...continuação
A partir de Prainha, o labirinto de ilhas e os canais
estreitos ficaram para trás. Toda a amplidão do rio Amazonas se fez presente.
Evitando as correntes do canal principal, o navio subia ao lado da margem
esquerda. A margem direita se resumia apenas à linha difusa, a quilômetros de
distância. Plantas aquáticas flutuavam nas águas, as canaranas, algumas delas
com aves brancas pousadas na busca de peixes.
Parada ao anoitecer em Monte Alegre, cidade tendo ao fundo
serras alongadas, em cujas grutas se encontram pinturas e inscrições rupestres
compondo separados sítios arqueológicos.
O passageiro ex-piloto de bimotor passou a pilotar
jatinhos particulares dos doces membros da quadrilha do agronegócio do sudeste
do Pará. Enquanto não voava, cultivava no sítio em Tomé-Açu pimenta-do-reino,
cupuaçu, açaí, limão, galináceos, temperos e verduras. Tudo para consumo
interno. Desembarcou em Monte Alegre, abortando o papo sobre aquela região do
Pará, tão fértil para agricultura, pecuária, mineração, como também para a
violência social desenfreada.
O navio atracou na doca de Santarém no meio da madrugada.
Depois de clarear o dia, fui ao centro da cidade. Santarém se mantinha agitada,
com centro comercial nervoso, trânsito, linhas regulares de ônibus urbanos,
gente simpática e prestativa. Reabasteci de alimentos o frigobar da suíte. Retornei
de moto-táxi, cujo piloto repetia o discurso vazio de que todo político é
ladrão e corrupto. E que nas próximas eleições ele iria votar no pior deles.
Não adiantou eu alertar que quem seria o palhaço seria ele não o candidato. E
vivas à alienação nacional promovida pela mídia burguesa!
A passageira alemã alternava moradia entre Jericoacoara e
o sopé da serra de Ibiapaba, no Ceará, havia três anos. Afirmou estar a caminho
de “trabalho” ecológico nas imediações de Itacoatiara. Viera da Alemanha com o
filho, mas este decidiu retornar ao país natal. À primeira vista ela oferecia
ideias progressistas, preocupações com a natureza e as populações originais. Ao
abordarmos assuntos internos da Alemanha, apostando em minha ignorância, teceu
rasgados elogios à corrente política neonazista que defendia a Alemanha em
primeiro lugar, maior restrição à entrada e permanência de estrangeiros, entre
outras doces medidas. Vadiava impunemente pelo Brasil.
O navio partiu após o almoço da doca de Santarém. O setor
de redes novamente lotou, camarotes foram ocupados, rostos novos apareceram. O
encontro das águas do Tapajós com as do Amazonas agradou aos olhos,
especialmente sob o sol do começo de tarde.
Da turma animada que se reunia próxima à minha suíte
sobrou eu, a família piauiense e o fiel escudeiro. O patriarca não parava de
cutucar e falar nos dois celulares. Sempre reclamava da lentidão do navio, do
calor, da demora, da monotonia da viagem.
A passageira embarcada em Santarém saíra dois dias antes
de Ourilândia do Norte rumo a Urucurituba, cidadezinha amazonense do baixo
Amazonas, prevendo chegar daí a três dias. Se encontraria com o ainda marido,
de quem se separara apenas fisicamente havia seis meses em razão do gênio
intempestivo dele. Mas, garantiu, se gostavam e sentiam falta um do outro. Ela
tomara longo percurso de ônibus da cidade original até Santarém, atravessando a
infame região do sudeste do Pará, incluindo as bucólicas, pacíficas e bastante seguras
cidades de Xinguara, Redenção, Marabá, Altamira. Dormiu em Santarém uma noite.
Desembarcaria do navio em Itacoatiara, de onde pegaria outra embarcação ao
destino final. Apesar dos desejos e saudades do marido, não sabia se ele estava
com alguém ou se a receberia à altura das expectativas. Filha de goianos de
Uruaçu, já era avó, morava com dois dos três filhos, nenhum do ainda marido.
Perdera o irmão meses antes que, ao saltar da balsa ao rebocador, escorregou e
desapareceu nas águas do rio Xingu. Residia em colônia rural próxima à zona de
extração de níquel pela Vale, empresa irregularmente privatizada a preço de
banana durante o regime neoliberal do PSDB de Fernando Henrique Cardoso. A
corporação manipulava as prefeituras das cidades do entorno ao bel prazer dos
lucros. As administrações municipais deitavam e rolavam com o dinheiro da arrecadação,
destratando as populações urbanas, rurais e diversas etnias indígenas. Ela
sonhava em vender o lote e rodar o Brasil num caminhão que o ainda marido sonhava
em adquirir. Exalava livre arbítrio, iniciativa, coragem, inconformismo
construtivo, sem ser rebanho de exploradores do capital, de políticos a serviço
desse mesmo capital, de empresários fundamentalistas da fé alheia.
O cearense contou longos “causos”, abrindo sem fechar
muitos parênteses, se perdendo em dezenas de linhas de raciocínio. Trocamos
impressões sobre a cidade de Boa Vista. A história, o urbanismo, os moradores,
o rio Branco, a presença de gaúchos, nordestinos, venezuelanos, haitianos, além
dos roraimenses também.
Anoiteceu. Das caixas de som em frente à suíte dos
piauienses brotava legítimo forró pé-de-serra. O casal dançava enganchado como
é de direito. Outros passageiros tentavam seguir os passos. O ambiente se
alegrava ainda mais a bordo, clima realçado pela entrada de rostos novos.
Parada noturna em Óbidos. A Capitania dos Portos interveio
na superlotação, não do navio como um todo, mas especificamente no setor de
redes do piso Superior. Ali não reinava o conforto e a segurança. A Capitania e
o navio acertaram de direcionar os novos passageiros, mais outros esmagados do
piso Superior, para parte do salão coberto do piso de Lazer. Tudo resolvido,
embarque efetuado, instalação de novas redes no piso de Lazer, e o navio
partiu. Em frente, o ponto mais estreito e profundo do rio Amazonas, com apenas
mil e oitocentos metros de largura. O céu abundantemente estrelado
impressionava pelo espetáculo.
Parada em Juruti no meio da madrugada e em seguida a
entrada no estado do Amazonas.
No café da manhã comi pão com ovo, tapioca com queijo,
café com leite. O senhor de Óbidos, professor de química da rede estadual de
ensino, se mostrou conversador, contador de “causos”, com certa consciência
política e social.
Parada em Parintins. Era o terceiro e último dia do
festival do Boi-Bumbá. Dezenas, ou centenas, de barcos atracados em toda a
extensão urbana na margem direita do rio Amazonas. A cidade lotava de curiosos,
de caça-festas, aventureiros em geral, mas principalmente de torcedores dos
dois bois, somente dois, apenas dois, não mais que dois bois.
Os preços se multiplicavam durante o festival, sem falar
na lotação completa em hotéis, bares, restaurantes, comércio, entupindo a
cidade durante evento de fama nacional e internacional. Ao visitar Parintins anos
antes, em ensaios de ambos os bois, a impressão geral das toadas, letras,
melodias, ritmos, lembraram mistura de fanfarra estudantil com coreografia de
programas de auditório, a despeito da tecnologia e dos efeitos especiais
aplicados nas apresentações. A limitação de dois bois, nunca mais ou menos que
dois, me remetia à rivalidade postiça de Arena e MDB, agremiações políticas
inventadas durante a ditadura civil e militar. Um terceiro, quarto ou quinto
boi? Heresia suficiente para lançar o proponente à fogueira, conforme eu sentira
na época ao arriscar tais perguntas. E as quadrilhas de sempre do empresariado
privado sugavam 99% dos lucros gerados pelo festival, restando pouco ou quase
nada para a população que vive e trabalha o ano todo em Parintins.
De qualquer maneira, os milhares de amazonenses e
visitantes de outros estados se emocionavam, torciam, vibravam, cantavam,
dançavam, se apropriavam com paixão desse patrimônio imaterial da cultura
brasileira. E se eles ficavam felizes, mais que motivo para respeitar e
admirar, mesmo com críticas.
Eu tive que atravessar as duas embarcações para atingir a
terra firme, olhar rapidamente as ruas, comércio e bares lotados, dar meia
volta e correr ao navio sob o risco de ser abandonado sem dó nem piedade. Vendedores
de comes e bebes aproveitavam o navio que não fornecia alimentação gratuita e
juntavam uns trocados.
Assim que o navio desatracou de Parintins e pegou o curso
rio Amazonas acima, uma nuvem de borboletas amarelas nos acompanhou por
quilômetros. E cresceu em quantidade e extensão os igapós cobrindo as raízes
das árvores e arbustos, delineando belíssimo espelho d’água, refletindo troncos,
folhas e galhos.
Comunidades isoladas sobre as terras mais altas, contando
com dezenas de casas, ganharam eletricidade através do programa Luz Para Todos
do governo federal durante as administrações encabeçadas pelo Partido dos
Trabalhadores, entre 2003 e 2014. Antes os ribeirinhos viviam nas trevas da
escuridão.
Assim como acontecia no estreito paraense de Breves, entre
Parintins e Itacoatiara famílias ou apenas crianças em canoas motorizadas pelas
águas do Amazonas assediavam os navios pedindo doações, sempre agitando os
bracinhos. Passageiros lançavam alimentos e roupas em sacos plásticos,
disputados pelos tripulantes das canoas.
O cearense da capital, jovem e orgulhoso da terra natal,
vestindo camisa oficial do clube Fortaleza, viajava em companhia de parentes
distantes. Passaram dois dias em Parintins, durante o festival. Voltariam a
Manaus antes de se embrenharem em viagens pelo baixo rio Madeira.
Duas chilenas viajando por conta choravam as pitangas por
dinheiro junto aos passageiros. Estrangeiros que optaram por esse estilo de
vida desapegado em nada se assemelhavam aos brasileiros que passam necessidades
todos os dias, e não por opção, mas pela brutal injustiça social do sistema.
Nem notei a parada da madrugada em Itacoatiara, onde
desceram os piauienses, a goiana ao encontro do ainda marido, a alemã suspeita,
o cearense orgulhoso do Ceará, entre tantos outros.
Lindo amanhecer na popa do navio entre nuvens delgadas. Me
deparei com passageiro dormindo no chão do convés, apoiado na pequena bagagem. O
cidadão de classe média voltava do festival de Parintins, sem rede para atar e
sem dinheiro para pagar camarote ou suíte. Ficara liso após dois dias e duas
noites de festas. Durante os três dias do festival, hotéis simples de Parintins
cobravam 500 reais por noite, para somente uma pessoa, sem direito ao café da
manhã. Hotéis que provavelmente cobrariam 50 reais, e com café da manhã
incluído, durante todo o restante do ano.
As águas do Amazonas iam escurecendo, indicando que o rio
Negro se aproximava, que Manaus se aproximava, que o fim da viagem se
aproximava. E, ao contrário da maioria dos passageiros que se desesperava para
chegar ao destino e pular fora do navio, eu me entristecia pelo fim de mais uma
deliciosa experiência fluvial pela Amazônia, em meio à natureza única e a
passageiros bons de papo que sempre têm algo a ensinar, a informar, a
acrescentar. Bateu enorme desejo de, diferente do que eu cogitara
inicialmente, percorrer muitos mais dias de trajetos fluviais.
Mais e mais comunidades surgiam em ambas as margens do
Amazonas. Ao longo do paraná da Eva, fazendas de gado e búfalos, umas ainda
embaixo d’água e com as casas fechadas, outras já com animais e casas ocupadas,
todas com eletrificação rural pelo programa Luz Para Todos. Casas de madeira,
algumas bem acabadas, coloridas e vistosas, contavam com ar condicionado e
outros confortos da energia elétrica a que as populações têm direito.
No meio da tarde, o encontro das águas do rio Amazonas com
as do rio Negro. Lanchas vindas de Manaus carregavam turistas para presenciar a
famosa atração regional. Uma hora depois o navio atracou nas docas de Manaus, a
estação hidroviária privatizada e subutilizada, pedante e submissamente
batizada de roadway por um dos coronéis
do pedaço. Caminhei por toda a parte interna, com amplos galpões e salões
vazios, às moscas, ao lado dos navios que percorrem o rio Solimões. Os desejos
de embarcar num deles começavam a criar corpo.
continua...
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