiros ainda estava longe de ser alcançada.
O navio partiu ao meio-dia, descendo o rio Negro e
deixando para trás a silhueta nada atraente de Manaus. Mas que suíte ampla,
confortável, iluminada, arejada! Nada imaginável pelos brasileiros que inventam
mil desculpas para não visitar a Amazônia com tempo e dedicação. E ali se
tratava de navio regular de passageiros e cargas, de linha, utilizado pelo
amazonense comum.
E veio o encontro das águas escuras do rio Negro com as
barrentas do rio Solimões. A linha irregular que as separava se estendia por
quilômetros. A partir dali, as águas chamadas brancas do Solimões, mais frias e
piscosas, provenientes dos Andes peruanos e abastecidas por centenas de
afluentes de ambas as margens. O nível máximo das águas na Amazônia ocorre no mês
de junho. E já dava para notar o início da vazante pelas marcas nas bordas dos
paredões argilosos, nas árvores, nos arbustos.
Ao entardecer, duas tripulantes da copa me trouxeram o
jantar em domicílio. Sopa de carne com macarrão e legumes, bem substanciosa,
tigelinha com pães, duas bananas pequenas e dulcíssimas, jarra com água. Tudo
coberto carinhosamente por papel filme.
O por do sol na proa do navio incendiou os céus, enquanto
a lua cheia nascia na popa.
A televisão, tanto no piso Superior, como na área coberta
do piso de Lazer, não chegava a incomodar. Poucos assistiam ao lixo nosso de
cada dia. Os cérebros ainda pensantes agradeciam por se livrar das doses
diárias de embrutecimento vindas das telinhas. Passageiros se aglomeravam na
área externa da popa, a maioria jovem e bestificada diante dos celulares.
E o lixo continuava sendo atirado ao rio, impunemente.
Sacos plásticos, embalagens, latinhas de alumínio, garrafas plásticas. A frase
em letras garrafais na popa do piso de Lazer, rogando para não jogar lixo no
rio, era solenemente ignorada. Frases escritas, no entanto, não eram
suficientes. O erro daquele navio e das demais embarcações da Amazônia era disponibilizar
copos plásticos descartáveis. O passageiro enchia o copo nas torneiras do
bebedouro coletivo, bebia, descartava o copo no cesto do lixo ou no rio. Jamais
mantinha o copo consigo para usos futuros. O navio deveria exigir que os passageiros
trouxessem o próprio copo, caneca ou garrafa, a serem utilizados durante toda a
viagem. Simples e funcional.
Na cabine ao lado da minha, viajavam um casal e outra
mulher, todos de traços fortemente indígenas do alto Solimões. Trintão, comerciante
de congelados e afins, ele bebia sem parar latinhas de cerveja que trouxera de
Manaus. A esposa, bem jovem, exibia três cortes profundos no abdômen devido à
recente cirurgia na capital. Os três residiam em Benjamin Constant.
Após o jantar começou gritaria vinda da chamada “sala de
oração”, numa das extremidades do corredor interno das cabines do piso de
Lazer. Era das ovelhinhas engrossando o comércio evangélico da fé. Dava pena ao
deparar com o rebanho entregando as consciências, e o dinheiro também, à
esquizofrenia que enriquecia um punhado de pastores e os proprietários das
empresas evangélicas. Os crentes se deixavam levar por palavras de ficção,
estórias inventadas e mal interpretadas, se comportando como os mais
desvairados usuários de drogas pesadas. Se os proprietários do navio abraçaram
a corrente mais fundamentalista e intolerante, a das empresas evangélicas,
outras religiões seriam aceitas naquela sala? Impossível. Era sala de um
fanatismo só.
A cidade de Anamã apareceu ao alvorecer na margem esquerda
do rio. Encantou o canto dos pássaros, dos mais variados, vindo de todos os
lados, sobretudo quando o navio percorreu paraná mais estreito, cujas margens
abraçavam a embarcação. A intensa e agradável sinfonia da natureza iniciava
mais um dia Solimões acima. Nas margens desses paranás, terras ainda muito
alagadas, pequenas plantações de mandioca e banana, submersas. Os trabalhadores
rurais das comunidades eletrificadas pelo programa Luz Para Todos apenas
aguardavam o avanço da vazante para cultivá-las novamente. Também alagados, os
campos de futebol, identificados por parte das traves acima da linha das águas,
os pastos, restringindo o gado aos trechos mais altos e secos ou obrigando a
transportá-lo para mais longe. Mas as casas, escolas, comércio, centros
sociais, permaneciam acima das águas. A sabedoria cabocla se manifestava na construção
de palafitas ou flutuantes.
Raras as comunidades ribeirinhas que contavam com igreja
católica. Mais raro ainda as sem qualquer igreja ou templo religioso. A
esmagadora maioria exibia, em lugar de destaque, as facções das empresas
evangélicas, sugadoras dos bolsos e das consciências das populações.
A prestativa e sorridente copeira me trouxe o café da
manhã. Mamão, dois pães, três bolinhos de milho, garrafa térmica contendo café,
leite e açúcar já misturados. Eu, porém, pensava em alterar aquele isolamento. Comeria
as três refeições diretamente na copa, junto aos demais passageiros. Evitaria
assim ficar na cabine, retido, esperando a refeição e depois aguardando retirarem
a bandeja.
Anori deu sinais de vida. Na verdade apenas palafitas
frontais, atrás das quais o lago e a cidade propriamente dita. Voltei à varanda
privativa. Refrescado pela brisa externa li mais e bons artigos da revista Caros Amigos.
Horas antes de passar ao lado da cidade de Codajás, a
capital brasileira do açaí, voadeiras atracaram nos pneus laterais do navio, oferecendo
o creme para deleite dos passageiros e tripulantes. Em minutos desatracavam com
os isopores completamente vazios.
continua...
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