quarta-feira, 27 de outubro de 2010

do Acre à Bahia (parte 6/7)

...continuação
Outra manhã cinzenta e chuvosa. Peguei ônibus ao litoral sul do estado do Rio Grande do Norte. Mesmo com o tempo cinzento e algumas pancadas de chuva, valeu sair, respirar ar puro e observar as inúmeras praias. Retornei no mesmo micro-ônibus até a estação rodoviária, onde comprei minha passagem de fuga dali.
Muitos pedintes, sobretudo crianças, perambulavam pelos corredores da estação rodoviária de Natal. O ônibus oferecia um monte de perfumarias que encareceram a passagem, como lanche ressecado, cobertores e travesseiros, suporte para os pés que me impediam a liberdade de movimento. Os bancos, amplos e confortáveis, não garantiram a tranquilidade da noite de sono. O ar condicionado, estupidamente gelado e com o jato não regulável voltado diretamente para o meu rosto, causavam enorme desconforto e irritação. Ônibus convencional, sem ar condicionado, mas com ventilação natural, seria muito mais barato e confortável.
Cheguei no terminal rodoviário de Maceió antes de nascer o sol. Telefonei para a amiga de tantos anos na cidade de União dos Palmares, para onde fui de micro-ônibus, desta vez um básico, para o meu alívio.
Extensos canaviais predominavam na paisagem da zona da mata alagoana, intercalados de pequenas roças de alimentos. Mais acampamentos de trabalhadores rurais sem terra, em barracos cobertos de plástico preto, apontavam para a urgência da reforma agrária. Duas horas depois o micro estacionou na rodoviária de União dos Palmares.

Todos da família me receberam entusiasticamente. Conversei, vi fotos e mais fotos, saciei a curiosidade geral. Almocei em mesa sempre cheia de gente animada e comida saborosa.
Mas fiquei em hotel básico no centro da cidade. Tentei cochilar a fim de recuperar parte da noite perdida.
Lanchei e jantei novamente na casa deles. Foram mais deliciosas conversas até tarde da noite. A chuva fina não conseguia apagar as dezenas de fogueiras, acesas tradicionalmente às 18h naquela véspera do feriado de São Pedro. Na véspera de São João a cidade se cobrira de fogueiras, rodeadas de pessoas comendo milho assado, canjica, ao som de músicas de quadrilha, baião, xote e xaxado.
União dos Palmares custou a acordar na manhã chuvosa do feriado de São Pedro. O irmão mais novo da dona da casa apareceu e nos convidou para almoçar em churrascaria na beira da estrada para Garanhuns. A rodovia sinuosa cortava a região serrana do norte de Alagoas, entre canaviais, laranjais, plantações de mandioca, banana e outros alimentos em encostas íngremes, verdes e férteis. O sol tornava a paisagem ainda mais colorida e brilhante. A churrascaria pertencia a um pequeno agricultor local que ganhara milhões na loteria anos antes.
A temperatura caiu levemente à noite e bateu vento fresco acompanhado de fracas pancadas de chuva. A família amiga me tratava com extremo carinho.
Primeiro dia do mês, feira semanal em União dos Palmares. Filas quilométricas nos terminais de autoatendimento do banco. Trabalhadores rurais, aposentados e pensionistas lotavam o saguão com rostos sofridos e roupas suadas.
A chuva começou no meio da manhã e não parou mais. Todos estavam à minha espera para o almoço de despedida. A dona da casa me presenteou com o delicioso licor de jenipapo, costume tradicional durante as festas juninas.
Ainda chovia muito quando eu e a amiga entramos no carro para pegar a estrada vazia. Uma hora depois estávamos em Maceió, minha velha conhecida de tantas viagens passadas. Me hospedei na casa da tia com quem ela morava há muito tempo.
E a chuva não parava. Mesmo assim fomos a um barzinho baiano, pertinho da Jatiúca, com pouca gente nas mesas. Aproveitamos para refletir e descer a lenha na indústria da religião, para as quais as tias dela foram aliciadas. A amiga estava desconsolada. E se sentia sufocada com o cerco do fundamentalismo das empresas evangélicas.
Amanheceu estiado depois de noite chuvosa. As muriçocas infernais foram implacáveis e picaram mesmo por cima do lençol. A tia evangélica insistiu para que eu convencesse o filho menor de idade a desistir do futebol e apenas continuar os estudos. Recusei delicadamente aquela batata quente. Ainda mais que o garoto resistia bravamente e não se deixava levar pelo fanatismo da mãe.
O desejo de seguir viagem e explorar novas paisagens crescia após aquela fase social da viagem. E as chuvas na região, típicas nessa época do ano, não colaboravam em nada. A comida servida na casa da tia, preparada pela empregada também fundamentalista, não dava para engolir. Nem o suco com odor de detergente. A tia não substituía a empregada porque ambas frequentavam o mesmo templo empresarial. Templo é dinheiro! Tudo pelo corporativismo da indústria religiosa. Então comíamos fora. Saboreamos deliciosa moqueca de sururu, polvo, peixe e camarão, caipirinhas, suco de mangaba, doce de goiaba.

E em plena segunda-feira, meu último dia em Maceió, amanheceu com céu azul e sol brilhante. Circulamos pelas praias de Jatiúca e Ponta Verde. Além de aproveitarmos o dia ensolarado, evitaríamos o grude na casa da tia. As praias não lotavam, as águas azuis esverdeadas do mar se sobressaíam na paisagem. E as ondas tornavam-se mais agitadas e altas à medida que seguíamos no rumo da praia da Cruz das Almas.
Embarquei em ônibus convencional, sem o supérfluo ar condicionado, para alívio da maioria dos passageiros. Após passar por Feira de Santana, a rodovia escancarou a imagem da Bahia ausente dos cartões postais. Trânsito infernal, buracos e mais buracos, poluição sonora e do ar. Miséria, abandono e falta de infraestrutura social nos vilarejos nas margens da estrada, habitados principalmente por negros. Os moradores improvisavam precárias fogueiras no acostamento, assavam sabugos de milho verde e tentavam vendê-los em meios aos veículos leves e pesados. Após a parada para o almoço em Itaberaba, onde estacionou outro ônibus com destino a Lençóis cheio de estrangeiros, a paisagem de caatinga predominou pelo restante do trajeto. Os morros do Pai Inácio e do Camelo, integrantes da região da Chapada Diamantina, se exibiram imponentes, bem próximos à estrada, pouco antes da chegada em Seabra. 
A partir desse ponto o ônibus penetrou no miolo do sertão oeste baiano, paupérrimo, com vegetação e riachos ressecados, serras pedregosas cobertas de mato ralo, muita desolação. Entre as localidades de Lagoa do Dionísio e Queimada Nova, desceu a serra da Mangabeira, áspera e cheia de pedras, através de estrada íngreme, sinuosa e estreita. Na parte mais baixa do relevo, no início da grande planície, a rodovia virou piada de mau gosto, entre grandes crateras, restos de asfalto, muita poeira. A velocidade dos veículos não ultrapassava vinte quilômetros por hora. Alguns optavam pela estrada paralela à rodovia, assumidamente caminho de areia e terra, porém com leito mais regular. Como na maioria dos casos das rodovias na Bahia, a situação da BR-242, que liga nada menos que Salvador à Brasília e ao centro oeste do país, era uma calamidade. Mas isso não aparecia nos folhetos turísticos do estado comandado com mãos de ferro pela camarilha do DEM.

Os passageiros se alternavam durante o percurso. Embarcavam e desembarcavam nas vilas e cidadezinhas, com ou sem bagagem. Sorriam e cumprimentavam. Queriam sempre conversar e falar sobre a vida. Eu estava no sertão, longe do turismo e dos comportamentos previsíveis, mas ao lado de povo maltratado, sofrido, simpático, de bom coração.
Em Ibotirama optei por hotel simples, novo e barato, próximo à rodovia. Jantei em restaurante familiar, pequeno, com comida farta e saborosa. Do lado de fora, um carro qualquer detonava o som do porta-malas para toda a cidade ouvir.
Amanheceu dia ensolarado e brilhante, típico dia outonal. Fresco nas sombras, pela manhã e noite, mas quente e seco sob o sol. Ibotirama apresentava ruas estreitas com casas baixas, avenidas largas com sobrados, árvores mutiladas geometricamente, reduzindo as sombras e estragando a naturalidade do verde. Caminhei pela rua principal, cruzei o centro comercial e, mais à frente, atingi a orla do rio São Francisco. A murada alta, calçadão estreito, bares, restaurantes e, mais atrás, o palco voltado para apresentações culturais. O Velho Chico impressionava pela imponência. Barcos pequenos a motor e canoas a remo atracavam nos barrancos. Os moradores circulavam, a pé ou de bicicleta, pela orla arborizada. Paravam sob a sombra e observavam, sem pressa, as águas caudalosas do rio, o movimento eventual de peixes, os pássaros na procura de comida na superfície. Pescadores aproximavam-se da beira e tentavam a sorte com anzol ou tarrafa. Lavadeiras em grupos traziam baldes de roupa, estendendo-as depois para secar nas pedras. Amigos conversavam sob as sombras, namorados aproveitavam a calmaria.

A mata ciliar original na maior parte do curso do rio São Francisco tinha sido devastada e o solo fora exposto à chuva e ao sol. O volume, profundidade e qualidade das águas sofriam com a situação, causando assoreamento, poluição, diminuição e até extinção dos peixes, além de comprometer a qualidade de vida das populações ribeirinhas. Também não havia mais linhas regulares de barcos de passageiros, vapores, lanchas. O assoreamento criminoso do rio reduziu drasticamente a profundidade das águas. E as rodovias esburacadas que correm paralelamente ao rio decretaram o fim daquele meio de transporte, tradicional, simpático e eficiente. A necessidade da revitalização do Velho Chico estava há anos na ordem do dia.
O fundamentalismo e a indústria a religião continuavam a fazer estragos. O cada vez mais retrógrado vestuário das fanáticas piorava em Ibotirama com as roupas mais fechadas, mais conservadoras, mais ridículas. Dava pena de ver as crianças coagidas a vestirem coisas que as transformavam em idiotas. E aterrissou na cidade um grupo de cristãos fanáticos, ainda mais fervorosos, ocupando imensas caminhonetes. As mulheres vestiam roupas medievais, usavam corte de cabelo medieval, cobriam a cabeça com toucas medievais. Pareciam vindas da época da inquisição. Os homens, de ar carrancudo, vestiam-se normalmente, fazendo jus a essas seitas extremamente machistas.
Não havia terminal rodoviário em Ibotirama. O movimento acontecia nas lojas das empresas de ônibus, situadas em endereços diferentes. Muita gente e muita confusão. Nada de horários afixados em local visível ou plataformas de embarque e desembarque. Os passageiros corriam aos ônibus para saber de onde vinham e para onde iam. Os funcionários da bilheteria comunicavam apenas a partir de que horas o ônibus poderia partir.
continua...

2 comentários:

  1. Fico fazendo um paralelo comparativo entre as grandes cidades, com sua indiferença social, problemas de infra estrutura e as cidades interioranas, que apesar de haver tanta carência, ainda existe a hospitalidade. Povo sofrido, humildade mas rico em carisma, que conquistam o respeito por sua simplicidade, honestidade e nos acrescem com sua sabedoria, adquirida ao longo de suas vidas. Ler sobre cidades pequenas, pitorescas, povo simples, terrenos íngremes, planícies, o Velho Chico sobrevivendo, estradas a desejar...aguça cada dia mais a curiosidade de conviver em locais assim, afinal sou adaptável...espero. Abraços. Sigo para a última etapa.

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  2. E pensar que até as maiores cidades brasileiras um dia foram também hospitaleiras e acolhedoras, mesmo mais populosas que essas cidadezinhas pelas quais passei.
    Talvez esse sistema que impele as pessoas ao consumismo desenfreado, ao individualismo destituído de individualidade, à competição selvagem, ao culto à aparência, alienado e alienante, conduza esse rebanho de ovelhas para uma armadilha sem saídas.
    Mas, se foi construído pelos seres humanos, esse sistema também pode ser substituído por outro, também pelos seres humanos.
    Depende de nós!
    Abraços.

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