quarta-feira, 13 de outubro de 2010

do Acre à Bahia (parte 2/7)

...continuação
O barco atracou no porto de Manaus três dias depois da partida em Porto Velho. Nem bem entrei no quarto do hotel e já sentia falta das viagens fluviais.
Li bastante e travei árdua luta com os carapanãs do quarto. Atacavam somente à traição, se escondiam sobre fundos escuros, pareciam notar quando eu os encarava e imediatamente desapareciam. Faziam guerra de guerrilha, só avançavam na certeza, em minhas desatenções ou quando eu olhava em outras direções. Foram trinta minutos de paciência e obstinação. Mas compensou a leitura do clássico Memórias de um Sargento de Milícias, de Manoel Antônio de Almeida.
A cinzenta Manaus sempre encarou a floresta como obstáculo. Por isso o uso abusivo de concreto e asfalto. Quase nada de árvores e sombras refrescantes. O calor insuportável, as enchentes, o alto consumo de ar condicionado, não eram meras coincidências. A cidade também repelia a herança indígena, ignorando a sabedoria milenar dos povos que sempre habitaram a região antes da invasão europeia. E a cidade se tornava consumista, individualista, feia, com esgoto a céu aberto, sem verde, sem áreas públicas de lazer, sem valorização do belíssimo rio Negro, sem humanidade.
O barco partiu praticamente vazio, como se fosse entre grupo de amigos. A noite foi estrelada com direito a jogo de dominó.

Amanheceu e o barco deixou a infinidade de água do leito principal do rio Amazonas e cortou caminho por paranás e igarapés estreitos, cortando extensas zonas alagadas. As terras que abrigavam casinhas de palha ou madeira estavam parcialmente submersas. Eram fazendas de gado, pequenas comunidades, habitações isoladas que funcionavam na época seca. As cheias faziam as famílias migrarem para terras mais altas. Os ribeirinhos nos ensinavam como se comportar harmonicamente com as diferentes estações da natureza.
E o barco atracou no porto flutuante da cidade de Nhamundá.
As águas do rio Nhamundá batiam nos barrancos do fundo do hotel. Os coqueiros, laranjeiras, árvores floridas, passavam atmosfera de cabana e praia. Com o rio cheio, a praia, dotada de centro cultural, quiosque para festas, bares, estava reduzida a curta e estreita faixa de areia. Até árvores e postes de iluminação encontravam-se parcialmente submersos. O contraste entre o branco da areia e o negro das águas do rio encantava os olhos. No auge da estação seca, quando se formavam longas praias, a cidade organizava o festival de pesca do tucunaré.
A cidade de Nhamundá se situa em ilha alongada no rio de mesmo nome. Dei a volta completa em toda a ilha, sem pressa. Raros eram os carros circulando pelas ruas. As bicicletas reinavam, seguidas dos pedestres e motos. Crianças e adultos paravam a fim de me observar melhor, esperando minha iniciativa para o cumprimento. Os velhos ditadores regionais estavam onipresentes na cidade, com os nomes em escolas, ruas, praças, prédios públicos.
O sexagenário proprietário do hotel vivia sozinho, longe da esposa residente em Manaus. Gastava uns trocados com mulheres, de preferência as maduras, inclusive as casadas. Elas sempre precisavam de dinheiro e o conheciam pela generosidade. Ele se gabava descrevendo o diálogo com as candidatas:
- Tudo bem com o senhor?
- Tudo bem e a senhora?
- Tudo bem também. Desculpe incomodar, mas estou precisando de dinheiro.
- Quanto?
- Pode ser 10 reais.
- Sem problema.
- Muito obrigado.
- E como vai me pagar? Não precisa responder...eu sei...
- É...
- Quando a senhora pode vir?
- Hoje à tarde. Meu marido estará fora.
- Está bem, toma lá 20 reais. Espero à tarde então.
E ele me dizia com o olhar bondoso:
Ela estava precisando. Eu ajudei. Elas sempre aparecem...

Tomei pequeno barco para a cidade paraense de Faro na margem esquerda do rio Nhamundá. Faro era menor, mais antiga e menos movimentada. Os alegres moradores sempre me cumprimentavam ou sorriam. Ouvi pelos alto-falantes nas ruas o transcorrer da sessão ordinária da câmara municipal. A pauta única homenageava a sogra de um dos vereadores, falecida na noite anterior. Os nobres parlamentares declamavam adulações decoradas à defunta, enalteciam o exemplo de vida, as qualidades e outras importâncias. Retornei ao lado amazonense.
O prefeito de Nhamundá estava em Manaus, em debate transmitido ao vivo para a televisão da cidade. O assunto era o cultivo de dendê no município. Os poucos clientes do restaurante costumeiro agouravam e afirmavam que o projeto jamais daria certo. Os garçons e funcionários viam a iniciativa com bons olhos.
O barco partiu no início da noite rumo à cara viagem de apenas quatro horas até Parintins. O vento era fraco e morno, o céu bastante estrelado. O percurso passou por paranás, alagados, furos. As árvores esporadicamente se aproximavam, zonas de capim exalavam forte odor de mato, sapos e rãs faziam uma barulheira enorme. Desembocou no rio Amazonas apenas no final da viagem.
Ao desembarcar em Parintins, subi em moto-táxi para me levar até hotel antigo. A energia se foi no meio da madrugada. O quarto, sem ventilação natural, ficou um forno.
Parintins, cidade bonita e aparentemente arrumada, contava com esgoto a céu aberto, com água negra e fétida correndo nas ruas, calçadas raras e esburacadas. O poder público e a indústria do turismo, setores mais voltados aos lucros da festa do boi-bumbá, talvez se esquecessem desses “pequenos” detalhes para quem vivia diariamente na cidade.
Assisti à parte dos ensaios no curral do boi Caprichoso por ficar mais perto do centro. Muita gente, muita animação e entrada livre. Do lado de fora, bares e barracas de ambulantes vendiam comes e bebes. As cantorias e as coreografias, como notadas no ano anterior, decepcionaram. O ritmo lembrava as fanfarras estudantis. As coreografias, executadas por crianças e jovens com trajes indígenas, mais pareciam às das dançarinas de programas de auditório. Movimentos pré-definidos de braços, pernas, quadris. Tudo no embalo das toadas, interpretadas pelo puxador e acompanhadas por percussões e teclado.

Retornei em longa volta pela bucólica orla antiga do rio Amazonas, de longe o melhor pedaço da cidade. Silêncio, calma, casais namorando, pouca gente circulando. As águas refletiam a luz prateada da lua quarto crescente. Antiga, estreita, sinuosa, humanamente urbanizada, a orla guardava árvores, bancos de jardim, pequenas e simpáticas praças, bares discretos, extensa murada e a encosta para o rio. Durante as manhãs, poucas pessoas circulavam por ali e a paz era ainda maior.
Praticamente ninguém andava a pé em Parintins. As bicicletas e principalmente as motos predominavam nas ruas. Carros, para o bem da cidade e dos moradores, ainda eram poucos.
O proprietário de restaurante pintava quadros em tecidos. Os temas abrangiam cenas amazônicas, utilizando cores fortes em estilo realista, surrealista, cubista. Era famoso e atendia encomendas da elite regional. Pretendia candidatar-se naquele ano à presidência de um dos dois únicos bois-bumbá de Parintins. Eram dois bois, somente dois, nada mais que dois bois.
A lancha embicou no flutuante no começo da tarde. As águas do rio Amazonas pareciam as do oceano, agitadas e com ondas. Tomei a sopa com pão e cochilei. A lancha atracou nas docas de Santarém à noite. Os tipos físicos mudaram visivelmente quando cruzei a fronteira do Pará. Traços mais alongados, mais miscigenação, mais mulatas, mais loiras.
O tempo permanecia instável, abafado, com nuvens carregadas, sol ardido. Mas o calor não me impediu de ir ao restaurante especializado em caldeiradas de peixes regionais. Tomei duas caipirinhas enquanto esperava a caldeirada de tambaqui, que me deixou totalmente ensopado de suor. Ainda matei a sede com a jarra de suco de cupuaçu.
Santarém permanecia simpática e agradável, pelo menos na região da orla do rio Tapajós. Em noite calma de quarta-feira, moradores caminhavam pelo calçadão, outros pescavam, outros sentavam na calçada para conversar ou namorar. Soprava brisa refrescante do rio.
Caminhei até o porto, deixei a mochila no camarote, me sentei no convés intermediário para descansar. O calor abafado não dava tréguas e a fraca brisa vinda do rio não refrescava. O sol abriu e o calor tendeu ao infinito.
O barco que partiu ao entardecer oferecia dois pisos utilizáveis. O terceiro estava vazio e era usado apenas para a caixa d’água e estender roupas. Mas os integrantes do grupo musical, que também seguiriam no barco, instalaram toda a parafernália sonora justamente ali, ligando brega e forró no último volume.

Depois do banho frio e dois pratos da sopa substanciosa, alguns passageiros bebiam cerveja, outros se recolhiam às redes. O vento morno soprava na noite e relâmpagos brilhavam no leste.
Após a partida noturna da cidade de Monte Alegre pegamos forte tempestade. As águas do rio Amazonas se agitaram. O barco oscilava terrivelmente. Ninguém conseguia relaxar. O pânico tomou conta dos passageiros e até de alguns tripulantes. Ouvimos forte pancada e entrou água pela popa. Caixas de bebidas deixadas no convés superior se esparramaram pelo piso causando barulho preocupante. Passava das três horas da madrugada. Alguns passageiros choravam e gritavam, outros vestiam os coletes salva-vidas de maneira desajeitada. Em gesto desesperado uma mãe enfiou o bebê de colo pelo orifício do colete e nem sequer tentou amarrá-lo. Os olhares de todos estavam vidrados. Permaneci na porta do camarote, observando tudo, tremendo de medo. O comandante mostrava segurança nas decisões, com experiência de vinte anos naquela rota. A chuva não cessava, o vento tardava a atenuar, nos torturando durante horas. Muito medo e apreensão. Aos poucos, porém, a calmaria predominou e a maioria retornou lentamente às redes.
Amanheceu e atracamos na cidade de Prainha. Chovia com vento reduzido. As águas, no entanto, permaneciam agitadas. Os olhos de todos revelavam a noite mal dormida e o alívio de estarmos vivos.
O barco deixou as águas revoltas do rio Amazonas e entrou em extenso paraná. Aquelas águas calmas nunca foram tão bem-vindas. Ao norte despontava a serra da Velha Pobre. O tempo esquentou e o sol furou o bloqueio das nuvens. Atracamos na cidade de Almeirim, na foz do rio Paru, no começo da tarde.
             A calmaria do lado de fora permanecia firme. Após o anoitecer entramos no rio Jari e iniciamos a subida pelas águas escuras, calmas e espelhadas. Até o comandante comemorou a tranquilidade para pilotar a embarcação. Parada para desembarque na cidadezinha amapaense de Jarilândia. O barco subia o rio Jari tendo o Pará à esquerda, o Amapá à direita.
continua...

4 comentários:

  1. Ler sobre suas viagens é um entretenimento cultural e lazer, porque vivencio cada situação. Cada etapa de tua viagem sou surpreendida pela clareza e riqueza da descrição. É um prazer lê-lo. Abraços.

    ResponderExcluir
  2. Obrigado pelos comentários, Ivete!
    Essa é justamente a ideia que passo nos relatos, o que vi e senti, as impressões, as sensações, as reflexões e, é claro, algumas descrições também.
    E vamos viajando e relatando...

    ResponderExcluir
  3. "Pretendia candidatar-se naquele ano à presidência de um dos dois únicos bois-bumbá de Parintins. Eram dois bois, somente dois, nada mais que dois bois." Provocou-me risadas esse comentário sobre os bois de Parintins. Sei que seu blog é de relatos e impressões, mas é uma pena você ter presenciado apenas uma pequena parte da festa do boi-bumbá sem poder ter a oportunidade de conhecer o festival em si que ocorre no último fim de semana de junho (e duvido que irás conhecer ao vivo, haja vista os preços abusivos dos ingressos e a dificuldade em acessar aos setores gratuitos). Mesmo assim, fica o convite pois quem já viu de perto sabe o que é a emoção, grandiosidade das apresentações de Caprichoso e Garantido que são ricas na mitologia indígena, costumes dos caboclos e porta-vozes da preservação da Amazônia.
    Também o convido a ouvir as toadas onde há verdadeiros poemas sobre o universo amazônico. A seguir um trecho da toada de Ronaldo Barbosa, "Poder da Criação", Caprichoso 1994:
    "vai piracema na dança das aguas
    voa nas asa do vento o gavião
    És o encontro de todas as raças
    És o encontro das águas em meu coração
    És a força do vento dos lagos do rio,
    furos, igarapés
    das matas as campinas os sertões
    dos vales das montanhas, as planícies e estrelas no céu"

    Att, Jafé Praia

    ResponderExcluir
  4. Oi Jafé, obrigado pela visita e pelos comentários sempre pertinentes.
    Estou precisando mesmo retornar àquela região do Amazonas. Mas, como bem frisou, durante as festas os preços perdem a graça.
    Trouxe de lá um CD com versões acústicas das toadas. Voz e violão. Gostei muito e sempre ouço. As letras, como essa que me mandou, sempre encantam.
    Saudades de percorrer de barco aqueles rios todos do Amazonas. E não faz nem um ano da última viagem ao rio Japurá.
    Abraços e comente sempre!

    ResponderExcluir