...continuação
Cidade de garimpeiros e indígenas da etnia Munduruku,
Jacareacanga tinha tudo de vila provisória. Feia, desmantelada, desorganizada,
suja, com construções inacabadas, ou caindo aos pedaços, em ruínas, muitas de
madeira podre, no centro urbano. Funcionando na prática como escala temporária
de pessoas de fora, garimpeiros e indígenas, as administrações públicas pouco
se lixavam para os moradores permanentes. O próprio prédio da prefeitura exibia
aspecto desolador. E ainda havia os piuns para atacarem sem dó, em qualquer
parte da cidade.
Num dos muitos braços do rio Tapajós, cujo leito principal
corria a mais de dois quilômetros da cidade, voadeiras se amontoavam ao lado do
barro arenoso. Em terra, botecos, puteiros, bares, tudo barra-pesada, de estilo
bem garimpeiro, do jeito que eles gostam. E lá estavam eles, embriagados logo
pela manhã, agarrados ou não a mulheres, maiores e menores de idade, elas
também caindo aos pedaços. Ambiente e cenas mais autênticas e emblemáticas,
impossível. Pelas demais ruas da cidade, revestidas de asfalto, lajotas de cerâmica
ou areia, inúmeros grupos de Munduruku, perambulando pelo comércio, nas
unidades de saúde, nos centros de assistência social e médica, específicos para
eles, mas em construções podres, imundas, escuras. Os responsáveis por tal
situação, todos brancos, mais destratavam e humilhavam os legítimos donos de
todas aquelas terras do que prestavam os serviços previstos na Constituição do
Brasil. Tais desserviços só se agravavam com o regime que assaltou o governo
federal através do golpe de Estado de 2016.
Estabelecimentos comerciais especializados atendiam
garimpeiros, comprando ouro. Dentro, balanças, peças e assistência técnica, sem
falar na segurança triplamente reforçada. Pelas ruas também se viam lojas de
joias fabricadas localmente.
Desde que o rio Tapajós corria longe da zona urbana, e
inacessível a pé pelos vários braços alagados durante as cheias, Jacareacanga
não apresentava nada de atraente, sob qualquer aspecto. Permanecer ali somente
pelo motivo de descansar, comer e dormir bem, se recuperar dos dois longos
trechos anteriores pela rodovia Transamazônica, e se preparar para o terceiro daí
uns dias.
À noite comi em local coberto, mas sem paredes e
naturalmente ventilado, em frente ao rascunho de praça de lazer dotada de
quiosques de lanches, espetinhos, sorvetes. Noutra esquina, bar de sinuca
genuinamente frequentado por garimpeiros, putas, indígenas desfigurados, em
ambiente também aberto. Mais bares de bebuns e com música em volume alto
conviviam democraticamente com locais familiares e ingênuos.
Aquelas cenas lembraram as noites de Oiapoque, cidade do
norte do Amapá, mais populosa, mais agitada e muito mais perigosa. Lá também
havia grande concentração de garimpeiros e putas, então em trânsito para a
Guiana Francesa e o Suriname.
Comi o café da manhã na mesa da cozinha do hotel junto à
proprietária, e um casal jovem, ele garimpeiro e calado, ela submissa e calada.
Falante, sessentona, separada, a dona era boa companhia e tocava com capricho e
asseio o hotel básico.
Circulei pelas periferias de Jacareacanga, silenciosas
naquela manhã de domingo. Moradias de alvenaria e madeira. Ruas não
pavimentadas. A floresta muito perto. De volta ao centro, permaneci um tempão
sentado na arquibancada de madeira do campo de futebol municipal, sem muros,
aberto, vazio, ventilado, quieto, ideal para relaxar e refletir.
Almocei galinha caipira mais os acompanhamentos de praxe em
restaurante ajeitado, limpo e arejado, sem as paredes laterais e a frontal. Em
outra mesa, três clientes. Uma trintona cheinha, um indígena ou descendente
próximo, um homem corpulento, moreno claro, cabelos pretos, lisos e com
franjinha. O grandalhão vestia camiseta regata, pulseira de ouro, correntinha
de ouro no pescoço e mais um pingente feito de várias peças de ouro em formatos
variados, com dimensões ao redor de cinco centímetros cada uma delas. Todos os
ouros polidos e resplandecentes à luz diurna. Exibia expressão sisuda, de
poucos amigos. O grupo, sobretudo o agigantado, atuava direta ou indiretamente
nos garimpos da região do alto Tapajós.
Os passageiros apareceram em cima da hora e o micro partiu
no meio da manhã. Sentei na primeira fileira, de cara à paisagem da estrada. Ao
meu lado sentou jovem com filha de cerca de três anos, provavelmente caso e
filha de garimpeiro da região. A criança não parava quieta e a mãe, de
expressão e movimentos abobados, não dava conta. A todo instante eu tinha que
empurrar a pequena que se derretia sobre meus ombros. Aos poucos fui perdendo a
paciência e passei a empurrar ambas para o outro lado, com gestos cada vez
menos delicados.
Dos três trechos percorridos da Transamazônica naquela
viagem, desde Humaitá, aqueles últimos quatrocentos quilômetros apresentavam
melhores condições de tráfego. Porém, como os demais, raríssimos veículos nos
dois sentidos. O leito da estrada estava mais marcado, os trilhos sinuosos dos
pneus se avistavam ao longe. Havia estirões mais largos, alguns terraplanados
recentemente. Até placas de sinalização apareciam de quando em vez. Longe do
paraíso para os veículos transitarem, aquele intervalo da Transamazônica, praticamente
paralelo ao rio Tapajós, era o mais bem conservado desde o rio Madeira. No
entanto, surpreendentemente, foi nesse pedaço paraense, entre Jacareacanga e
Itaituba, que a floresta amazônica mais se fez presente nas beiras da rodovia,
inclusive nos momentos em que se alargava ligeiramente. Árvores de pequeno,
médio e grande porte praticamente tocavam no micro ônibus. Em certas partes os
galhos das árvores das margens se encontravam acima, formando impressionantes
túneis de coloração verde-escuro. Avistei aves diversas, macaquinhos, jabutis,
cruzando a pista. Os olhos e a alma agradeciam tamanho impacto visual da
exuberante Amazônia.
A maioria dos passageiros do micro, assim como os das esparsas
caminhonetes cabine-dupla que passavam voando em ambos os sentidos, era de
pessoas ligadas às atividades do garimpo de ouro. Durante as paradas de
embarque e desembarque as conversas giravam invariavelmente sobre as centenas
de garimpos espalhados pelo alto Tapajós. Eles atuavam, atuaram ou iriam atuar
num daqueles pontos no curto prazo. Elas, enrabichadas ou não com alguém, salvo
exceções isoladas, trabalhariam como cozinheiras ou putas.
Parada para almoçar no isolado restaurante na beira da
estrada. Assim que desembarcaram os passageiros foram atacados impiedosamente
por nuvens de piuns famintos por sangue novo. Insuportável. Apelei para o
repelente guardado estrategicamente no fundo da mochila de ataque e apliquei
nos braços e mãos, descobertos então. E emprestei o frasco aos colegas
próximos. Amenizou parcialmente a fúria dos insetos.
Mais adiante da Transamazônica, na parada denominada Sol
Nascente, o micro parou para desembarque de um casal jovem. Ali era ponto de
partida para inúmeras áreas de garimpo na região. E o mais impressionante,
aquela clareira repentina no meio da floresta amazônica abrigava vários aviões
monomotores, todos estacionados na beira da estrada, ao lado de galpões e
oficinas. Visão apocalíptica e preocupante.
Seguindo em frente na rodovia, menos de uma hora depois, o
motorista recolheu moço que caminhava pela borda da estrada carregando mochila
pequena às costas. Assim que entrou passou a contar a própria história recente,
ao motorista e a quem mais quisesse ouvir. Atacado de malária, o coitado abandonara
o emprego em determinado garimpo, embora a patroa o obrigasse a trabalhar mesmo
tiritando de febre. Recebera 2,3 gramas de ouro por duas semanas de trabalho,
mas ia procurar e reivindicar os direitos trabalhistas contra a opressão da tal
patroa. Descrevia os infortúnios de maneira emocionada e com os olhos vidrados,
pelo cansaço, sede, fome, pela febre da malária. Desembarcou em outro ponto
base de garimpo de ouro.
Poucos quilômetros à frente, a sudeste da rodovia
Transamazônica, enorme barranco era derrubado por retroescavadeira. O material
desagregado era recolhido e lavado logo ao lado. Mais um garimpo ilegal de
ouro, só aguardando a interdição pelos órgãos policiais e consequente
destruição dos equipamentos, ação semelhante à ocorrida no rio Madeira tempos
antes e que incitou a reação explosiva e incendiária por parte dos garimpeiros.
O micro ônibus rodou mais meia hora e entancou no meio de
outra pista de pouso na margem da Transamazônica, com aviões, oficinas,
dormitórios, galpões, tudo novo e recém-pintado de branco e azul. Era a base do
cearense que, segundo depoimento dos passageiros, chegou na região anos antes
como vendedor de redes para dormir de porta em porta e, em pouco tempo, se
tornou um dos reis do garimpo do alto Tapajós.
Eu mais ouvia do que falava com os demais passageiros. E
aprendia muito. O mercúrio ainda era usado indiscriminadamente nos garimpos de
ouro a fim de lavar o metal, conforme ressaltaram os colegas. Garantiam que não
havia outro jeito para o ouro fino. Somente para o ouro grosso outros métodos,
sem mercúrio, se adequavam à lavagem. Afirmaram ainda que a maioria dos
afluentes, e o próprio Tapajós, apresentavam contaminações significativas de
mercúrio. A deficiência nas espinhas e costelas dos peixes, tornando-as frágeis
e quebradiças, além de sintomas leves e graves em humanos, dentro e fora das
áreas de garimpo, eram o sinal amarelo, ou mais precisamente o sinal vermelho,
diante da calamidade socioambiental.
Porém, exceto essas clareiras mencionadas, repentinas e
ilegais, que alertavam sobre a situação social desesperadora de parte da
população brasileira, a floresta parecia preservada e imponente aos olhos dos
passageiros. O rio Tapajós corria ao sul da Transamazônica, paralelo e não
muito distante, podendo ser avistado de relance em trechos mais altos da
estrada.
A Transamazônica passou a percorrer área do parque
nacional da Amazônia. Se a floresta e a natureza encantavam antes, ali no meio
do parque nacional ainda mais, impressionando e deslumbrando até os que por ali
trefegavam regularmente.
No começo da noite, onze horas e quase quatrocentos
quilômetros depois de deixar Jacareacanga, o micro entrou nas ruas escuras de
Itaituba.
A pequena janela do quarto do hotel permitia vislumbrar
parte do rio Tapajós e da margem oposta, onde se erguia a vila de Miritituba.
Itaituba cresceu em quinze anos, desse minha visita
anterior. Ganhou ares de cidade grande, com trânsito, semáforos, ruas
comerciais de intenso movimento, gente com pressa. A orla do Tapajós foi
reurbanizada do ponto da balsa até pouco além do terminal hidroviário. Quiosques,
bancos, áreas livres, se perfilavam. Tipos físicos bem diversos pelas ruas,
inclusive grupos indígenas. O Tapajós se encontrava cheio, largo, caudaloso,
batendo no paredão da orla.
Uma após a outra, balsas transportavam veículos leves e
pesados, pedestres, motos e bicicletas, à margem direita do rio, à cidadezinha
de Miritituba. Motoristas de micro ônibus gritavam os destinos para eventuais
novos passageiros, emitindo os bilhetes ali mesmo sobre a balsa. Mais à frente
da cidadezinha, para o leste, prosseguia a rodovia Transamazônica, no rumo das
infames cidades de Altamira, na margem do Xingu, e Marabá, na margem do
Tocantins, entre outros aglomerados urbanos, bucólicos e deveras seguros para o
gênero humano. Ao percorrer aqueles trechos vários anos antes, me deparara com
o descalabro social, cultural e ambiental. Jamais pretendia repetir tal façanha
da qual sobrevivera milagrosamente.
Pouco ou nada para observar em Miritituba. Bares, agências
de transportes, filas de veículos para a balsa, poeira, poluição sonora, gente
trançando para lá e para cá. Embarquei na primeira balsa e retornei a Itaituba.
Almocei bem e acompanhado do inseparável copo de suco de
cupuaçu. E emendei com tigela de açaí fresco, de lamber os beiços, em
estabelecimento típico localizado em rua transversal.
Razoável movimento na orla urbanizada do Tapajós na noite
de terça-feira. Na balaustrada da beira do rio, pescadores de linha tentavam
algum brinde fluvial. Nas barracas de tacacá, de sanduíches, de pasteis, de
comes e bebes em geral, a mídia burguesa idiotizava pelos televisores a plateia que deitava os
olhares bovinos na tela luminosa. Cenas deprimentes. Mas alguém lhes oferecia
outras formas acessíveis de informação, formação, lazer? Realidade nua e crua. E
ainda tem gente que culpa o povo pelas escolhas!
Jantei peixe ensopado de frente ao vaivém suave dos itaitubenses.
Andei de leve, para cá e para lá, sob o céu escandalosamente estrelado.
Pela manhã andei pela orla do Tapajós no sentido sul, bem
depois da igreja Matriz. Ruas calmas, casas simples ao lado de mansões de mau
gosto, muitas destas obstruindo a passagem para a margem do Tapajós. De
qualquer forma, refúgio bucólico em trecho não urbanizado da orla de Itaituba.
A simpática orla urbanizada, na margem esquerda do
Tapajós, mostrava o orgulho que Itaituba tinha do rio que a banha, não lhe
dando as costas conforme outras cidades amazônicas desgraçadamente faziam. Sempre
havia alguém correndo ou caminhando para se exercitar. Em cidade com muita imigração,
rostos e corpos dos mais variados. As filhas da própria terra ganhavam em
beleza, simpatia, sensualidade, se comparadas com as desajeitadas e branquelas
sulistas.
continua...
Olá, Augusto,
ResponderExcluirParabéns pelo seu trabalho. É muito bom saber que existe um blog de viagens com esse perfil.
Convido você e seus leitores a conhecerem o meu, que é mais voltado para as questões históricas e culturais. Creio que 'Viajante sustentável' e 'Lugares de memória' são trabalhos complementares.
Vou deixar o link aqui para que você e seus leitores possam acessar. Grande abraço!
https://www.lugaresdememoria.com.br
Oi Sylvia!
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
Vamos sim trocar informações e divulgar nossos trabalhos.
Comente sempre.
Abraços!