...continuação
O barco atracou no porto de Manaus três dias depois da
partida em Porto Velho. Nem bem entrei no quarto do hotel e já sentia falta das
viagens fluviais.
Li bastante e travei árdua luta com os carapanãs do
quarto. Atacavam somente à traição, se escondiam sobre fundos escuros, pareciam
notar quando eu os encarava e imediatamente desapareciam. Faziam guerra de
guerrilha, só avançavam na certeza, em minhas desatenções ou quando eu olhava
em outras direções. Foram trinta minutos de paciência e obstinação. Mas compensou
a leitura do clássico Memórias de um
Sargento de Milícias, de Manoel Antônio de Almeida.
A cinzenta Manaus sempre encarou a floresta como
obstáculo. Por isso o uso abusivo de concreto e asfalto. Quase nada de árvores
e sombras refrescantes. O calor insuportável, as enchentes, o alto consumo de
ar condicionado, não eram meras coincidências. A cidade também repelia a herança
indígena, ignorando a sabedoria milenar dos povos que sempre habitaram a região
antes da invasão europeia. E a cidade se tornava consumista, individualista,
feia, com esgoto a céu aberto, sem verde, sem áreas públicas de lazer, sem
valorização do belíssimo rio Negro, sem humanidade.
O barco partiu praticamente vazio, como se fosse
entre grupo de amigos. A noite foi estrelada com direito a jogo de dominó.
Amanheceu e o barco deixou a infinidade de água do leito
principal do rio Amazonas e cortou caminho por paranás e igarapés estreitos,
cortando extensas zonas alagadas. As terras que abrigavam casinhas de palha ou
madeira estavam parcialmente submersas. Eram fazendas de gado, pequenas
comunidades, habitações isoladas que funcionavam na época seca. As cheias
faziam as famílias migrarem para terras mais altas. Os ribeirinhos nos
ensinavam como se comportar harmonicamente com as diferentes estações da
natureza.
E o barco atracou no porto flutuante da cidade de
Nhamundá.
As águas do rio Nhamundá batiam nos barrancos do fundo do
hotel. Os coqueiros, laranjeiras, árvores floridas, passavam atmosfera de
cabana e praia. Com o rio cheio, a praia, dotada de centro cultural, quiosque
para festas, bares, estava reduzida a curta e estreita faixa de areia. Até
árvores e postes de iluminação encontravam-se parcialmente submersos. O
contraste entre o branco da areia e o negro das águas do rio encantava os
olhos. No auge da estação seca, quando se formavam longas praias, a cidade
organizava o festival de pesca do tucunaré.
A cidade de Nhamundá se situa em ilha alongada no rio de
mesmo nome. Dei a volta completa em toda a ilha, sem pressa. Raros eram os
carros circulando pelas ruas. As bicicletas reinavam, seguidas dos pedestres e
motos. Crianças e adultos paravam a fim de me observar melhor, esperando minha
iniciativa para o cumprimento. Os velhos ditadores regionais estavam
onipresentes na cidade, com os nomes em escolas, ruas, praças, prédios
públicos.
O sexagenário proprietário do hotel vivia sozinho, longe
da esposa residente em Manaus. Gastava uns trocados com mulheres, de
preferência as maduras, inclusive as casadas. Elas sempre precisavam de
dinheiro e o conheciam pela generosidade. Ele se gabava descrevendo o diálogo com
as candidatas:
- Tudo bem com o senhor?
-
Tudo bem e a senhora?
-
Tudo bem também. Desculpe incomodar, mas estou precisando de dinheiro.
-
Quanto?
-
Pode ser 10 reais.
-
Sem problema.
-
Muito obrigado.
- E
como vai me pagar? Não precisa responder...eu sei...
-
É...
-
Quando a senhora pode vir?
-
Hoje à tarde. Meu marido estará fora.
-
Está bem, toma lá 20 reais. Espero à tarde então.
E ele me dizia com o olhar bondoso:
Ela estava precisando. Eu ajudei. Elas sempre aparecem...
Tomei pequeno barco para a cidade paraense de Faro na
margem esquerda do rio Nhamundá. Faro era menor, mais antiga e menos
movimentada. Os alegres moradores sempre me cumprimentavam ou sorriam. Ouvi
pelos alto-falantes nas ruas o transcorrer da sessão ordinária da câmara
municipal. A pauta única homenageava a sogra de um dos vereadores, falecida na
noite anterior. Os nobres parlamentares declamavam adulações decoradas à
defunta, enalteciam o exemplo de vida, as qualidades e outras importâncias.
Retornei ao lado amazonense.
O prefeito de Nhamundá estava em Manaus, em debate
transmitido ao vivo para a televisão da cidade. O assunto era o cultivo de
dendê no município. Os poucos clientes do restaurante costumeiro agouravam e
afirmavam que o projeto jamais daria certo. Os garçons e funcionários viam a
iniciativa com bons olhos.
O barco partiu no início da noite rumo à cara viagem de
apenas quatro horas até Parintins. O vento era fraco e morno, o céu bastante
estrelado. O percurso passou por paranás, alagados, furos. As árvores
esporadicamente se aproximavam, zonas de capim exalavam forte odor de mato,
sapos e rãs faziam uma barulheira enorme. Desembocou no rio Amazonas apenas no
final da viagem.
Ao desembarcar em Parintins, subi em moto-táxi para me
levar até hotel antigo. A energia se foi no meio da madrugada. O quarto, sem
ventilação natural, ficou um forno.
Parintins, cidade bonita e aparentemente arrumada, contava
com esgoto a céu aberto, com água negra e fétida correndo nas ruas, calçadas
raras e esburacadas. O poder público e a indústria do turismo, setores mais
voltados aos lucros da festa do boi-bumbá, talvez se esquecessem desses
“pequenos” detalhes para quem vivia diariamente na cidade.
Assisti à parte dos ensaios no curral do boi Caprichoso por
ficar mais perto do centro. Muita gente, muita animação e entrada livre. Do
lado de fora, bares e barracas de ambulantes vendiam comes e bebes. As
cantorias e as coreografias, como notadas no ano anterior, decepcionaram. O
ritmo lembrava as fanfarras estudantis. As coreografias, executadas por
crianças e jovens com trajes indígenas, mais pareciam às das dançarinas de
programas de auditório. Movimentos pré-definidos de braços, pernas, quadris.
Tudo no embalo das toadas, interpretadas pelo puxador e acompanhadas por
percussões e teclado.
Retornei em longa volta pela bucólica orla antiga do rio
Amazonas, de longe o melhor pedaço da cidade. Silêncio, calma, casais
namorando, pouca gente circulando. As águas refletiam a luz prateada da lua
quarto crescente. Antiga, estreita, sinuosa, humanamente urbanizada, a orla
guardava árvores, bancos de jardim, pequenas e simpáticas praças, bares
discretos, extensa murada e a encosta para o rio. Durante as manhãs, poucas
pessoas circulavam por ali e a paz era ainda maior.
Praticamente ninguém andava a pé em Parintins. As
bicicletas e principalmente as motos predominavam nas ruas. Carros, para o bem
da cidade e dos moradores, ainda eram poucos.
O proprietário de restaurante pintava quadros em tecidos.
Os temas abrangiam cenas amazônicas, utilizando cores fortes em estilo
realista, surrealista, cubista. Era famoso e atendia encomendas da elite
regional. Pretendia candidatar-se naquele ano à presidência de um dos dois
únicos bois-bumbá de Parintins. Eram dois bois, somente dois, nada mais que
dois bois.
A lancha embicou no flutuante no começo da tarde. As águas
do rio Amazonas pareciam as do oceano, agitadas e com ondas. Tomei a sopa com
pão e cochilei. A lancha atracou nas docas de Santarém à noite. Os tipos
físicos mudaram visivelmente quando cruzei a fronteira do Pará. Traços mais
alongados, mais miscigenação, mais mulatas, mais loiras.
O tempo permanecia instável, abafado, com nuvens
carregadas, sol ardido. Mas o calor não me impediu de ir ao restaurante
especializado em caldeiradas de peixes regionais. Tomei duas caipirinhas
enquanto esperava a caldeirada de tambaqui, que me deixou totalmente ensopado
de suor. Ainda matei a sede com a jarra de suco de cupuaçu.
Santarém permanecia simpática e agradável, pelo menos na
região da orla do rio Tapajós. Em noite calma de quarta-feira, moradores
caminhavam pelo calçadão, outros pescavam, outros sentavam na calçada para
conversar ou namorar. Soprava brisa refrescante do rio.
Caminhei até o porto, deixei a mochila no camarote, me
sentei no convés intermediário para descansar. O calor abafado não dava tréguas
e a fraca brisa vinda do rio não refrescava. O sol abriu e o calor tendeu ao
infinito.
O barco que partiu ao entardecer oferecia dois pisos
utilizáveis. O terceiro estava vazio e era usado apenas para a caixa d’água e
estender roupas. Mas os integrantes do grupo musical, que também seguiriam no
barco, instalaram toda a parafernália sonora justamente ali, ligando brega e
forró no último volume.
Depois do banho frio e dois pratos da sopa substanciosa,
alguns passageiros bebiam cerveja, outros se recolhiam às redes. O vento morno
soprava na noite e relâmpagos brilhavam no leste.
Após a partida noturna da cidade de Monte Alegre pegamos
forte tempestade. As águas do rio Amazonas se agitaram. O barco oscilava
terrivelmente. Ninguém conseguia relaxar. O pânico tomou conta dos passageiros
e até de alguns tripulantes. Ouvimos forte pancada e entrou água pela popa.
Caixas de bebidas deixadas no convés superior se esparramaram pelo piso
causando barulho preocupante. Passava das três horas da madrugada. Alguns
passageiros choravam e gritavam, outros vestiam os coletes salva-vidas de
maneira desajeitada. Em gesto desesperado uma mãe enfiou o bebê de colo pelo
orifício do colete e nem sequer tentou amarrá-lo. Os olhares de todos estavam
vidrados. Permaneci na porta do camarote, observando tudo, tremendo de medo. O
comandante mostrava segurança nas decisões, com experiência de vinte anos
naquela rota. A chuva não cessava, o vento tardava a atenuar, nos torturando
durante horas. Muito medo e apreensão. Aos poucos, porém, a calmaria predominou
e a maioria retornou lentamente às redes.
Amanheceu e atracamos na cidade de Prainha. Chovia com
vento reduzido. As águas, no entanto, permaneciam agitadas. Os olhos de todos
revelavam a noite mal dormida e o alívio de estarmos vivos.
O barco deixou as águas revoltas do rio Amazonas e entrou
em extenso paraná. Aquelas águas calmas nunca foram tão bem-vindas. Ao norte
despontava a serra da Velha Pobre. O tempo esquentou e o sol furou o bloqueio
das nuvens. Atracamos na cidade de Almeirim, na foz do rio Paru, no começo da
tarde.
A calmaria do lado de fora permanecia firme. Após o anoitecer entramos no rio Jari e iniciamos a subida pelas águas escuras, calmas e espelhadas. Até o comandante comemorou a tranquilidade para pilotar a embarcação. Parada para desembarque na cidadezinha amapaense de Jarilândia. O barco subia o rio Jari tendo o Pará à esquerda, o Amapá à direita.
continua...A calmaria do lado de fora permanecia firme. Após o anoitecer entramos no rio Jari e iniciamos a subida pelas águas escuras, calmas e espelhadas. Até o comandante comemorou a tranquilidade para pilotar a embarcação. Parada para desembarque na cidadezinha amapaense de Jarilândia. O barco subia o rio Jari tendo o Pará à esquerda, o Amapá à direita.
Ler sobre suas viagens é um entretenimento cultural e lazer, porque vivencio cada situação. Cada etapa de tua viagem sou surpreendida pela clareza e riqueza da descrição. É um prazer lê-lo. Abraços.
ResponderExcluirObrigado pelos comentários, Ivete!
ResponderExcluirEssa é justamente a ideia que passo nos relatos, o que vi e senti, as impressões, as sensações, as reflexões e, é claro, algumas descrições também.
E vamos viajando e relatando...
"Pretendia candidatar-se naquele ano à presidência de um dos dois únicos bois-bumbá de Parintins. Eram dois bois, somente dois, nada mais que dois bois." Provocou-me risadas esse comentário sobre os bois de Parintins. Sei que seu blog é de relatos e impressões, mas é uma pena você ter presenciado apenas uma pequena parte da festa do boi-bumbá sem poder ter a oportunidade de conhecer o festival em si que ocorre no último fim de semana de junho (e duvido que irás conhecer ao vivo, haja vista os preços abusivos dos ingressos e a dificuldade em acessar aos setores gratuitos). Mesmo assim, fica o convite pois quem já viu de perto sabe o que é a emoção, grandiosidade das apresentações de Caprichoso e Garantido que são ricas na mitologia indígena, costumes dos caboclos e porta-vozes da preservação da Amazônia.
ResponderExcluirTambém o convido a ouvir as toadas onde há verdadeiros poemas sobre o universo amazônico. A seguir um trecho da toada de Ronaldo Barbosa, "Poder da Criação", Caprichoso 1994:
"vai piracema na dança das aguas
voa nas asa do vento o gavião
És o encontro de todas as raças
És o encontro das águas em meu coração
És a força do vento dos lagos do rio,
furos, igarapés
das matas as campinas os sertões
dos vales das montanhas, as planícies e estrelas no céu"
Att, Jafé Praia
Oi Jafé, obrigado pela visita e pelos comentários sempre pertinentes.
ResponderExcluirEstou precisando mesmo retornar àquela região do Amazonas. Mas, como bem frisou, durante as festas os preços perdem a graça.
Trouxe de lá um CD com versões acústicas das toadas. Voz e violão. Gostei muito e sempre ouço. As letras, como essa que me mandou, sempre encantam.
Saudades de percorrer de barco aqueles rios todos do Amazonas. E não faz nem um ano da última viagem ao rio Japurá.
Abraços e comente sempre!