...continuação
As temperaturas, ainda que ligeiramente, começavam a
baixar. No início da manhã, a sensação térmica era de quase frio, sobretudo em
comparação ao vapor quente dos dias anteriores. O céu limpo e o tempo estável
garantiam águas calmas, quase espelhadas, do Solimões.
O navio parou no porto da cidadezinha de Amaturá, na foz
do rio de mesmo nome, de águas escuras e atraentes. Longa escadaria para
pedestres, rampa para veículos, o nome da cidade estampado no gramado inclinado
e voltado para o rio. No topo, o largo da Matriz, enfeitado de bandeirolas
vermelhas, azuis, amarelas e brancas, a cruz no centro. A igreja, a escola
estadual e colégio em anexo, todos de nome São Cristóvão. O hotel antigo à
esquerda, o restaurante e sorveteria, o mercadinho, árvores pela praça,
desgraçadamente mutiladas geometricamente, reduzindo a sombra tão vital
naquelas paragens. Centro com cara de centro, para felicidade geral da nação.
Pequena orla urbanizada com calçada e mureta na beira do barranco para o rio,
sombreada por árvores mais frondosas e, felizmente, não mutiladas. Ainda na
orla, rio Amaturá acima, o parque infantil e o ponto oficial de moto-táxi. A
jusante da praça, casario antigo e de madeira, pendurado no morro, a maioria em
más condições, mas sempre charmoso e o mais fotogênico da cidade. Barranco
abaixo, sobre as águas, sequência de flutuantes e lanchas escolares que foram
amarelas um dia.
Ruas estreitas de concreto, outras de chão, normalmente em
bom estado. Mercadinhos, alguns minúsculos, quatro escolas, três delas
municipais. Obras financiadas pelo governo federal, dos tempos progressistas de
Lula e Dilma. Centros de saúde, casas de apoio ao índio. Indígenas em
circulação se comunicando nas línguas originais, de etnias estabelecidas havia
milênios nas proximidades. Placas informais nas portas das casas e comércios
anunciavam a venda de dindin em dezenas de sabores, gasolina a cinco reais o
litro, açaí, serviços gerais.
Todos em Amaturá usavam e abusavam da popular sombrinha
para se protegerem do sol. Colorida ou preta, masculina ou feminina, não
importava. Impedir os raios de sol era o objetivo primeiro, segundo, terceiro e
último. Depois do meio-dia, como ocorre em todas as cidades quentes, o povo se
recolhia às casas, o comércio baixava as portas, as ruas se esvaziavam. Raros
gatos pingados se refugiavam sob as sombras das árvores. A cidade praticamente
adormecia para a merecida sesta debaixo daquele calor de caldeira.
Menininhas ousadas da cidade se vestiam com roupas de
domingo, se produziam com esmero, se enfeitavam com capricho, e vinham passear
pelos interiores do navio. Tiravam fotos delas mesmas com poses e sorrisos
ensaiados. Assim como a maioria da cidade, elas portavam traços inteiramente
indígenas.
Os três franceses a bordo nunca entravam em contato com
nenhum brasileiro. Não se interessavam por nada. O mais velho bebia café e
fumava o tempo todo. O mais moço às vezes tocava flauta doce. Nenhum dos três
tomou banho ou trocou de roupa em todo o trajeto de Manaus a Tabatinga. Passar
perto deles ou mesmo sentir o odor vindo contra o vento era caso de calamidade
pública, de interdição pelos órgãos ambientais. Pobre dos vizinhos deles nas
redes, brasileiros que costumavam tomar vários banhos por dia vestindo roupas
limpas em seguida.
No meio da tarde o navio partiu de Amaturá. Cidade com
jeito de cidade. Cidade pequena, indígena e graciosa. Cidade voltada para o rio
através da orla urbanizada.
Dado o avanço da vazante, lagos afloravam próximos às
margens do rio. E se tornavam destino de pescadores por confinar diversas
espécies de peixes. Semanas depois, essas águas perderiam a ligação com o rio e
ficariam ainda mais piscosas.
Avançando no rumo oeste da Amazônia, os dias terminavam
mais tarde, obrigando a criação de outro fuso horário acima de Santo Antônio do
Içá, duas horas atrás de Brasília. Na parte da tarde, por quilômetros de
extensão, perfilou na margem direita do Solimões comunidade dividida em vários
núcleos contíguos, entre casas, cabanas, flutuantes, pastos, gado, porcos,
escolas, igrejas, gramados, comércio. E tudo iluminado com luz elétrica, graças
ao programa Luz Para Todos do governo federal, dos tempos progressistas entre
2003 e 2014.
O peruano de Iquitos me contou a atribulada história de
vida. Órfão de mãe muito cedo sobrevivera com os irmãos mais novos, abandonados
pelo pai que se embriagava e não supria a casa. Ele largou a escola e vagou por
Iquitos até entrar clandestinamente em navio peruano com destino a Letícia,
Colômbia. Atravessou a fronteira brasileira para Tabatinga, onde trabalhou como
estivador informal no cais e ambulante perseguido pela prefeitura. Como
recepcionista de hotel se envolveu com traficantes peruanos de drogas que lhe
pagavam para guardar encomendas no hotel. Descoberto, foi demitido e viveu de
biscates até ser preso e condenado a anos de prisão em Manaus. Casou e fixou
residência em Manaus, onde vivia até então como ambulante de variedades.
Um colombiano de Letícia, também passageiro do navio, se
juntou à conversa. Vivia havia trinta anos em Manaus sem nunca ter retornado à
terra natal, onde ainda tinha irmãs e irmãos, um deles traficante e portador de
cinco documentos com cinco nacionalidades diferentes. O colombiano aguardava
ansiosamente que o peruano lhe devolvesse os quarenta reais emprestados para
apostar na mesa de caixeta do navio e que lhe escorrera das mãos em poucas rodadas.
Parada à noite em São Paulo de Olivença. Devido ao nome
daquela cidade, ao informar que eu era de São Paulo, os passageiros assentiam e
completavam:
“Ah, sim, São Paulo do sul...”
Os rituais satânicos e delirantes do fundamentalismo
evangélico, puxado pelo pastor com cara de bebê chorão e casado com a cabeluda
e bigoduda, funcionava todas as noites depois do jantar. Durante os horrores
era vedado o uso da televisão do piso de Lazer. Naquele navio, na disputa
acirrada pelo embrutecimento coletivo, o fundamentalismo evangélico levara a
melhor sobre a desinformação e a deformação da mídia burguesa.
Antes do amanhecer o navio partiu de São Paulo de
Olivença, rio Solimões acima.
Ribeirinhos utilizavam o puçá como instrumento auxiliar de
pesca. Pelo cilindro feito de rede trançada, submerso nas águas, com a boca
acima da superfície, os pescadores lançavam os peixes pescados e ainda vivos
durante dias de atividade. Ao voltar à comunidade levavam todo o cardume,
recolhido de uma vez só, com os peixes vivos e frescos. As mulheres
ribeirinhas, ao lavarem roupas na beira do rio, vez ou outra enchiam canecas
com a água do rio e se banhavam para refrescar.
Depois de sete dias de viagem Solimões acima, finalmente
serviram peixe no almoço. Pirarucu ensopado. Acompanhei de arroz e vinagrete. A
minúscula porção de pudim, servida no copinho de café, coroou a condescendência
dos proprietários do navio.
Um dos contramestres do navio me informou que na fatídica
sala de orações do piso de Lazer antes funcionava sala de cinema. Os doces
proprietários da embarcação substituíram a ampliação dos conhecimentos, o
enriquecimento cultural, o lazer, pelo estreitamento do pensamento, pelo
embrutecimento das mentes, pelo fundamentalismo evangélico. E as ovelhinhas do
rebanho ainda pagavam por isso.
Comunidades tikuna surgiam às margens do Solimões. Vendaval,
Feijoal, Belém do Solimões, entre tantas.
O maranhense de Presidente Dutra já garimpou no Pará,
Amapá, Guiana Francesa, Suriname. Largou família no Maranhão para se instalar
com o novo amor em Atalaia do Norte, na fronteira com o Peru. Somavam sete os filhos
que teve com as duas mulheres. Comerciante inquieto trabalhou de tudo um pouco.
Planejava se mudar com a segunda família para Santo Antônio do Içá. Nordestino,
falante, comunicativo, se diferenciava dos amazonenses reservados do alto
Solimões.
O navio cortou caminho pelo paraná a fim de liberar os
passageiros a desembarcar em Tabatinga. Mas somente os passageiros, adiando a
saída das cargas ao encerrar o trajeto.
Uma hora depois, no início da madrugada, o navio atracou
em Benjamin Constant, na margem do rio Javari, para a parada prevista de mais
de vinte e quatro horas. Acordei e o navio estava vazio. Apenas tripulantes e
carregadores retiravam lentamente as mercadorias para a cidade. Alto-falantes funcionavam
no porto de Benjamin Constant na base de músicas regionais, dedicatórias,
recados, convocações, conselhos sobre isso ou aquilo.
Desembarquei e comi o café da manhã nas barracas do
mercado logo acima. Pão com tucumã, tapioca com queijo, café com leite. A rampa
de terra e barro na beira do rio escancarava a decrepitude e abandono da
cidade. Tudo em péssimo estado, caindo aos pedaços. Ruas esburacadas, calçadas
inexistentes ou arrebentadas, terra, lama, sujeira. A administração municipal
de Benjamin Constant seguia a linha da quadrilha que deu o golpe de Estado no
Brasil em 2016, saqueando o município, desprezando a população.
Na margem oposta do rio Javari se via o aglomerado
suspenso da cidade de Islândia, já em território do Peru. Eu e o contramestre pegamos
a catraia brasileira e fomos ao outro lado. A cidade peruana, inteiramente
suspensa a três metros do solo alagável, se interligava por passarelas, as
principais de concreto, as secundárias de madeira. Prefeitura, posto de saúde,
comércios, hotéis, áreas de lazer e esportes, residências, delegacia, bares e
restaurantes, a igreja matriz, tudo acima do chão. Abaixo da passarela, somente
o lixo que emergia na vazante. Bandeiras peruanas, vermelha e branca, estavam
hasteadas em moradias, edifícios públicos, comércios. Os peruanos, de ambos os
sexos e diferentes idades, sorriam e cumprimentavam.
De volta ao Brasil, circulei em Benjamin Constant pela
zona do mercado e feira municipal. Apesar do movimento intenso, com muitos
clientes e curiosos, da vida pulsante, o aspecto das construções, produtos,
bares cheios de bêbados, restaurantes imundos, combinava com os desmazelos da
administração municipal.
O contramestre, falante, cheio de lorotas e de contatos na
cidade, encostou o esqueleto em boteco sórdido do mercado. O dono do cubículo me
sugeriu provar a aguardente de cana curtida em pó de guaraná, gengibre, xixuá,
mambaré. A bebida de coloração cinza acastanhada era seca e amarga, mas
tragável e animadora. Bêbados circulavam e paravam para prosa rápida,
invariavelmente portando olhos avermelhados, lábios inchados e úmidos,
apertando e reapertando as mãos de todos, sorrindo mole de cinco em cinco
minutos. Como todos os bêbados do planeta.
Reencontrei o vizinho da cabine do navio que encerrara a
viagem em Benjamin Constant. Ao saber que iríamos almoçar em restaurante afastado
da cidade, me levou na garupa da moto. O arrendatário do cubículo e o
contramestre seguiram em outra moto. O local dispunha de lagos com peixes,
cabanas ou chalés, amplo restaurante, redário, quiosques para relaxar na beira
da água.
A caipirinha precedeu o matrinxã assado e acompanhado de
arroz e farinha de Uarini. O arrendatário do cubículo no mercado municipal
mostrou que era do ramo e preparou molho na base de limão, vinagre, sal,
pimenta, a fim de enriquecer os sabores. Em três detonamos quase dois quilos do
peixe inteiro.
Na volta ao centro da cidade, fizemos escala em bar para
mais bebes. Experimentei a aguardente colombiana, licor à base de anis.
Intragável. O arrendatário do mercado caía pelas tabelas. O contramestre
falante e contador de vantagens fingia sobriedade. Retornamos ao navio para
cochilar e recuperar as forças prevendo mais atividades sociais à noite. A
descarga de mercadorias, em volumes pequenos, prosseguia ininterruptamente
desde a madrugada.
Sábado em Benjamin Constant, ao anoitecer. A maioria do
comércio fechando, restando abertos apenas bares, arremedos de restaurantes,
barracas de comes e bebes. Impossível a poluição sonora naquela cidade empoeirada,
esburacada, abandonada, desmazelada, desmantelada. Motos, muitas motos. Raros
automóveis. Raras bicicletas. O barulho ensurdecedor enlouquecia. Não dava para
conversar. Parecia que tudo iria explodir. A iluminação pública era quase
inexistente. Não havia restaurantes, mas sim bares, muitos bares, todos
imundos. Ambulantes peruanos vendiam espetos variados. Pelo menos serviam e
tomavam sucos de frutas em quantidade e variedade. A praça da Matriz, contando
com construção moderna, tenebrosa, monstrengo religioso inativo naquela noite,
abrigava espaço insuficiente em alongados bancos de cimento sem encosto, ao
lado de grama rarefeita e ressecada. Pouca gente por ali. Calçadas quebradas,
descontinuadas, ocupadas por comércio ambulante ou por buracos profundos e
entupidos de líquido preto e fétido. Benjamin Constant compunha um amontoado de
defeitos e aberrações.
Repeti a banca do mercado para o café da manhã. Tapioca
com ovo, tapioca com queijo, café com leite. Lá estava o arrendatário do
cubículo de comes e bebes do mercado municipal com um colega. Iam a sítio para comer,
e principalmente beber. Iam, mas não iam, pois paravam aqui, paravam ali,
conversavam, tomavam umas, outras, se despediam para, finalmente, estacionarem
em outro ponto para mais bebes, mais papos, mais bebes.
Circulei pelo centro decrépito de Benjamin Constant
naquela manhã de domingo. Cachorros sarnentos, mancos, pernetas, somente pele e
osso, disputavam comida com bêbados e demais párias sociais. A poeira em
suspensão cobria alimentos expostos na feira e no mercado municipal. O terminal
hidroviário da cidade fora construído e inaugurado com verbas federais, mas se
encontrava abandonado, ocioso, vazio. Na avenida paralela ao rio, bares,
bregas, puteiros, exibiam o lixo amontoado da noite de sábado. Na beira da
água, mulheres de vestidos longos, lenços longos e escuros amarrados à cabeça,
de seitas evangélicas para lá de medievais, lembravam personagens bíblicos de
novelas de televisão. Empresas evangélicas próximas ao centro recebiam clientes
ávidos por entregarem bens e consciências aos proprietários do fundamentalismo.
Sujeira, abandono social, miséria e embriagues de um lado.
Fundamentalismo lucrativo de outro. Duas faces da mesma moeda. E com o golpe de
Estado de 2016 o Brasil tenderia a aprofundar ainda mais essas mazelas sociais.
continua...
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