sexta-feira, 29 de outubro de 2010

do Acre à Bahia (parte 7/7)

...continuação
Tomei ônibus até Macaúbas e em seguida lotação até Ibipitanga. Mais estradas baianas em péssimas condições. As autoridades regionais alegavam falta de verbas para restaurá-las. Não explicavam, no entanto, o festival de dinheiro para erguer monumentos e prédios públicos, batizando-os com nomes da família de Antonio Carlos Magalhães, sobretudo do filhinho Luís Eduardo Magalhães, que provocou até troca de nome de uma cidade do interior.
Um mulato raquítico vestindo roupa social distribuía santinhos aos demais passageiros, convidando-os para cursos bíblicos “gratuitos” depois dos quais seria fornecido um “certificado”. Enfatizava que os cursos não possuíam ligação com religião ou igreja. Os ingênuos ouviam, se deixavam, ou fingiam deixar, levar pela propaganda. A maioria desconfiava e enchia de perguntas que o indivíduo não conseguia responder.
Uma mulher ainda jovem, acompanhada do filho, embarcou com dinheiro insuficiente para o valor integral da passagem. A discussão parecia não ter fim e os funcionários da empresa ameaçavam desembarcá-la. Acabaram por pedir contribuições aos demais passageiros até completar o valor necessário. Ela agradeceu e se calou pelo restante da viagem.
O ônibus cruzou o semiárido do sudoeste baiano, onde predominava vegetação rala, cortada por pequenas roças de palma, milho, mandioca.  Extensa faixa serrana se elevava a oeste da estrada, com encostas pedregosas e arbustos esparsos. As cidades de Oliveira dos Brejinhos, Boquira e Macaúbas erguiam-se ao pé da serra. Algumas das ruas seguiam em direção aos paredões e subiam parte do morro. O ônibus entrou em Macaúbas no meio da tarde. Consegui pegar a última lotação do dia. No meio do percurso, entrou em estrada local, não pavimentada, a fim de deixar uma senhora na zona rural. Ela convidou e todos desembarcaram para usar o banheiro, tomar água e café.
Cheguei em Ibipitanga no final da tarde e a lotação me deixou em frente a hotel simples, ventilado e barato, com quarto básico e banheiro minúsculo. Tomei banho tentando me equilibrar para não cair na privada, situada exatamente embaixo do chuveiro.
A pequena Ibipitanga ocupava o centro da planície levemente inclinada para o vale do rio Paramirim, guardando pracinhas, a pequena igreja, árvores mutiladas geometricamente, moradores reservados e acolhedores.
Entrei antes do amanhecer na lotação para percorrer os trinta quilômetros de buracos em viagem de quase uma hora até Macaúbas. Fazia frio, agravado pelo vento cortante e seco. Muitos usavam blusas grossas e se encolhiam nos bancos da lotação, mesmo com as janelas fechadas. No caminho surgiam povoados chamados de Almoço, Açude, Escritório, Leite. Macaúbas atraía pelas ruas estreitas, algumas sinuosas, ladeiras com calçamento de pedra, construções do início do século XX, mas, sobretudo, pelos paredões da serra ao lado. O alto das ladeiras reservava visão privilegiada do conjunto, pracinhas, da serra imponente. Era dia de feira, onde tudo se vendia, comprava, comia, bebia. Dezenas de ônibus, caminhões e caminhonetes traziam os feirantes e fregueses dos povoados vizinhos. Andei, subi e desci bastante pelas ruas e becos da cidade. Observei o burburinho gostoso da feira que pulsava vida por todos os lados.
Durante a madrugada e boa parte da manhã do domingo, o vizinho do quarto ao lado do hotel em Ibipitanga, um doutor não-sei-o-quê, manteve o televisor em alto volume. O lacaio trouxe-lhe café da manhã no quarto, sempre se dirigindo ao dito cujo como doutor isso, doutor aquilo. O tal permaneceu no quarto durante todo o final de semana sem botar a cara para fora.
À noite Ibipitanga se encontrou na praça, após a missa realizada ao ar livre devido ao reduzido tamanho da igreja. O espaço da praça ocupava-se democraticamente por diversas idades e classes sociais. Os frequentadores circulavam livremente, sem a necessidade estúpida de consumir, sem se verem obrigados a andar diante de vitrines recheadas de supérfluos. O frio castigava e apelei para as roupas mais quentes guardadas no fundo da mochila.
Dia de feira semanal e a cidade fervia com a invasão dos habitantes dos povoados vizinhos, a fim de vender, comprar, consumir, passear, se divertir. Carnes expostas ao sol e às moscas, frutas, rapaduras, roupas, acessórios, itens diversos. Rostos sofridos, mas esperançosos, expressões curiosas ou ansiosas, caboclinhas singelas. Os bares enchiam e alguns matutos se embriagavam. As lojas atiçavam os recém-chegados. O comércio se movimentava e a cidade agradecia. Por ser dia de feira, as noites das segundas-feiras eram animadíssimas na praça e na danceteria ao lado.
Encontrei caminho promissor no fim da rua em direção à zona rural de Ibipitanga. As cercas em ambos os lados indicava que tudo ali estava demarcado, com donos, legítimos ou não. A temperatura amena e o sol indeciso ajudavam no prazer de avançar caatinga adentro. À esquerda, umbuzeiros, juazeiros, muito capim e a serra alongada ao fundo do horizonte. À direita, apenas trecho mais pedregoso e coberto de vegetação ressecada. Bodes, cabras, jumentos, gado, porcos esparsos perambulavam dentro dos cercados ou até no leito do caminho. Pássaros de diversas espécies cantavam e voavam baixo. Duas corujas, provavelmente na guarda dos ninhos, permitiram que eu me aproximasse. “Sofrês” alaranjados e de cabeças pretas, além de outros pássaros também coloridos e de cantos marcantes, se sobressaíam no tom cinza esverdeado da vegetação. Mais ao final do caminho, onde o açude era rodeado de poucas casas e muitas pedras, uma cobra verde descansava por entre os xiquexiques e arbustos secos. Urubus estrategicamente estacionados no alto das pedras espreitavam coisas mortas. Em meio a pouca gente, casas fechadas ou abandonadas, eu reencontrei o casal conhecido da noite anterior. Eles me ofereceram café acompanhado de avoadores, espécie de biscoito de polvilho. Roças de milho, feijão, capim e palma espalhavam-se ao redor da casa.
Quando cheguei para o almoço e descrevi o passeio realizado, todos se assustaram com a enorme distância percorrida, imaginando a minha exaustão após tanto esforço físico despendido. Somente a descrição da caminhada deixou os baianos com sono e preguiça.
A maioria das pessoas que eu conhecera durante a viagem nutria curiosidade pelas leituras. Embeveciam os olhares quando folheavam livros. Diante da ausência de livrarias, sebos ou bibliotecas acessíveis, liam o que aparecia pela frente, ainda que pouco e lentamente. O fundamentalismo e a indústria religiosa se aproveitavam da situação, oferecendo livros “educativos” a quem demonstrasse o mínimo interesse, na única intenção de convertê-los. E o leitor, sem opções, lia mesmo não se interessando pelos temas doutrinários. Achavam o texto fácil e agradável, considerando as frases bonitas, os pensamentos tocantes. A combinação de alienação e conformismo da maioria, tão valiosa à classe dominante, estava garantida. Eu sempre presenteava alguém durante as viagens assim que terminava um dos tantos livros de literatura que carregava na mochila.
Comprei passagem até Caetité. Após a cidade de Tanque Novo o ônibus lotou. Depois, a charmosa vila de Caldeiras. Desembarquei, junto com outro passageiro, no trevo da rodovia BR-430. Largamos as bagagens no chão e ficamos à espera de transportes para Bom Jesus da Lapa.
Estávamos no alto da serra, ventava demais. Mesmo sob o sol do meio-dia fazia frio. Não passava ônibus, lotação ou qualquer coisa em direção ao nosso destino. Beliscamos alguma coisa, conversamos, nos calamos, conversamos, nos calamos. Observamos o movimento fraco de carros e caminhões. Ficamos por ali mais de duas horas e meia, parados, sob o sol, sofrendo com o vento e o frio, famintos. Eis que surgiu a lotação, entupida de bagagens mal espalhadas pelo piso e bancos. Esmagados e para lá de desconfortáveis, embarcamos rumo a Bom Jesus da Lapa. E com sofrimento, como legítimos romeiros.
A estrada estava péssima na Bahia de Antonio Carlos Magalhães e companhia. Em cena comum nos interiores miseráveis do Brasil, crianças pediam esmolas em troca de taparem com terra os buracos daquilo que um dia foi rodovia. Finalmente, nove horas após a partida de Ibipitanga, eu entrava em Bom Jesus da Lapa, a “capital baiana da fé”, conforme anunciava o grande cartaz na entrada da cidade.
O corpo pedia o merecido descanso. Os pulmões chiavam da poeira inalada dos restos de estrada. Jantei cedo em restaurante de frente para a praça movimentada. Os negros e mulatos abundavam. A atmosfera musical predominava. A influência soteropolitana era evidente, em prejuízo do jeito nordestino do interior.
O rio São Francisco, que já margeara a cidade, se afastara e corria a centenas de metros das ruas da cidade, formando extensa área de várzea fértil, mato e areia. Ao longe, na beira da água, estendiam-se barracas frequentadas pelos eventuais banhistas.
Bom Jesus da Lapa, com comércio intenso e enorme rede hoteleira, sobrevive graças à imagem religiosa, atraindo romeiros, turistas e visitantes em geral.
O complexo do Morro da Lapa, maciço calcário de coloração cinza escura, compõe-se de conjunto de grutas, igrejas, salas de milagres e oferendas, imagens, oratórios, interligados por labirintos de caminhos dentro da rocha. Estalactites e estalagmites ornamentam os salões. Mas a natureza das grutas se descaracterizara intensamente. A iluminação artificial garante a segurança na circulação. Os horários dos portões disciplinavam o acesso.
Logo na entrada da primeira gruta, o grande altar coberto com centenas de velas atraía os visitantes para oração, os olhares contemplativos, ou o simples acender de mais velas. Os diversos caminhos internos terminavam em salões com imagens, onde os devotos rezavam, pediam, agradeciam. Dois amplos salões reservados para missas em horários pré-determinados estavam mobiliados com altares e várias fileiras de bancos para os fiéis. As salas dos milagres impressionaram pelas fotos, frases, cartas, objetos pessoais, reproduções de membros do corpo humano em madeira ou plástico, oferendas. Formava conjunto impressionante para onde muitos se dirigiam e observavam com os olhos úmidos. Das estalactites brotavam pequenos fios de água, sobre os quais os fiéis se apoiavam, acariciavam, choravam, rezavam, imploravam, à espera de proteção e milagres. Grupos estacionavam nos altares das grutas e, mesmo na ausência do padre organizador, rezavam e cantavam músicas religiosas. Alguns se arrastavam nos joelhos na ida até o altar.
Milhares de pessoas dos vários cantos do Brasil afluíam para as grutas. Mas, longe de reservarem atmosfera entristecida, os visitantes também sorriam e fotografavam. Vendedores de fotos, imagens e lembranças, muitos pedintes, geralmente idosos amontoavam-se nas entradas do Morro. Guias mirins ofereciam-se com insistência aos visitantes na subida pelas pedras ao Alto do Cruzeiro, no topo do Morro da Lapa, de onde se avistava a cidade, a estrada de acesso, o rio São Francisco, a extensa, moderna e horrível ponte sobre as águas.
As ruas do centro da cidade chegavam aos pés da parede rochosa. Mas, à medida que se afastava do centro, mais próximo à antiga margem do rio, despontavam os bairros mais pobres, agrupamentos de casas miseráveis, ruas de terra, lixo, muita sujeira a céu aberto.
A ideia de estender a viagem aos Gerais da Bahia perdia força. Deixaria para outra oportunidade. Crescia a vontade de encerrar a viagem e voltar para casa. Bastava leve empurrão, que veio logo em seguida.
O proprietário do hotel pediu a liberação do quarto até a manhã do outro dia, quando um grupo de romeiros lotaria todos os quartos. Caminhei até a estação rodoviária e adquiri a passagem para São Paulo para o dia seguinte.
A praça central de Bom Jesus da Lapa se animou à noite. Os bares e restaurantes lotaram. Quase não havia lugar nas mesas espalhadas pelas calçadas. O vento fresco batia forte. Alguns se agasalhavam, mas ninguém arredava o pé. Mais gente chegava e ocupava as últimas vagas. Nas ruas estreitas que dão acesso ao Santuário, grupos se sentavam nas calçadas, bebiam, conversavam, observavam o movimento.
O ônibus da empresa Gontijo entrou para embarque e desembarque em todas as cidades baianas próximas à estrada. No trecho do norte mineiro da rodovia o destaque ficou por conta dos altos espigões de rocha, serras altas e imponentes, com pouca vegetação e grandes paredões de rocha exposta.
       Madrugada muito fria, sem falar na desrespeitosa e demorada troca de ônibus em Belo Horizonte.
O ônibus entrou no terminal rodoviário do Tietê em São Paulo naquele mês de julho. A marginal Tietê estava com tráfego intenso, mas sem congestionamento.
           E assim se encerrava a viagem de mais de três meses, do Acre à Bahia.

16 comentários:

  1. adorei ler isso. ibipitanga é uma cidadezinha incrivel

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  2. Obrigado pelo comentário. Ibipitanga é incrível sim. Ainda mais que fica fora da rota turística da Bahia, é sertaneja autêntica e com povo acolhedor e naturalmente simpático. Aproveite outros relatos das demais cidadezinhas pelo nosso deslumbrante interior brasileiro. Boa leitura, comente, critique, indique... Abraços!

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  3. Nossa, amei seu blog participarei dessas viagens através da leitura. Parabéns! Se você voltar em Ibipitanga observará que as pessoas estão fascinadas pelo garimpo. A descoberta de um minério com o nome popular de Rutilo está mechendo a cabeça de todos que sonham em um dia acertar no garimpo e já está acontecendo. Muitos estão saindo da pobreza e melhorando a qualidade de vida progressivamente.
    Abraços!

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  4. Flavinha, obrigado pelo comentário e elogios. Espere que goste dos outros relatos também.
    Eu me lembro que havia um vilarejo chamado Cristais perto de Ibipitanga. O garimpo é lá? Qual a utilidade do rutilo depois de vendido? Eles beneficiam antes ou vendem bruto mesmo? Abraços!

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    1. Olá, o povoado que possui garimpo chama-se Alvinópolis e também a cidade de Novo Horizonte. Depois de vendido o rutilo é lapidado e usado como jóia. Até hoje, não se sabe ao certo a sua utilidade na China mas o seu valor é indescritível.

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    2. Oi Flavinha,
      Mais uma vez, obrigado pelas informações. Assim vamos aprendendo, cada vez mais, sobre os interiores do Brasil que tanto gosto de percorrer.
      Escreva sempre...
      Abraços!

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  5. Nossa, texto muito bem feito, e até emocionante pra quem mora em Ibipitanga e a vê descrita em um texto poético e que realmente toca. É um doce remédio pra quem está longe de sua cidade e pode refrescar a memória com um texto tão gostoso de ler! PARABÉNS!

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  6. Oi Jardel, obrigado pelos comentários!
    O que escreveu me incentiva a continuar percorrendo os nossos interiores, como a singela Ibipitanga, e divulgá-los para o maior público possível.
    Comente sempre...
    Abraços!

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  7. Oi. Gostei de seus relatos sobre uma singela cidadezinha no interior da Bahia. Isso demostra os costumes e a cultura q possuímos. Mesmo morando afastados na capital temos uma maneira simples de levar a vida e de conquistar amizades. Obrigada pelo comentário.

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  8. Gracielle, obrigado pelo comentário.
    Não mencionou qual das cidadezinhas, embora eu tenha gostado de todas. Foi Ibipitanga?
    Prefiro locais como ela, mais autênticos e menos desfigurados pelo turismo. Publiquei diversos relatos de cidades assim neste blog, da Bahia e de outros estados. Dê uma lida e depois comente.
    Abraços!

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  9. Viajante Sustentável, obrigada! Você viajou 3 meses do Acre à Bahia, acho que as sensações foram quase iguais, você vendo, eu lendo. Adorei cada etapa, cada parada, cada amanhecer, cada anoitecer. Conhecer nossa terra, nosso povo, nossa cultura, nossas diferenças... foi uma viagem de aprendizagem. Gostoso saber que ainda tenho muito que viajar nos seus relatos...Tchau, seguindo viagem.

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  10. Obrigado pelos comentários tão alentadores, Ivete!
    Essa viagem pertence a uma série de explorações pelos interiores do Brasil, todas com duração aproximada de três meses, me permitindo mergulhar de cabeça nesse nosso fascinante país.
    Brasil entupido de defeitos causados pelos de cima, a minoria, mas repleto de qualidades exaladas pelos de baixo, a maioria.
    E como a maioria deveria predominar sobre a minoria, numa sociedade supostamente democrática, temos que inverter a situação.
    Mãos à obra!
    Abraços.

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  11. Obrigado viajante, por visitar minha cidade de ibipitanga, fico grato por vc ser uma pessoa humilde, que olhe para as coisas do nosso sertão...
    Ibipitanga: Cidade de povo feliz e acolhedor!

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  12. Oi Witalo, eu é que agradeço sua atenção e seus comentários.
    Realmente gostei muito de Ibipitanga e região. É para voltar.
    Um grande abraço!

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  13. Viajante ta de parabéns pelo texto, espero poder participar de todas as viagens através dos seus textos publicados aqui. Eu como um Ibipitanguense me orgulhei de ver uma pessoa como você escrevendo tão bem de nossa cidade.

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  14. Olá, obrigado pelo comentário.
    Fui sincero. Falei bem de Ibipitanga porque gostei da cidade. Quando não gosto, falo mal mesmo, e aceito as reclamações de quem discorda de minhas impressões.
    Leia os demais relatos do blog, de viagens pelos interiores do Brasil e de também de outros países.
    E comente sempre!
    Abraços.

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