terça-feira, 20 de março de 2018

O Vale do Amazonas e Solimões (parte 6/9)

...continua
Mais à direita do mercado municipal fora construída uma orla turística, anos antes. Bares e restaurantes com terraços, sequência de quiosques de comes e bebes ao longo do calçadão e da murada no barranco alto do rio Javari. Tudo completamente abandonado, vazio, ou ocupado pela escória da cidade, bêbados e dependentes químicos em geral. Tinha até a placa de inauguração, com nomes do prefeito e governador da época.
Mas o mercado municipal, a feira e comércio dos arredores, ferviam de gente. Muita gente. Brasileiros e peruanos comprando e vendendo em plena manhã de domingo. Poderia acusar de tudo a cidade de Benjamin Constant, mas jamais da falta de dinamismo comercial, formigando de energia humana.
Ao meio-dia a partida de Benjamin Constant rumo ao encerramento oficial da viagem de subida do rio Solimões. Horas depois o navio atracava no porto de Tabatinga, na divisa tríplice entre Brasil, Colômbia e Peru, completando oito dias de viagem fluvial desde Manaus. Em vez de hotel decidi permanecer na suíte do navio até a volta a Manaus.
Saí para volta rápida na cidade. Acabei comendo frango grelhado com arroz e fritas em restaurante tocado por colombiano. Muitas opções de comida nas imediações da igreja Matriz. Música colombiana, gente falando em espanhol. Na praça o mato crescia solto. Os bancos, quebrados e inutilizáveis. O chafariz, abandonado, talvez nunca tenha funcionado. Poucos e raquíticos arbustos. E nenhum ser humano masoquista pelo amplo espaço.
À noite fui às ruas de Tabatinga novamente. Música alta nas moradias, bares, restaurantes, barracas de comida improvisada em frente às casas de família. Gente em todos os lugares. Motos, muitas motos. Torneio de futebol de salão com torcida, juiz, uniformes e tudo que tem direito. As calçadas esburacadas e descontinuadas e o esgoto a céu aberto dificultavam os deslocamentos.
Acordei e comprei ingredientes em mercadinhos próximos para o café da manhã. Aproveitei as primeiras horas da manhã enquanto o sol amazônico ainda não batia na varanda da cabine do navio. E comi de frente ao rio Solimões, tendo as terras peruanas à vista na margem oposta.
Alimentado, desci a rua Santos Dumont e caí na beira do Solimões, a montante do porto, justamente o ponto das embarcações que ligavam Tabatinga a Santa Rosa, no Peru. A feira informal vendia produtos frescos. Ambulantes ofereciam fanes, a iguaria peruana envolta na folha de bananeira, além de caldo de galinha, quitutes peruanos em geral. Bares abasteciam os bebuns e ofereciam putas estropiadas. Hoteizinhos podres receberiam os eventuais casais de ocasião. Artigos em geral, comes e bebes, embarcações, moto-táxis, táxis, vendedores de quinquilharias, compunham multidão maltrapilha, em ambiente sujo, desorganizado, improvisado. Vendedores e vendedoras de bananas e abacaxis, vindos do lado peruano, exibiam aparências bizarras e vestiam roupas à moda de antes de cristo. Impossível descrever tamanha diversidade. Caos. Caos vivo. Caos fascinante, fotogênico.
Subi a outra rua que formava um U com a anterior, agora chamada de Marechal Mallet. Cruzei o mercado municipal. Mais lojas, mais pés-sujos de comes e bebes, principalmente de comida peruana. Mais gente, falantes de tikuna, português, espanhol. Seguindo em frente, a rua contava com lojas de roupas, sapatos, acessórios, hotéis de aspecto aceitável. Com o inadequado asfalto, mas sem árvores, sem praças, sem a tão desejada sombra. O sol queimava com tudo. O mormaço, vindo do excesso de concreto e asfalto, agravava o caldeirão. Ao final da rua, a arborizada avenida da Amizade guardava as árvores criminosamente mutiladas geometricamente. A poda estúpida tirava a beleza natural da vegetação e impedia as copas de se desenvolverem livremente, confinando as sombras à quase nada.
Dobrei à esquerda na avenida da Amizade e prossegui até a fronteira internacional. Pelo caminho, construções sem beleza, sem graça, sem calçadas, sem sombras, sem humanidade. Mal se percebia a fronteira entre Tabatinga, no Brasil, e Letícia, na Colômbia. Um posto policial de cada lado e nada mais. Ninguém era fiscalizado, em nenhum dos sentidos.
Letícia se mantinha infinitamente superior a Tabatinga, em praticamente tudo. Urbanismo humanizado. Ruas, ruelas e avenidas arborizadas, com calçadas largas e transitáveis. Praças com árvores frondosas refrescavam do calor e do sol impiedoso. Padarias, casas de lanches, restaurantes, cafés, com mesas sombreadas nas calçadas, viravam ponto de encontro e de observação do vaivém do centro da cidade. O comércio também apresentava aspecto mais decente e os moradores pareciam mais amistosos.
Letícia, porém, estava mais suja, mais abandonada pelos poderes públicos, do que na minha visita anterior. Os defeitos apareciam e cresciam com os anos. Mendigos, bêbados cambaleantes ou deitados nas calçadas, praças com mato crescido e bancos quebrados.
Tabatinga se entupia de bares e puteiros com caixas de som vomitando o lixo descartável no último volume. Inúmeros supermercados, restaurantes, comércio em geral, eram tocados por colombianos. A indolência ia às alturas com a ausência de políticas públicas para as atividades comerciais, para a educação, saúde, cultura, habitação. A prefeitura era assaltada de quatro em quatro anos por quadrilhas de criminosos que saqueavam e pilhavam o patrimônio, jogando a população no esgoto. Praticamente todos os prefeitos, vice-prefeitos, secretários, até vereadores, não residiam nas respectivas cidades. Aterrissavam vez ou outra a fim de rasparem os cofres públicos, fartos de impostos arrecadados junto à população e dos repasses dos governos estadual e federal. O comércio da fé e a indústria fundamentalista das empresas evangélicas entravam no vácuo, deitando e rolando, sequestrando mentes e bolsos dos desavisados e desesperados.
Inacreditavelmente, o alimento mais consumido em Tabatinga era frango e não peixe. O imenso rio Solimões a disposição, vários barcos e canoas de pescadores, não pareciam fazer diferença. Frango assado, grelhado, frito, em pedaços ou no espeto, em pratos feitos, em refeições. E oferecidos não somente em bares e restaurantes. Nos alpendres das casas as famílias instalavam a grelha, providenciavam panelas, pratos e talheres, armavam mesas com cadeiras. Ofereciam comida para complementar a renda ou obter a única renda de toda a família.
Pela manhã, a lancha que atracara na noite anterior, vinda de Manaus por desconfortáveis trinta e seis horas, era inspecionada pela Capitania dos Portos e pela Polícia Federal antes da partida Solimões abaixo. Os passageiros pagavam caro por assentos inferiores aos dos ônibus intermunicipais dos interiores do Brasil. Só compensava pela pressa de quem não queria ou não podia viajar de avião.
Encerrei as últimas páginas do febril Geografia da Pele, de Evaristo de Miranda, livro que narra em primeira pessoa um exercício radical de alteridade, tema pertinente aos viajantes sedentos por diferenças culturais. Engatei com o Estas Estórias, de Guimarães Rosa.
E a descarga de mercadorias do navio seguia a todo vapor, enchendo caminhões sem cessar. Fora do flutuante, na rampa de concreto do porto, se formava fila de mais caminhões a serem carregados.
E não é que o céu nublado, a ausência de sol, aliados a ventos constantes, trouxeram ar frio ao alto Solimões? Permanecer parado e exposto ao vento estava longe de ser confortável. Imediatamente me lembrei da famosa e saborosa sopa colombiana com tudo dentro, a sancocho. Esfriou mais durante a noite. Reflexos da intensa frente fria no sul e sudeste do Brasil. Acordei ao alvorecer, numa manhã limpa, de céu azul e sol brilhante, mas de temperaturas baixas. E eu estava no alto Solimões, no meio da Amazônia, próximo à linha do equador.
Logo pela manhã baixou a Polícia Federal, a Polícia Militar, cães farejadores. Inspecionaram milímetro por milímetro do navio, sala por sala, cabine por cabine, volume por volume. Mais de duas horas depois a equipe se postou em pontos estratégicos e liberou a entrada dos novos passageiros, verificando os documentos e as bagagens de cada um. Os liberados se apressavam ao piso Superior a fim de arranjar o melhor local para atar redes. Entre eles, um casal setentão de gringos, ambos encapotados contra o frio amazônico daquela manhã, mais dois rapazes sozinhos, ambos estrangeiros. Todos os quatro estrangeiros fediam horrores. O casal maduro retirou um manual ilustrado de como atar redes. Leram página por página, giravam as folhas para cima, para baixo, trocaram olhares. E nada de conseguirem lidar com as redes. Um dos contramestres, já vestido a caráter, de branco impecável, como os demais tripulantes, se prontificou e atou as redes de ambos. Os dois estrangeiros admiravam estupefatos, a rapidez e a agilidade do brasileiro. Jamais alcançariam sozinhos tamanha proeza.
No meio do dia o navio partiu de Tabatinga, rio Solimões abaixo. Centenas de barquinhos de pesca se postavam perto das margens ou dos bancos de areia surgidos com o avanço da vazante.
Uma hora depois o navio atracou em Benjamin Constant. Ainda a bordo, a Polícia Federal e a Polícia Militar se mantiveram posicionadas, observando o movimento de passageiros, embarcando ou desembarcando. Horas depois o navio zarpou, deixou o rio Javari e retornou ao leito do Solimões. Os integrantes da Polícia Federal e Polícia Militar ficaram em Benjamin Constant.
O céu se mantinha de um azul transparente e luminoso. O sol brilhava e resplandecia tudo naquela tarde. O Solimões, ainda que familiar, encantava pela gradação de cores entre as margens da floresta. Trechos esverdeados de mata baixa indicavam futuras praias. Águas barrentas adquiriam tons azulados. E o verde escuro da floresta propriamente dita.
Ao entardecer foi servida canja no refeitório. Grossa e substanciosa.
Logo em seguida o navio parou compulsoriamente no posto da Polícia Federal, justamente onde o rio se afunilava significativamente. Nem bem o navio se aproximou do posto, os carapanãs, em nuvens, atacaram sem dó nem piedade. Voei em fuga para os interiores da suíte. O policial entrou nas cabines, vasculhou cada canto, as bagagens, sob o colchão, banheiro, tudo. A fiscalização demorou entre os passageiros das redes. E ainda havia os porões, cozinhas, banheiros coletivos, lixeiras. O alto-falante do posto de fiscalização anunciou cinco nomes de passageiros, solicitando a presença deles para identificação e algo mais.
O navio desencostou e voltou a baixar no Solimões. Já sem os destemidos carapanãs, o ar frio da noite, do lado de fora, se mostrava atípico para a região.
Parada em São Paulo de Olivença no começo da madrugada.
Pela manhã o céu apresentava nuvens altas e esparsas, impedindo o sol de brilhar. A sinfonia encantadora das arirambas e colegas de voo recebeu a embarcação à entrada do rio Amaturá, com a cidadezinha logo em seguida. Pouco depois o navio retomava o Solimões, rio abaixo, não sem antes o encontro das águas negras do rio Amaturá compor espetáculo único.
As águas do rio Içá anunciavam a cidade de Santo Antônio do Içá. Na parada embarcaram muitos passageiros e alguma carga perecível, sobretudo peixe. A Polícia Federal efetuou a terceira verificação da baixa do Solimões.
Parada em Tonantins. As pessoas a embarcar e as mercadorias a carregar cozinhavam sobre a balsa de aço, descoberta, sob o sol da tarde amazonense. Nem os guarda-chuvas sobre as cabeças amenizavam a sensação do corpo a se fundir.
O massacre fundamentalista evangélico prosseguia desde o começo da manhã, vomitado da caixa de som da lanchonete, sem qualquer respeito por outras crenças ou por aqueles que não as tinham.
Parada em Jutaí à noite. Lá estavam as ladeiras de concreto, a mais larga acompanhando a encosta, a estreita perpendicular ao morro e à margem do rio.
Dos sete gringos a bordo, somente o casal peruano tomava banho e trocava de roupa, como os passageiros brasileiros. Os demais estrangeiros, o casal maduro e três pessoas sozinhas, jamais se banhavam ou trocavam as roupas sujas, ensebadas, fedorentas. A maioria a bordo os evitava, sobretudo às refeições.
Naquela noite, o espetáculo de horrores do fundamentalismo evangélico fora conduzido por uma das bigodudas que dividia a cabine com o pastor com cara de menino chorão. Ela parecia em meio a surto psicótico. Berrava histericamente, com os olhos arregalados, feito doida varrida.
continua...

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