terça-feira, 27 de março de 2018

O Vale do Amazonas e Solimões (parte 8/9)

...continuação
Qualidade de Oriximiná era a extensa orla com calçadão ao longo da margem do rio Trombetas, permitindo à população observar, contemplar, venerar as águas escuras do rio que lhe dava vida. Pela calçada da orla era possível caminhar, passando ao lado de oficinas de barcos, da zona do mercado municipal, do comércio variado, da área de embarque e desembarque de passageiros e cargas nas lanchas, barcos, navios, dos bares barra-pesada, dos discretos puteiros, de barrancos cobertos de vegetação. O povo, educado e sorridente, embora retraído, sempre se dispunha a ajudar.
À noite, a praça da Matriz contava com frequência numerosa. Indígenas relaxavam naquela noite cálida, entre goles de sorvete e conversas nas línguas originais. Reconfortante circular pelas ruas vazias e silenciosas de Oriximiná, sobretudo na beira do rio em trechos afastados do porto. O céu estrelado, a lua crescente, o astral da cidade pequena, o contexto, enriqueciam as sensações. Pena as ruas, tão longas, tão parecidas, tão retas, tão planas, tão asfaltadas.
Durante mais um jantar, os televisores do restaurante exibiam o espetáculo grotesco do Congresso Nacional, o mesmo que legitimou o golpe de Estado de 2016, votar pelo arquivamento dos processos contra o ditador de plantão. Cenas macabras do regime contra o povo.
Aterrissei bem cedo no cais da lancha, com direito à sombra e vento constante que soprava do rio Trombetas. O embarque foi rápido e rasteiro. Mais larga, mais confortável, mais estável que as amazonenses, a lancha contava com fileiras de oitos assentos, separadas por dois corredores. A capacidade total atingia cerca de cem passageiros. A proa lembrava pequena aeronave, com duas entradas, uma de cada lado da cabine de comando. Os assentos se assemelhavam aos dos ônibus intermunicipais, garantindo o conforto. Exceto pela velocidade, a lancha humilhava os aviões em tudo.
Ao anoitecer a lancha atracou no calçadão da orla de Santarém. Era noite, mas o calor sufocava, mesmo para os padrões amazônicos.
Pela manhã tomei ônibus a Alter do Chão. A vila se apresentava mais urbanizada que da última visita anos antes, com mais hotéis e pousadas, calçadão na orla do rio Tapajós, mais barcos e iates, mais turistas e grupos perambulando. O conjunto, porém, se mantinha vistoso e pitoresco.
A ponta de areia no meio das águas esverdeadas do Tapajós ainda se encontrava parcialmente submersa. O verde escuro das águas do rio, a areia branca das praias, o verde da vegetação acima ou sob as águas, formavam cenário belíssimo. Fugi do calor em restaurante de frente para as belezas. Tomei caipirinha e suco de taperebá para hidratar o tucunaré ensopado com arroz e macaxeira, servido em porção generosa.
Em Santarém, caminhei além da praça São Sebastião, por ruas internas, pela orla do Tapajós, na tarde luminosa, ensolarada, terrivelmente quente, com as águas verde azuladas do Tapajós se encontrando mais adiante com as barrentas do Amazonas. No calçadão da orla descolei sombra refrescante e contemplei a paisagem e o pouco movimento do meio da tarde. Até parecia vilarejo ribeirinho e não cidade de mais de trezentos mil habitantes. Comprei a revista Caros Amigos e li um pouco por ali mesmo.
À noite saí para admirar a orla do rio Tapajós e o prestígio que os mocorongos, nativos ou não, prestavam à cidade. Ao longo dos quilômetros do calçadão, as cenas me trouxeram imagens de outra orla, a das praias de Tambaú e Cabo Branco, em João Pessoa. Lá como cá a população comparecia em peso e interagia com solução urbanística tão simples, barata e envolvente. Aqui como lá moradores levavam cadeiras de praia, isopor com comes e bebes, conjunto de brinquedos para filhos e netos, formando diversos grupos de família, amigos, casais. Muita gente desfrutava do que a cidade tem de melhor, o rio Tapajós. Em espaço público, democrático, gratuito.
A maioria dos canais na TV do hotel era de compras ou religiosos, o que no fundo é a mesma coisa, comércio de produtos ou da fé alheia.
Pela manhã o céu azul exibia o sol desprovido de barreiras, iluminando e torrando tudo e todos. As águas esverdeadas do Tapajós estavam mais lindas do que nunca.
Depois de churrasco com amigos fomos tentar um mergulho na praia de Maracanã. Impossível. Frequência barra-pesada, bebedores profissionais e amadores, solitários de expressões raivosas, mulheres portando olhares avermelhados e pedintes. O cheiro de perigo no ar lembrava cidades do naipe da paraense Itaituba e da amapaense Oiapoque. Melhor não. Seguimos à praia de Carapanari. A floresta mostrava todo o esplendor e ao fundo as águas esverdeadas do Tapajós roçando de leve as areias brancas. Paradisíaca. A natureza reinava absoluta. Ficamos apenas com as cabeças fora d´água, conversando amenidades, nadando, flutuando, absorvendo aquela maravilha ao cair da tarde dourada pelo sol. Demais!
Eu e colegas fomos comer peixe no restaurante ao sul da avenida Cuiabá. Tucunaré e surubim saborosos, caipirinhas bem temperadas, em ambiente animado e prestigiado pelos moradores. Comemos bem, bebemos bem, conversamos e nos descontraímos bem.
Embarquei no navio no cais em frente à praça Tiradentes. A bordo, pai e filho de Nova Santa Helena, norte do Mato Grosso. O pai, quarenta anos na região, gaúcho desbravador, típico linha de frente na devastação social e ambiental da frente agrícola da Amazônia. Pretendia se transferir para o interior do Amapá. Sinal amarelo para o povo e a natureza amapaense. Eu torcia para não se adaptarem e retornarem o mais rápido possível ao Mato Grosso, lá no meio de gaúchos e paranaenses, entre explorados e exploradores do agronegócio, das monoculturas extensivas esgotadoras de solo, dos agrotóxicos, dos massacres das populações indígenas, da exportação de matéria prima bruta, da bancada ruralista, dos tumores da economia e política brasileira, dos engajados em golpes de Estado, como o de 2016. Uma caminhonete cabine dupla, com a carroceria abarrotada entrou no piso principal. De dentro dela, mais gaúchos, pai, mãe, dois filhos, kit chimarrão e tudo. Placa do veículo de Nova Guarita, Mato Grosso. Mais alertas de perigo ao povo e à natureza do Amapá.
Ao entardecer, o navio desatracou da balsa flutuante, desceu o restinho do Tapajós, com Santarém perfilando de ponta à ponta, e logo atingiu as águas barrentas do Amazonas. Ficaram para trás as luzes daquela cidade atraente e as cores sanguinolentas do por do sol. E de volta ao que eu realmente amo, viagens lentas nos barcos e navios amazônicos. Nada de lanchas tipo isso ou tipo aquilo, mas sim a tradicional embarcação de cargas e passageiros.
A tradicional sopa das primeiras noites dos percursos fluviais foi servida em enormes tigelas. Podíamos nos servir à vontade do caldo com macarrão, batatas, carne, legumes. Ao meu lado, todos os tipos possíveis de passageiros, e nenhum outro turista. As pessoas se olhavam, analisavam, avaliavam.
À noite o navio atracou no moderno porto de Monte Alegre, de frente ao canal paralelo ao curso principal do rio Amazonas. Houve embarque e desembarque de passageiros, além de carga de cebola, melancia e farinha.
Após a partida o navio pegou de frente o rio Amazonas, nervoso, cheio de ondas, banzeiros e rebojos. Oscilou terrivelmente, gerando receios e apreensões. Entrei na suíte. Começava a adormecer. Os balanços continuavam. E me lembrei da tempestade nessa mesma rota anos antes. Naquela oportunidade era barco menor, de casco de madeira, a caminho de Laranjal do Jari, sul do Amapá. O terror durante a tempestade durou horas. Só acalmou quando a embarcação abandonou o agito do rio Amazonas e entrou nas águas espelhadas e escuras do rio Jari. Até o prático e o comandante se sentiram então aliviados. De volta ao presente voltei a adormecer somente perto da segunda parada, em Prainha, quando as águas se acalmaram.
Acordei para o café da manhã na base de três fatias de frutas, um sanduíche, café com leite à vontade. Melhor foram as conversas que brotaram entre os passageiros da mesa, entre assuntos dos mais variados.
Parada curta em Almeirim no meio da manhã. Almoço na base de carne assada, arroz, fava, salada de maionese. E saí para conversar com os passageiros, entre paraenses, amapaenses, gaúchos, mato-grossenses.
Depois do surubim ensopado com arroz, farinha de Uarini e salada, durante o jantar, o tempo encrespou e o navio pegou a tempestade de lado. Os tripulantes baixaram a lona de proteção. Mesmo assim entrou água no setor aberto das redes, forçando passageiros a mudarem de local e a levantarem as bagagens do chão. O temporal logo passou, ficando apenas o banzeiro nas águas do rio Amazonas. À esquerda, a tempestade seguia o rumo, chovendo e ventando forte.
Antes da madrugada o navio atracou no porto da cidade de Santana, já no estado do Amapá. Permaneci deitado, mesmo com a barulheira do desembarque. Os ruídos foram diminuindo pouco a pouco. Acabei adormecendo.
O porto de Santana acordou cedo. Me despedi da tripulação. O navio agradou pela limpeza, pelos cestos de lixo espalhados por todos os pisos, pelo bom aspecto em geral.
continua...

2 comentários:

  1. Um nascer e um pôr do sol na parte de cima do barco deveria ser experiência vividas por todos os brasileiros uma vez na vida.

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  2. Olá, colega!
    Não tenha dúvidas. Experiência única no mundo. Pela paisagem, pelo momento, pelos colegas a bordo ao redor. Os brasileiros deveriam refletir nisso antes de embarcarem em viagens previsíveis ao exterior.
    Comente sempre!

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