...continuação
Sem café da manhã embarquei no ônibus de manhãzinha.
Antes da partida o motorista comunicou aos passageiros as
normas de segurança, o tempo aproximado da viagem e acrescentou que:
“Atenção, o banheiro do ônibus é só para o número 1”
“O que é número 1?”, perguntou um passageiro.
“É o xixi, mijo, urina”.
O motorista acrescentou: “Se precisar fazer o número 2, me
avisa que eu paro e o apertado entra na mata e se vira”
“Tá certo”. Todos concordaram.
O ônibus cruzou a ponte da União, sobre o rio Juruá, e
seguiu pela BR-364. Inicialmente um pouco de floresta preservada em ambas as
margens da estrada. A oeste do rio Liberdade, a rodovia cruzou o território
indígena Katukina, distribuído em comunidades distintas. Dentro do território, os
indígenas respeitavam a natureza. A floresta estava toda de pé e preservada,
para alegria da fauna, flora e dos próprios moradores, os mais beneficiados. Os
indígenas aprenderem em milênios de vida a conviver harmonicamente com a
natureza. Eles ainda tentam ensinar os brancos, que raramente aprendem a lição.
O sistema econômico e político a qual os brancos pertencem é predatório e devastador.
Tanto que, após cruzar o rio Liberdade e o território Katukina ficar para trás,
pouco se via da floresta, apenas pastos e mais pastos. Muito gado, cabras e
porcos. Raras e esparsas plantações de banana, mandioca, macaxeira.
No começo da tarde, depois de atravessar a extensa ponte
sobre o rio Tarauacá e, em seguida, o rio Envira, o ônibus entrou na cidade de
Feijó. Desembarquei no centro da cidade.
Feijó adormecia profundamente naquele começo de tarde
ensolarada de domingo. Admirei as águas do rio Envira que corria bem ao lado do
centro da cidade. Na margem, lamaçal até os flutuantes e pontões, barcos
precários, voadeiras. Em terra, a pequena praça arborizada e mal cuidada, com
bêbados e comércio popular. Percorri ruas e avenidas planejadas, longas, retas,
planas, na parte mais moderna da cidade, oferecendo sorveterias, pontos de
açaí, lanchonetes, prédios públicos e administrativos. Indígenas circulavam
pelas ruas, em grupos.
À noite Feijó renasceu e exibiu moradores circulando em
muitas bicicletas pelas ruas. Belas imagens das magrelas, silenciosas e
sustentáveis. Arrisquei espetinho servido na varanda de casa de família.
Escolhi o de carne de porco, acompanhado de tigela com arroz, farofa,
macaxeira, vinagrete. Feijó e o Acre, a cada dia, a cada fato, a cada rosto, se
mostravam mais cearenses. Definitivamente, a capital do estado, Rio Branco, era
a segunda maior cidade cearense do Brasil, perdendo apenas para Fortaleza.
Não notei miséria evidente na cidade, mas simplicidade,
como se os moradores tivessem o suficiente para viver. Casas de madeira, perto
da margem do Envira, caprichavam nos adornos e detalhes para compensar a
monotonia das ripas de madeira. Vasos de flores de tamanhos e formatos
diferentes, no chão, sobre os móveis ou pendurados, flores coloridas alegrando
o ambiente, e as onipresentes bicicletas que sempre harmonizam cenários.
Diversas etnias indígenas circulavam a pé pelas ruas de
Feijó. Se deslocavam das tendas provisórias montadas na margem do rio oposta à
cidade. Reconheci imediatamente os Ashaninka pelas túnicas de cores vivas
usadas por elas e, ali, também pelos homens, de todas as idades. Outros povos,
dotados de pinturas faciais e corporais, além das pulseiras e colares de
tecidos estampados, também marcavam presença na cearense Feijó.
O restaurante anexo ao hotel era o principal restaurante
da cidade, dado a frequência, entre engravatados, policiais fortemente armados,
profissionais liberais. O picolé de buriti e outro de açaí coroaram a refeição
do meio do dia. O sol estava de rachar a cuca. Estanquei sob as sombras e de
frente para o rio Envira.
No básico quarto do hotel encerrei o informativo e
formativo A Elite do Atraso, de Jessé
Souza, que deveria se tornar livro de cabeceira dos brasileiros.
O ônibus partiu do posto de gasolina no começo da tarde.
Nas margens da rodovia, fazendas de gado e alguma floresta
preservada, sobretudo ao longo dos cursos d’água. Após o trevo de acesso à
cidade de Manoel Urbano, a várzea coberta pela floresta ciliar e, em seguida, a
extensa e alta ponte sobre o meu querido rio Purus, ao longo do qual, subindo
ou baixando, durante dias e dias, percorri de barco mais de uma vez. Lá estava
ele, caudaloso e imponente, como sempre.
O tempo fechou e a chuva caiu com vontade.
Ocorreram problemas mecânicos no motor do ônibus,
obrigando o motorista a parar várias vezes no acostamento para arranjos
provisórios. Nesses momentos, com o ônibus parado e desligado, brotavam entre os
passageiros mais propensos os sintomas da famosa síndrome de caminhão-baú. Os portadores
dessa síndrome da pós-modernidade ansiavam por serem rastreados. Ansiavam
compulsivamente. Agarravam os celulares e avisavam deus e o mundo onde estavam,
até com detalhes do quilômetro da estrada. As cenas se repetiam a cada enguiço
do motor. E foram inúmeros.
O veículo passou sem parar pelas cidades de Sena Madureira
e Bujari. Antes da meia noite entrou numa das plataformas do moderno e
internacional terminal rodoviário da capital Rio Branco. A chuva se mantinha
firme e forte.
Cenas tragicômicas durante o café da manhã do hotel. Lá
estava o televisor ligado. A maioria dos hóspedes chegava e ocupava
desesperadamente as mesas bem de frente para aquilo. E deitavam os olhares
bovinos diante da programação embrutecedora. Todos na busca da dose diária de
distorção de realidade transmitida pela telinha. E assim rasteja a humanidade!
Dei ampla volta pelo centro comercial e administrativo de
Rio Branco, nas margens do rio Acre. O Mercado Velho, o Palácio Rio Branco,
inúmeros prédios públicos, praças arborizadas e bem cuidadas, muitas escolas
públicas, estaduais e municipais, repletas de estudantes uniformizados, o
comércio popular, o camelódromo. A capital acreana se mantinha limpa,
organizada, bem administrada, pelo menos naquela região, graças à série de
governos populares e democráticos, encabeçados pelo PT, tanto no estado do
Acre, como na prefeitura de Rio Branco.
O ônibus confortável e não exageradamente gelado saiu ao
anoitecer. Os três haitianos que também esperaram na rodoviária embarcaram.
Paradas nas cidades acreanas de Senador Guiomard e
Acrelândia. Logo depois a divisa entre Acre e Rondônia. Antes da meia noite, a
demorada operação da travessia da balsa sobre o rio Mamoré, com direito a longa
fila de caminhões e ônibus.
Depois da balsa, a rodovia BR-364 margeou o distrito de
Abunã, situado em trecho dos mais difíceis tecnicamente durante a construção da
finada ferrovia Madeira/Mamoré. Inúmeros trabalhadores, em regime de quase
escravidão, morreram durante as obras mais de um século antes. Carcaças
parciais de vagões e locomotivas se viam ao longo do que foi a ferrovia,
atualmente soterrada por camadas de asfalto. A ditadura do transporte
rodoviário, de cargas e passageiros, mais uma vez, tinha esmagado a eficácia e
a eficiência da ferrovia.
E caí no sono sobre o assento acolchoado do ônibus.
O ônibus estacionou na apertada rodoviária de Porto Velho
antes do amanhecer. O segundo ônibus partiu quase vazio. Resgatou ainda uns
gatos pingados pelas ruas da capital de Rondônia. Atravessou a imensa ponte
sobre o rio Madeira, construída nos tempos progressistas de Lula e Dilma. Antes
a população ficava à mercê da máfia das balsas para mudar de lado do rio.
O ônibus pegou a BR-319, rodovia reta e plana. Ao lado,
fazendas de gado, pequenas propriedades, ramais a noventa graus permitindo a
penetração na floresta, esta quase toda desmatada. Exceção foi a Estação
Ecológica do Cunha, já em território do estado do Amazonas.
No meio do dia desembarquei na rodoviária de Humaitá, a
velha conhecida de quinze anos antes. Identifiquei o hotel menos que básico
onde na época fiz boas amizades enquanto aguardava durante dias o caminhão que
me levaria a Lábrea via o último trecho da rodovia Transamazônica.
Jantei em restaurante com música ao vivo baseada nos
clássicos da MPB. A fina flor da elite de Humaitá marcava presença, com os
respectivos e as respectivas. A péssima decoração do ambiente, cujas mesas se
separavam por altos encostos no estilo das antigas lanchonetes estadunidenses,
isolando a clientela em células de quatro ou seis pessoas, entretanto, não
integrava. Os músicos, no fundo, praticamente não viam os clientes e não eram
vistos por esses.
Pela manhã caminhei lentamente ao centro, na margem
esquerda do rio Madeira. Ali era a Humaitá amazônica, ribeirinha, equatorial. O
feriadão esvaziou a cidade. A área na beira do rio atraiu os olhares e os
sentidos, ainda mais sob aquele sossego sedutor.
Morando em ônibus velho, mas em funcionamento, o hippie
paulista de Leme vivia solto no mundo e da venda de artesanatos esotéricos em
tecido, varetas, penas, etc. O setentão já foi casado, teve quatro filhos com a
finada japonesa nascida na Coreia, e duas filhas com Ashaninka do rio Breu. Foi
caminhoneiro, paraquedista do exército, comerciante. Criado na FEBEM de
Batatais, conheceu os pais apenas acidentalmente. Já rodou a América toda
dentro de uma Besta, ida e volta ao Canadá, por terra. Era marginal por opção,
adepto sem exageros de alguma filosofia mística, e muito bom de conversa. Expôs
o artesanato na praça central de Humaitá, entre a prefeitura, a igreja Matriz e
a escola mais tradicional da cidade.
Eu desejava tomar creme de açaí. Não o congelado e adoçado
da maioria dos centros urbanos do Brasil. Mas o creme fresco, centrifugado
horas antes. E detonei o litro sem açúcar, sem farinha, sem mais nada. Sorvi
aquela preciosidade amazônica em menos de cinco minutos. Néctar dos deuses!
Delícia das delícias!
Repeti a noitada no restaurante com música ao vivo. Havia ali
mais gente que na noite anterior, mas gente escondida pela esdrúxula divisão
entre as mesas, escondendo os músicos do público, o público dos músicos e o
público do próprio público. Nas mesas, grupos, casais, praticamente todos
ostentando o celular, o tempo todo. Quase nem se olhavam ou se falavam. Nos
raros momentos de interação trocavam fotos tiradas ali mesmo ou outras imagens
engrandecedoras para o destino da humanidade. Elas invariavelmente vestidas
para matar. Eles mais à vontade. No palco, o repertório se restringia ao assim
chamado sertanejo universitário. Letras e melodias pavorosas e parecidíssimas
entre si. Se o sertanejo universitário era daquele nível, mais baixo que cu de
cobra, eu nem queria conhecer o sertanejo médio ou o sertanejo fundamental.
No final da tarde seguinte, o nascer da lua cheia, bem
cheia, imensa e amarelada, na margem oposta do rio Madeira, se tornou
espetáculo indescritível de tão belo. Nenhuma luz vinha do outro lado. À medida
que aquela bola enorme subia, aumentavam as dimensões e o efeito luminoso do
reflexo nas águas, formando cauda prateada. As imagens paralisavam de
encantamento os poucos moradores que se encontravam no centro de Humaitá
naquele horário. Ninguém pronunciava uma palavra sequer. E nem precisava.
Aquela pintura dizia tudo.
continua...
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