...continuação
Durante a caminhada por uma única rua, desde o centro, foi
possível notar a mudança brusca do bairro de ricos de Batista Campos, com
amplas praças, mangueiras centenárias, residências de alto padrão, até a
miséria do bairro de Cremação, com favelas, esgoto a céu aberto, muito lixo,
nenhuma arborização, quase sem calçadas. Mas não faltava o ópio, na forma de
inúmeras igrejas empresariais.
O televisor do salão do café da manhã do hotel estava
vomitando lixo de alguma das tantas religiões empresariais. Eram bobagens e
mais bobagens dogmáticas. No momento em que ninguém reparava, mudei de canal.
Almoço tardio e informal em casa de colega paraense. A
tarde fluiu sem pressa diante das cadeiras e bancos do quintal sombreado. Todos
foram bastante acolhedores. O frango no tucupi, a caranguejada e o tacacá
abafaram. Já era noite quando me despedi apressado. É que a dona da casa
conseguira ingressos gratuitos para a primeira noite do festival de música
erudita de Belém no teatro da Paz.
O ônibus para o Maranhão partiu à noite, lotado. A chuva
ajudou a refrescar e as frestas abertas das janelas ventilavam naturalmente.
Bem mais eficiente e barato que o desnecessário ar condicionado.
Entrada no estado do Maranhão por rodovias completamente
abandonadas e sem manutenção, em meio à lama, crateras e atoleiros. Veículos
atravessavam ou seguiam na contramão. Caminhoneiros ameaçavam bloquear a
rodovia com o intuito de sensibilizar quem quer que fosse. Verdadeira
calamidade na principal via que liga o norte e o nordeste do Brasil. Era o
Maranhão, estado de belezas naturais, cultura fascinante, povo acolhedor, mas
de situação social catastrófica. Aos trancos e barrancos o ônibus avançava
naquela buraqueira. Ao amanhecer a cidade de Pinheiro e logo micro-ônibus com
destino a São Luís. A balsa, pela baía de São Marcos, veio salvar dos
intermináveis solavancos das estradas. Mas o mar não estava nada calmo e a
balsa balançou bastante.
Saí para circular pelas ladeiras e becos da Praia Grande. Impossível
não se render ao charme da noite no centro histórico de São Luís. Iluminação
amarelada, becos, ladeiras, casarões com azulejos, os simpáticos bares, a
cantora ao violão. A noite apenas começava.
Pela manhã caminhei despretensiosamente pelas ruas e becos
do centro histórico. Entrei nas igrejas e depois me sentei sob a sombra no
largo do Desterro, simpático, vazio, calmo. E combinava como o que eu estava
lendo, justamente o livro Largo do
Desterro, de Josué Montello. Não queria mais nada além de contemplar os
arredores. Independente do estado de conservação das casas e sobrados, ou da
existência de algumas construções descaracterizadas e modernas, essa região da
cidade apresentava conjunto arquitetônico extenso e impressionante. Num dos
sobrados restaurados devorei torta de camarão, arroz e cuxá.
Logo cedo tomei o micro-ônibus com destino a São José do
Ribamar, no extremo nordeste da ilha. O percurso cortou bairros pobres de São
Luís e trechos com mata nativa. O centro da cidadezinha projetava-se no mar,
tendo a praia de um lado e trapiches do outro. Na ponta e final da avenida
principal, no alto da colina, encontrava-se a estátua de São José do Ribamar,
com gruta abaixo tomada de imagens religiosas. O sol parecia querer rachar a
minha cabeça. Caminhei pelo ancoradouro, com o mercado de peixes, ruas
adjacentes pobres e sujas. A praia, do outro lado, conquistava pela simpatia e
pequena extensão. Mais adiante havia o manguezal evoluindo para o rio estreito,
com casinhas nas margens. A maré secava rapidamente e facilitava o acesso pela
areia e lodo. Subi em restaurante da parte alta da cidade, com bela vista do
mar e do manguezal.
Assisti em São Luís à apresentação solo do violinista
cearense Nonato Luiz, que exibiu repertório com composições eruditas próprias,
mais homenagens tocantes a Luis Gonzaga e Humberto Teixeira. Durante a
interpretação de Bela Mocidade, antigo tema do boi de Axixá, a plateia,
emocionada, o acompanhou cantarolando, bem baixinho. E depois apreciei a
tiquira, aguardente regional de coloração lilás, feita de mandioca brava. Tive
que repetir a dose para confirmar a qualidade.
Ônibus com destino à cidade de Raposa, no noroeste da
ilha. No caminho, o real perfil da moderna São Luís. Mansões e condomínios
fechados em Olho D’água e Araçagi, cercados de miséria por todos os lados.
Favelas e mais favelas, casas rodeadas de lixo e esgoto a céu aberto. Crianças
obrigadas a se deslocar em ônibus lotados por quase trinta quilômetros até a
unidade escolar mais próxima. E ainda havia a devastação da vegetação nativa.
Em Raposa o que predominava era a miséria das palafitas e favelas sobre antigas
áreas de manguezais. Muito lixo, ratos, urubus, nada de saneamento básico.
Crianças perambulavam pelas ruas e becos sem calçamento e pediam moedas aos
passantes. Meninas novas se prostituíam nas ruas e em bares próximos ao mercado
de peixe. Apesar da miséria gritante, Raposa ainda guardava muito verde,
manguezais e a praia com os diques de proteção contra o avanço do mar. A
economia era puxada pela pesca. Grandes bancadas secavam os peixes ao sol antes
da comercialização.
De volta a São Luís, me sentei no banco da praça central,
ao lado da catedral. Trabalhadores iam e vinham de todas as direções.
Desocupados ofereciam câmbio de moedas estrangeiras. Meninas menores de idade
ofereciam os corpos. Um homem de meia idade abordou três delas, conversaram não
sei o quê e partiram de carro para não sei onde.
Os nomes de José Sarney e de outros entes queridos da
família batizavam ruas, avenidas, pontes, praças, escolas, hospitais, prédios
públicos, na capital e interior do Maranhão.
Apesar de urbanizada, a praia do Calhau era limpa, tranquila,
servida de quiosques. Mas carecia de beleza. A areia era dura, a cor
acinzentada do mar não empolgava. A fila de enormes navios de carga, pouco
antes da linha do horizonte, prontos para levarem os recursos minerais
brasileiros embora, não agradava. Valia pelo sossego e privacidade, com pouca
gente no sábado ensolarado.
O ônibus partiu rumo à viagem de cinco horas até
Barreirinhas. A paisagem evoluiu de campos vazios para areais, babaçuais, buritizais,
cursos de águas escuras e límpidas. Nos arredores de Morros, o rio caudaloso
corria entre pedras, abastecido por muitas nascentes. No trajeto também havia
muita miséria, abandono, ausência do poder público. Famílias inteiras se
amontoavam em barracos de taipa, com cobertura de palha de buriti, chão de
barro liso e inexistência de móveis. Depósitos de seres humanos, sem qualquer
tipo de saneamento básico ou água encanada. Eram negros na maioria, com rostos
sofridos, completamente desamparados na luta diária pela sobrevivência.
Em Barreirinhas almocei em restaurante na beira do rio
Preguiças, lento e caudaloso, a referência marcante defronte à cidade.
Antes da meia noite
não havia mais alma viva pelas ruas ou praças. Os ambulantes recolheram as
barracas, inclusive aquela onde o simpático e rústico maranhense me preparava
caipirinhas cheias de gelo. Um silêncio gostoso cobria tudo. E o sono bateu em
cheio.
Embarque cedo em caminhonete com tração nas quatro rodas
rumo aos Lençóis Maranhenses e que cruzou o rio Preguiças de balsa. Após
percorrer areais com raríssimas casas e moradores, já dentro dos limites do
parque nacional, atingimos o início das grandes dunas. Caminhamos dunas acima.
O público consistia, na maioria, de turistas convencionais, casais, idosos ou
quase. Além do motorista, um guia nos acompanhava. Boa gente, mas quase não
falava ou quase nada sabia responder. Visitamos a lagoa Azul, lagoa do Peixe e
outras menores, com direito a relaxantes paradas para banhos refrescantes ou
simplesmente contemplar as dunas sem fim. As águas eram invariavelmente
cristalinas, mornas, com pequenos peixes. A impressão do extenso deserto
fascinava. Grupos se formavam e aconteciam bons papos. A maioria dos turistas
logo se cansava, parava, sentava e não queria ver mais nada. Fiz amizade com um
carioca e dois aposentados paulistas bons de papo.
De volta a Barreirinhas, marcamos almoço tardio no
restaurante na beira do rio. Optamos pela galinha caipira ao molho pardo. O
garçom nos alertou que o prato demoraria cerca de duas horas, pois requeria
matar a galinha na hora. Ninguém tinha pressa. A tarde corria solta e
vagarosamente como as águas do rio Preguiças. Encomendamos aperitivos e mais
bebidas. Logo em seguida ouvimos a gritaria no quintal ao lado do restaurante. Lá
estavam o garçom e duas cozinheiras, às gargalhadas, correndo em desespero
atrás das galinhas. O garçom era o que mais tentava e menos conseguia chegar
perto. Escolheram a galinha branca. Trinta minutos depois, uma das cozinheiras
conseguir pegar a fugitiva pela asa. E, após quase duas horas de espera, entre
goles, finalmente foi servida. Atacamos aquela delícia feito animais.
Fiquei com a turma circulando pela orla. Paramos em uma
das barracas para nos refrescar e jogar conversa fora até o início da madrugada.
As barreirinhenses, rústicas e charmosas, ainda que muito jovens, circulavam
com amigas, com os namorados. Mais uma noite agradável na beira do rio, com
temperatura amena, sob o céu estrelado.
Na volta ao hotel, o carioca não aceitou minha sugestão de
cortarmos caminho pelos becos. Alegou que seria perigoso e que poderíamos ser
assaltados ou assassinados por traficantes que dominavam o local. Deve ter
esquecido que estávamos em pacata cidadezinha do interior do Maranhão e não em
capital ou grande cidade. Não entendeu e ainda afirmou que me ensinaria a
sobreviver nos dias de hoje. Não conseguia relaxar, coitado.
Pela manhã, verifiquei que o barco de linha, que subia e
descia o rio Preguiças regularmente, estava quase de partida. O comandante me
garantiu que o barco retornaria ainda naquela noite. Eu e o carioca embarcamos.
A tranquila viagem, de cerca de três horas de duração, cruzou belas paisagens,
com destaque para as grandes dunas entre Vassouras e Caburé, na margem direita
do rio.
Desembarcamos nas areias de Caburé, básica, calma e
ventilada pela brisa constante. Após a partida das voadeiras vindas para os
passeios de um dia, o silêncio imperou em Caburé. O pôr-do-sol foi belíssimo,
colorindo o horizonte, antes do luar se impor e deixar o reflexo prateado nas
águas do rio. Embarcamos de volta a Barreirinhas no meio da noite, mortos de
sono e cansaço.
Despertei cedo, acertei logo a caminhonete para garantir
lugar. A viagem de cinco horas até Tutóia foi por areais improvisados em
estrada. A carroceria batia e balançava muito. Éramos obrigados a segurar onde
desse para não despencarmos no chão. Mas o tempo passou rápido. Havia
passageiros simpáticos, sobretudo uma professora aposentada que me descreveu o
amor pela educação e pelos alunos, os golpes que sofreu do sistema de ensino
que pouco se importava pela qualidade do trabalho e também sobre os sonhos de
recomeçar a ensinar. A paisagem, rústica e deslumbrante, exibia dunas,
buritizais, lagoas com aguapés, rios de águas cristalinas, casas de taipa e cobertas
de palha, pequenas plantações, carnaubais. Os moradores, poucos e miseráveis,
eram acolhedores e sorridentes.
Em uma parada num bar em meio ao areal, apareceu um
caboclo me oferecendo mercadoria guardada em um saco plástico. Pelo formato e
cores, parecia um réptil. Já de volta à carroceria da caminhonete, comentei o
fato com o carioca que, com toda a esperteza e experiência inigualáveis,
garantiu que a tal mercadoria era cocaína, pois era assim que os traficantes se
comportavam.
Na chegada a Tutóia, a caminhonete parou na estação
rodoviária. O carioca afobado desembarcou para pegar ônibus a Parnaíba, apesar
de eu aconselhá-lo à tranquilidade e belezas da viagem de barco no dia seguinte
pelo Delta do Parnaíba. O coitado nem parecia que estava passeando. Enxergava
perigo em tudo, riscos de assaltos, do barco afundar, da caminhonete capotar,
de qualquer administração pública se corromper, de se adoentar, de não haver
assistência médica adequada.
À noite, nas imediações das escolas de Tutóia, as
calçadas fervilhavam de estudantes e colegas. Passeavam, namoravam,
conversavam, observavam, assistiam musicais pelo telão, aproveitavam a noite
estrelada e fresca. Animação e diversão não faltavam. Tomei sorvete de cupuaçu.
O cansaço se fez presente e caí no sono.
continua...
O Dia que tiver "LOUCO" como foi "DANTE" !!!..., Farei uma "MUCHILARIA" que já foi meu FORTE nas Décadas de 1970 !!!... Rsrsrsrsrsrsrss
ResponderExcluirOi Pedro, obrigado pelo comentário. Ele é muito importante para mim.
ResponderExcluirDevemos ser de idades parecidas, pois também fui mochileiro nos anos de 1970. Só que continuei nos anos de 1980, 1990, 2000, agora anos de 2010 rssss.
Mudei um pouco, claro, mas continuo curioso e interessado em paisagens, pessoas, culturas...
Adoro o diferente!
Fique à vontade de comentar sempre.
Abraços!
Gosto muito da maneira como você coloca o nosso país, revela seu potencial entusiasticamente, como também relata nossos problemas com uma certa dose de indignação. Só de ler, fico indignada com o descaso de nossos dirigentes, administradores, povo e até comigo, porque sou consciente do que acontece ao meu redor e se argumento, parece que não tem retorno. Impotente é assim que me sinto. Apesar de todos os problemas que li, tu mostra um Brasil que vale a pena conhecer. Brasil enraizado em uma cultura riquíssima, habitado por uma miscigenação incrível, matizado de cores mil...obrigada por me mostrar as faces do nosso amado país. Abraços. Continuo.
ResponderExcluirOi Ivete, obrigado por comentar.
ResponderExcluirNão podemos nos restringir às atividades dos filósofos, que vieram ao mundo para interpretá-lo. Temos que ir além e também transformá-lo.
Se uma parte dos que veem a situação e as saídas da mesma maneira se unirem e partirem para a ação, creio que muitos outros aderirão e farão a diferença.
Impotência deveria ser nosso último sentimento.
Unidos somos fortes. Vamos deixar a inércia de lado e lutarmos.
Nosso país e nosso povo merece muito mais!
Abraços!