terça-feira, 13 de março de 2018

O Vale do Amazonas e Solimões (parte 4/9)

...continuação
Desci para pegar a fila do refeitório, espaço com capacidade para quarenta pessoas sentadas em extensa mesa. Atrás do trilho onde se deslocavam as bandejas a serem abastecidas se via toda a cozinha. As copeiras serviam arroz, feijão e macarrão, o trio onipresente de todas as refeições, precedendo a carne de panela com legumes, farofa e salada de maionese. Havia ainda suco ou água, servidos nos infames copos descartáveis de plástico. E a sobremesa, goiabada com creme de leite, servida no copinho de café, também de plástico e descartável. Os gulosos podiam retomar a fila e repetir a dose.
Circulei pelas redes do piso Superior, da copa até a proa onde se localizava a cabine de comando. Entrei e conversei com práticos, imediatos e curiosos, observando a imensidão de águas do Solimões. A profundidade do rio, que em novembro de dois anos antes atingira o ponto crítico de menos de dois metros em certos trechos, conforme eu descrevera nos respectivos relatos, naquele julho oscilava ao redor de vinte metros, não demandando maiores cuidados ou preocupações.
Na suíte exatamente em frente à minha, três indivíduos. Duas cabeludas, bigodudas, vestindo roupas compridas e de mangas longas. E ele, sempre de calça social e camisa social. Típicos fundamentalistas. Durante o dia recebiam visitas de determinados passageiros das redes, se dirigindo ao sujeito como “pastor”.
Bem mais estimulante, do lado de fora do navio, a amplidão das águas do Solimões, com barcos e canoas esparsas, canaranas, patos selvagens, marrecas, pássaros, borboletas, insetos em geral, mas nada de picadas ou entradas indevidas na cabine. Nas margens, entre outras, a mungubeira, árvore de porte médio com frutos alongados e avermelhados, dos quais, quando maduros, se soltavam sementes e massas parecidas com algodão para alimento dos peixes.
Desci à copa para jantar. Arroz, feijão, macarrão, carne de panela, água, suco artificial de uva. A maioria construía montanhas de comida no prato, chegando quase a transbordar.
E fui dar aquela volta de praxe na zona descoberta da popa do piso de Lazer. À medida que o tempo passava pequenos grupos se formavam. Garrafas de bebida alcoólica eram consumidas sobre a tampa da caixa d’água. Poucas mulheres. Muitos jovens. A mesa de jogadores de caixeta. O grupo de casais com filhos pequenos. E a lua cheia, enorme e alaranjada vinda do leste.
A gritaria histérica das ovelhinhas, porém, ainda não havia encerrado. O tal pastor arrastava o bizarro espetáculo, desajeitadamente. Lia mal as fantasias, entonava mal as frases e palavras vazias. Só mesmo o rebanho para suportar e pagar por tamanha fanfarronice. E vivas ao comércio evangélico em navio que se utilizava de concessão pública de transporte de carga e passageiros para cooptar e lucrar com a fé alheia!
Nessas situações sempre me lembrava da música Pastor Trambiqueiro, verdadeira obra prima de Bezerra da Silva.
Será que esses fundamentalistas, que se juntaram ao grande capital financeiro para derrubar a presidente democraticamente eleita, que rasgaram a Constituição e deram golpe de Estado em 2016, respeitariam outras manifestações de fé, outras religiões, outras visões do mundo, dos seres humanos, da natureza?
O amanhecer na Amazônia era digno de reverências. Acordei com a cantoria dos pássaros, de diversos tamanhos, cores, plumagens, trinados. Cantos dos mais variados, mas todos marcantes, intensos, ecoando pelas árvores, arbustos e águas. Emoções em meio à sinfonia de trinados, à dança deles pelas copas das árvores, pela superfície das águas, subindo e descendo, rodopiando, num baile imprevisível e inventivo. Experiência única e inesquecível.
Os ninhos de pássaros, arirambas entre eles, se localizavam nos inúmeros buracos dos barrancos das margens, no topo dos quais se erguiam árvores de grande porte, samaúmas e outras. A floresta se tornava mais encorpada e mais impressionante. Palafitas e flutuantes, isolados ou em pequenas comunidades, surgiam na beira da água ou nas terras altas.
Da caixa de som da lanchonete, aquela voltada para a área descoberta do piso de Lazer, somente lixo evangélico, durante horas e horas na manhã. Ninguém por ali. Audiência zero. Somente o funcionário da lanchonete, o responsável pela tortura sonora.
Frase ouvida na cabine de comando ao avistarem ribeirinha, de carnes fartas, lavando roupas em prancha de madeira na beira do rio:
“Por essa eu pagava um litro de açaí”.
No piso Principal, as cargas ocupavam praticamente cem por cento do espaço disponível acima do porão. Veículos, eletroeletrônicos, linha branca, equipamentos e acessórios, alimentos industrializados, alimentos frescos, produtos de limpeza, de higiene pessoal, farinhas, águas, refrigerantes, cervejas. Tudo e mais um pouco.
Durante toda a manhã o percurso do navio foi feito rente à margem direita do Solimões. Situação privilegiada para observar de perto a vegetação, as aves, as palafitas, os flutuantes, os ribeirinhos, as comunidades, os igapós, os esboços de praias, as canoas, as redes, malhadeiras e outras armadilhas de pesca. E toda aquela área pertencia à reserva extrativista Catuá-Ipixuna, conforme as placas indicativas amarradas às árvores da beira.
Focos de fumaça e leve odor de mato queimado, ainda incipientes, apontavam o aprofundamento da estação seca e o avanço das queimadas, prática agrícola bastante questionável. Ao anoitecer, a entrada para o lago e o acesso à cidade de Tefé, na margem direita do Solimões.
Fui ver o movimento noturno na área descoberta do piso de Lazer. Enquanto isso os fundamentalistas evangélicos incrementavam o comércio da fé em mais uma sessão histérica recheada de cantorias e gritos estridentes para incomodar os passageiros que se recusavam a participar daquilo.
À noite, as luzes da cidade de Alvarães, na margem direita do Solimões. Anos antes eu visitava a cidade depois de descer o rio Juruá que deságua poucos quilômetros à montante. Na época reparei que o filme da câmera estava no fim. Achei melhor fotografar qualquer coisa, recolher o filme e colocar um novo na câmera. Escolhi bem à minha frente um flutuante desativado, cuja parte central começava a ceder pelo apodrecimento das madeiras de sustentação. Enquadrei rapidamente e fotografei. Retirei e guardei o filme encerrado na mochila. Meses depois, ao revelar os filmes e ampliar as fotos, justamente a foto do flutuante abandonado, a que tirei por tirar, se tornou uma de minhas favoritas, se tornando a imagem nos rodapés das publicações deste blog.
Despertei cedo e parti à fila do café da manhã. Tracei duas tiras de mamão, dois sanduíches de omelete com legumes, a xícara de café com leite. As arirambas davam espetáculo à parte por entre as árvores da margem direita do Solimões.
O tikuna idoso morava na área indígena Vendaval, município de São Paulo de Olivença. Passaria fácil por vietnamita, laociano ou cambojano. Semelhança física e de trejeitos intrigante demais. Fora a Manaus tratar do pulmão e recebera prescrições de medicamentos de uso contínuo. Não poderia mais trabalhar na pesca ou no campo, no caso especifico da comunidade, mandioca, banana, abacaxi. Viúvo e com forte sotaque tikuna, morava com o filho e a nora. O Brasil contava com cerca de cinquenta mil tikuna, concentrados entre o rio Jutaí e Tabatinga. Outros vinte mil viviam no Peru e na Colômbia. Nas áreas tikuna, as escolas ensinavam a ler e escrever em tikuna e português. Mas todos se comunicavam entre si somente em tikuna.
No meio da tarde, o navio atracou no novíssimo porto flutuante de Fonte Boa, a primeira parada oficial, mais de três dias após a partida em Manaus. Em terra, o terminal hidroviário de alvenaria, com guichês, área de espera, banheiros, local para lanchonete, administração, comércio em geral. Mais adiante, uma construção menor abrigava posto de fiscalização. Ambas as construções, vazias e ociosas. A cidade de Fonte Boa se situava mais adentro, quase na boca de igarapé estreito.
Surpreendentemente ventava fresco e as temperaturas, apesar do sol forte e desimpedido, não incomodavam. Desembarcou pouca gente, e razoável quantidade de carga, entre arroz, sal, ovos, pneus, rumo às carrocerias das caminhonetes. Passageiros e tripulantes buscavam desesperadamente pelo sinal do celular para comunicarem ao mundo que eles estavam em Fonte Boa.
Horas depois o navio partiu Solimões acima, não sem antes dar baita volta a fim de contornar as praias ainda submersas a oeste do porto. Belíssimo final de tarde, luminoso, dourando os barrancos sedimentares da margem direita e resplandecendo na floresta acima.
Jantei arroz e sopa de frango, legumes, bastante caldo. A adição de farinha d’água engrossou e deu sustância.
O tal pastor, que conduzia os deploráveis espetáculos na tal sala de oração do navio, a sala de uma só empresa da fé, invariavelmente exibia expressão de menino chorão, daqueles que sempre apanhava dos colegas se não corresse para as saias da mãe. E à noite essa quadrilha promoveu festival de horrores na parte descoberta do piso de Lazer, justamente aonde os passageiros se dirigiam após o jantar para conversar, jogar baralho ou dominó, tomar a fresca, contemplar o céu estrelado. Os fundamentalistas ocuparam impunemente aquela área comum para impor espetáculo de gritos histéricos, cantorias esquizofrênicas, ladainhas de frases ocas e decoradas. A adesão foi pequena entre os passageiros e tripulantes, mas o suficiente para prejudicar o lazer a bordo dos que pagaram pela passagem. Lá, cabeludas, bigodudas, desequilibrados, desequilibradas, ostentavam expressões de loucos varridos. Horror dos horrores com conivência e apoio dos proprietários do navio.
O navio atracou no meio da madrugada no porto de Jutaí, erguida na foz do rio de mesmo nome, de águas límpidas e negras. O prático buzinou várias vezes antes de encostar. Logo apareceram no alto da ladeira as caminhonetes e motos para buscar as mercadorias encomendadas. Ao amanhecer, a descarga de mercadorias seguia intensa. Outra cidade completamente dependente de fora.
Desde a foz do rio Negro, de onde o navio partira quatro dias antes, era visível o estreitamento leve e contínuo do Solimões. As margens, de terra firme, e mesmo das ilhas alongadas de terras baixas, se aproximavam gradativamente. Em processo mais adiantado da vazante, praias começavam a emergir rio acima. Ainda com areias encharcadas e escurecidas, cresceriam em extensão, largura e claridade com o avanço do verão amazônico.
Entre os passageiros, um argentino e três franceses, turistas ou não. A francesa jamais deixava o piso Superior. Mais à tardinha conversei com o morador de Benjamin Constant, politizado, progressista, articulado, apesar da pouca escolaridade formal. Voltava de Manaus onde fora se consultar e fazer exames cardíacos. Só a passagem de ida e volta fora bancada pela prefeitura. Os exames saíram do próprio bolso.
Observei jogo de baralho numa das mesas. Perguntei ao manauara tagarela ao lado:
“Chamo esse jogo de caixeta, e vocês aqui no Amazonas?”
Ele respondeu todo pomposo, como se me informasse o segredo do cofre:
“Veja bem. Eles estão jogando baralho.”
“Claro que é baralho. No Brasil inteiro é baralho. Mas o que estão jogando?”
Finalmente, ele pegou no tranco e respondeu:
“Pif.”
À noite o navio atracou no porto moderno de Tonantins. Da cidade pouco se via, apenas longa rua em subida e algumas luzes. Cargas pequenas, mas numerosas, consumiram tempo para descarregar na balsa, antes que as caminhonetes viessem transportá-las.
Na mesma noite, entre apitos insistentes, o navio encostou no porto de Santo Antônio do Içá. E partiu após horas de descarga de mercadorias.
O peruano de Iquitos morou em Tabatinga antes de se mudar para Manaus. Viajava para corrigir erros na certidão de nascimento do filho. Comentou que proprietários dos navios que trafegavam naquela linha enriqueceram com o tráfico de drogas na fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru nos tempos em que a fiscalização era quase inexistente. Mas no século XXI, com as ações da Polícia Federal e demais órgãos de fiscalização, aquele crime fora reduzido significativamente. Então esses mesmos proprietários, entupidos de dinheiro do narcotráfico, passaram a posar de evangélicos para enganar os desavisados. Imediatamente me lembrei da história narrada por Dráuzio Varela no livro Carandiru. Nela um traficante vestido de pastor evangélico e com a bíblia sempre às mãos carregava drogas da Bolívia para o Brasil. Passava batido. Ninguém o revistava ou o considerava suspeito.
continua...

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