...continua
Mais à direita do mercado municipal fora construída uma
orla turística, anos antes. Bares e restaurantes com terraços, sequência de
quiosques de comes e bebes ao longo do calçadão e da murada no barranco alto do
rio Javari. Tudo completamente abandonado, vazio, ou ocupado pela escória da
cidade, bêbados e dependentes químicos em geral. Tinha até a placa de
inauguração, com nomes do prefeito e governador da época.
Mas o mercado municipal, a feira e comércio dos arredores,
ferviam de gente. Muita gente. Brasileiros e peruanos comprando e vendendo em
plena manhã de domingo. Poderia acusar de tudo a cidade de Benjamin Constant,
mas jamais da falta de dinamismo comercial, formigando de energia humana.
Ao meio-dia a partida de Benjamin Constant rumo ao
encerramento oficial da viagem de subida do rio Solimões. Horas depois o navio
atracava no porto de Tabatinga, na divisa tríplice entre Brasil, Colômbia e
Peru, completando oito dias de viagem fluvial desde Manaus. Em vez de hotel decidi
permanecer na suíte do navio até a volta a Manaus.
Saí para volta rápida na cidade. Acabei comendo frango
grelhado com arroz e fritas em restaurante tocado por colombiano. Muitas opções
de comida nas imediações da igreja Matriz. Música colombiana, gente falando em
espanhol. Na praça o mato crescia solto. Os bancos, quebrados e inutilizáveis.
O chafariz, abandonado, talvez nunca tenha funcionado. Poucos e raquíticos
arbustos. E nenhum ser humano masoquista pelo amplo espaço.
À noite fui às ruas de Tabatinga novamente. Música alta nas
moradias, bares, restaurantes, barracas de comida improvisada em frente às
casas de família. Gente em todos os lugares. Motos, muitas motos. Torneio de
futebol de salão com torcida, juiz, uniformes e tudo que tem direito. As
calçadas esburacadas e descontinuadas e o esgoto a céu aberto dificultavam os
deslocamentos.
Acordei e comprei ingredientes em mercadinhos próximos
para o café da manhã. Aproveitei as primeiras horas da manhã enquanto o sol
amazônico ainda não batia na varanda da cabine do navio. E comi de frente ao
rio Solimões, tendo as terras peruanas à vista na margem oposta.
Alimentado, desci a rua Santos Dumont e caí na beira do
Solimões, a montante do porto, justamente o ponto das embarcações que ligavam
Tabatinga a Santa Rosa, no Peru. A feira informal vendia produtos frescos.
Ambulantes ofereciam fanes, a iguaria
peruana envolta na folha de bananeira, além de caldo de galinha, quitutes
peruanos em geral. Bares abasteciam os bebuns e ofereciam putas estropiadas. Hoteizinhos
podres receberiam os eventuais casais de ocasião. Artigos em geral, comes e
bebes, embarcações, moto-táxis, táxis, vendedores de quinquilharias, compunham
multidão maltrapilha, em ambiente sujo, desorganizado, improvisado. Vendedores e
vendedoras de bananas e abacaxis, vindos do lado peruano, exibiam aparências bizarras
e vestiam roupas à moda de antes de cristo. Impossível descrever tamanha
diversidade. Caos. Caos vivo. Caos fascinante, fotogênico.
Subi a outra rua que formava um U com a anterior, agora
chamada de Marechal Mallet. Cruzei o mercado municipal. Mais lojas, mais
pés-sujos de comes e bebes, principalmente de comida peruana. Mais gente,
falantes de tikuna, português, espanhol. Seguindo em frente, a rua contava com
lojas de roupas, sapatos, acessórios, hotéis de aspecto aceitável. Com o
inadequado asfalto, mas sem árvores, sem praças, sem a tão desejada sombra. O
sol queimava com tudo. O mormaço, vindo do excesso de concreto e asfalto,
agravava o caldeirão. Ao final da rua, a arborizada avenida da Amizade guardava
as árvores criminosamente mutiladas geometricamente. A poda estúpida tirava a
beleza natural da vegetação e impedia as copas de se desenvolverem livremente,
confinando as sombras à quase nada.
Dobrei à esquerda na avenida da Amizade e prossegui até a
fronteira internacional. Pelo caminho, construções sem beleza, sem graça, sem
calçadas, sem sombras, sem humanidade. Mal se percebia a fronteira entre
Tabatinga, no Brasil, e Letícia, na Colômbia. Um posto policial de cada lado e
nada mais. Ninguém era fiscalizado, em nenhum dos sentidos.
Letícia se mantinha infinitamente superior a Tabatinga, em
praticamente tudo. Urbanismo humanizado. Ruas, ruelas e avenidas arborizadas,
com calçadas largas e transitáveis. Praças com árvores frondosas refrescavam do
calor e do sol impiedoso. Padarias, casas de lanches, restaurantes, cafés, com
mesas sombreadas nas calçadas, viravam ponto de encontro e de observação do
vaivém do centro da cidade. O comércio também apresentava aspecto mais decente
e os moradores pareciam mais amistosos.
Letícia, porém, estava mais suja, mais abandonada pelos
poderes públicos, do que na minha visita anterior. Os defeitos apareciam e
cresciam com os anos. Mendigos, bêbados cambaleantes ou deitados nas calçadas,
praças com mato crescido e bancos quebrados.
Tabatinga se entupia de bares e puteiros com caixas de som
vomitando o lixo descartável no último volume. Inúmeros supermercados,
restaurantes, comércio em geral, eram tocados por colombianos. A indolência ia
às alturas com a ausência de políticas públicas para as atividades comerciais,
para a educação, saúde, cultura, habitação. A prefeitura era assaltada de
quatro em quatro anos por quadrilhas de criminosos que saqueavam e pilhavam o
patrimônio, jogando a população no esgoto. Praticamente todos os prefeitos,
vice-prefeitos, secretários, até vereadores, não residiam nas respectivas
cidades. Aterrissavam vez ou outra a fim de rasparem os cofres públicos, fartos
de impostos arrecadados junto à população e dos repasses dos governos estadual
e federal. O comércio da fé e a indústria fundamentalista das empresas
evangélicas entravam no vácuo, deitando e rolando, sequestrando mentes e bolsos
dos desavisados e desesperados.
Inacreditavelmente, o alimento mais consumido em Tabatinga
era frango e não peixe. O imenso rio Solimões a disposição, vários barcos e
canoas de pescadores, não pareciam fazer diferença. Frango assado, grelhado,
frito, em pedaços ou no espeto, em pratos feitos, em refeições. E oferecidos não
somente em bares e restaurantes. Nos alpendres das casas as famílias instalavam
a grelha, providenciavam panelas, pratos e talheres, armavam mesas com cadeiras.
Ofereciam comida para complementar a renda ou obter a única renda de toda a
família.
Pela manhã, a lancha que atracara na noite anterior, vinda
de Manaus por desconfortáveis trinta e seis horas, era inspecionada pela
Capitania dos Portos e pela Polícia Federal antes da partida Solimões abaixo.
Os passageiros pagavam caro por assentos inferiores aos dos ônibus intermunicipais
dos interiores do Brasil. Só compensava pela pressa de quem não queria ou não
podia viajar de avião.
Encerrei as últimas páginas do febril Geografia da Pele, de Evaristo de Miranda, livro que narra em
primeira pessoa um exercício radical de alteridade, tema pertinente aos viajantes
sedentos por diferenças culturais. Engatei com o Estas Estórias, de Guimarães Rosa.
E a descarga de mercadorias do navio seguia a todo vapor,
enchendo caminhões sem cessar. Fora do flutuante, na rampa de concreto do porto,
se formava fila de mais caminhões a serem carregados.
E não é que o céu nublado, a ausência de sol, aliados a
ventos constantes, trouxeram ar frio ao alto Solimões? Permanecer parado e
exposto ao vento estava longe de ser confortável. Imediatamente me lembrei da
famosa e saborosa sopa colombiana com tudo dentro, a sancocho. Esfriou mais durante a noite. Reflexos da intensa frente
fria no sul e sudeste do Brasil. Acordei ao alvorecer, numa manhã limpa, de céu
azul e sol brilhante, mas de temperaturas baixas. E eu estava no alto Solimões,
no meio da Amazônia, próximo à linha do equador.
Logo pela manhã baixou a Polícia Federal, a Polícia
Militar, cães farejadores. Inspecionaram milímetro por milímetro do navio, sala
por sala, cabine por cabine, volume por volume. Mais de duas horas depois a
equipe se postou em pontos estratégicos e liberou a entrada dos novos
passageiros, verificando os documentos e as bagagens de cada um. Os liberados
se apressavam ao piso Superior a fim de arranjar o melhor local para atar
redes. Entre eles, um casal setentão de gringos, ambos encapotados contra o
frio amazônico daquela manhã, mais dois rapazes sozinhos, ambos estrangeiros. Todos
os quatro estrangeiros fediam horrores. O casal maduro retirou um manual
ilustrado de como atar redes. Leram página por página, giravam as folhas para
cima, para baixo, trocaram olhares. E nada de conseguirem lidar com as redes. Um
dos contramestres, já vestido a caráter, de branco impecável, como os demais
tripulantes, se prontificou e atou as redes de ambos. Os dois estrangeiros
admiravam estupefatos, a rapidez e a agilidade do brasileiro. Jamais
alcançariam sozinhos tamanha proeza.
No meio do dia o navio partiu de Tabatinga, rio Solimões
abaixo. Centenas de barquinhos de pesca se postavam perto das margens ou dos
bancos de areia surgidos com o avanço da vazante.
Uma hora depois o navio atracou em Benjamin Constant. Ainda
a bordo, a Polícia Federal e a Polícia Militar se mantiveram posicionadas,
observando o movimento de passageiros, embarcando ou desembarcando. Horas
depois o navio zarpou, deixou o rio Javari e retornou ao leito do Solimões. Os
integrantes da Polícia Federal e Polícia Militar ficaram em Benjamin Constant.
O céu se mantinha de um azul transparente e luminoso. O
sol brilhava e resplandecia tudo naquela tarde. O Solimões, ainda que familiar,
encantava pela gradação de cores entre as margens da floresta. Trechos
esverdeados de mata baixa indicavam futuras praias. Águas barrentas adquiriam
tons azulados. E o verde escuro da floresta propriamente dita.
Ao entardecer foi servida canja no refeitório. Grossa e
substanciosa.
Logo em seguida o navio parou compulsoriamente no posto da
Polícia Federal, justamente onde o rio se afunilava significativamente. Nem bem
o navio se aproximou do posto, os carapanãs, em nuvens, atacaram sem dó nem
piedade. Voei em fuga para os interiores da suíte. O policial entrou nas cabines,
vasculhou cada canto, as bagagens, sob o colchão, banheiro, tudo. A
fiscalização demorou entre os passageiros das redes. E ainda havia os porões,
cozinhas, banheiros coletivos, lixeiras. O alto-falante do posto de
fiscalização anunciou cinco nomes de passageiros, solicitando a presença deles para
identificação e algo mais.
O navio desencostou e voltou a baixar no Solimões. Já sem os
destemidos carapanãs, o ar frio da noite, do lado de fora, se mostrava atípico
para a região.
Pela manhã o céu apresentava nuvens altas e esparsas,
impedindo o sol de brilhar. A sinfonia encantadora das arirambas e colegas de
voo recebeu a embarcação à entrada do rio Amaturá, com a cidadezinha logo em
seguida. Pouco depois o navio retomava o Solimões, rio abaixo, não sem antes o
encontro das águas negras do rio Amaturá compor espetáculo único.
As águas do rio Içá anunciavam a cidade de Santo Antônio
do Içá. Na parada embarcaram muitos passageiros e alguma carga perecível,
sobretudo peixe. A Polícia Federal efetuou a terceira verificação da baixa do
Solimões.
Parada em Tonantins. As pessoas a embarcar e as
mercadorias a carregar cozinhavam sobre a balsa de aço, descoberta, sob o sol
da tarde amazonense. Nem os guarda-chuvas sobre as cabeças amenizavam a
sensação do corpo a se fundir.
O massacre fundamentalista evangélico prosseguia desde o
começo da manhã, vomitado da caixa de som da lanchonete, sem qualquer respeito
por outras crenças ou por aqueles que não as tinham.
Parada em Jutaí à noite. Lá estavam as ladeiras de
concreto, a mais larga acompanhando a encosta, a estreita perpendicular ao
morro e à margem do rio.
Dos sete gringos a bordo, somente o casal peruano tomava
banho e trocava de roupa, como os passageiros brasileiros. Os demais
estrangeiros, o casal maduro e três pessoas sozinhas, jamais se banhavam ou
trocavam as roupas sujas, ensebadas, fedorentas. A maioria a bordo os evitava,
sobretudo às refeições.
Naquela noite, o espetáculo de horrores do fundamentalismo
evangélico fora conduzido por uma das bigodudas que dividia a cabine com o
pastor com cara de menino chorão. Ela parecia em meio a surto psicótico.
Berrava histericamente, com os olhos arregalados, feito doida varrida.
continua...
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