...continuação
Parada ainda no escuro em Vitória do Jari. Em frente, do
lado paraense, cenário típico de Cubatão. Indústrias, chaminés, fumaça
fedorenta, ruídos de máquinas. Era a fábrica de celulose do Jari.
Chegada em Laranjal do Jari em pleno amanhecer. O ambiente
na beira do rio estava agitado àquela hora da manhã. Em alguns bares a noite
ainda não havia terminado. As construções eram de madeira, no formato de
palafitas, ou esteio.
Subi em um táxi lotação no início enlameado da grande
avenida que ligava as partes antiga e nova de Laranjal do Jari. Em ambos os
lados, passarelas e mais passarelas de acesso a dezenas de casas e barracos de
madeira, podres ou quase podres. Nenhum sinal de saneamento básico, água
encanada, coleta de lixo.
Laranjal do Jari era fantástica, horrorosa e fascinante ao
mesmo tempo. O charme concentrava-se na margem do rio, no famigerado
“Beiradão”, que correu fama durante as décadas de 1970 e 1980 pela violência e
prostituição desenfreadas, ao lado de miséria alarmante, da ausência de
qualquer tipo de infraestrutura social. E tudo graças ao vizinho paraense
Projeto Jari, de propriedade, na época, do milionário estadunidense Daniel
Ludwig. O objetivo era o lucro imediato, indiferente à desgraça dos
trabalhadores e da população. O país vivia sob a ditadura civil e militar,
protegendo o grande capital, sobretudo o estrangeiro, contra o povo brasileiro.
Ali virou um emaranhado de esteios, interligados por
passarelas precárias, em madeira, em estado avançado de deterioração. Pelos
becos estreitos estendiam-se o comércio variado, dormitórios e hotéis
decrépitos, restaurantes baratos, oficinas, residências podres, bares sujos e
com frequência para lá de pesada, puteiros sombrios, igrejas, escritórios
públicos antigos, diversos ancoradouros onde também se limpavam peixes. As
águas escuras e entupidas de lixo do rio Jari circulavam por baixo e, nessa
época de cheia, quase tocavam as passarelas. O complexo urbano sustentava-se
sobre extensa área de várzea que avançava até a parte mais alta da cidade. Foi
construído espontaneamente e assim sobrevivia aos trancos e barrancos,
esquecidos pelos órgãos públicos.
Pela manhã os bares do Beiradão já exibiam bêbados, putas,
jogadores. Os moradores garantiam que o clima dali acalmara com o tempo e já
não ocorria média diária de dez a quinze assassinatos. Repetiam que a polícia
federal conseguiu dar conta do recado, mas, à noite, ninguém garantia a
segurança de ninguém. O Beiradão, na verdade, nunca foi caso de polícia, mas de
ausência de justiça social e dignidade humana. O local deveria ser preservado e
combinado com urgentes e intensos investimentos sociais controlados pelos
próprios moradores.
Cheguei de catraia à margem paraense do rio Jari, no
distrito de Monte Dourado, município de Almeirim. Do alto a visão privilegiada
do rio e, no lado amapaense, os esteios do Beiradão em Laranjal do Jari.
As variadas casas noturnas abundavam em Laranjal do Jari,
prometendo atrações irresistíveis para aquela noite de sábado. Os principais
bares, restaurantes, hotéis e casas noturnas situavam-se na avenida principal,
ao lado de inúmeras empresas evangélicas caça-níqueis, que usavam e abusavam de
todos os nomes possíveis para atrair trouxas. Pelos alto-falantes berravam
propaganda obscurantista, o fanatismo, o fim do mundo para quem não se
entregasse a Je$u$. Também carros de som convocavam a população para as
atrações do circo precário, entre elas a de desvendar os segredos da vassoura
amaldiçoada.
E a noite começou mostrando grande animação na cidade. Ao
redor da praça da parte nova a frequência era variada e democrática. Cada um se
comportava ou se vestia como queria, descontraindo o ambiente. Caminhavam,
paqueravam, bebiam, comiam, conversavam em grupos ou casais.
Comprei um litro de açaí grosso em um dos inúmeros pontos
de venda de vinho de açaí. Usei a cozinha do hotel para acrescentar açúcar,
algumas pedras de gelo e degustar aquela iguaria em menos de cinco minutos.
Acordei cedo, empurrei o café da manhã e esperei o ônibus
a caminho de Macapá. A estrada de chão estava em condições razoáveis, com
buracos e pontos de lama devidos às recentes chuvas de inverno. O veículo velho,
mal cuidado, sem espaço suficiente para as pernas, atolou apenas uma vez. Os
passageiros tiveram que desembarcar e subir a rampa a pé. O motorista conseguiu
desencalhar e reembarcamos.
A paisagem mostrava relevo ondulado, com muitos sobes e
desces. Cruzou a extensa reserva extrativista do Cajari, unidade de conservação
de desenvolvimento sustentável para extração de castanha da Amazônia.
Impressionaram as imensas e centenárias castanheiras. Foram quilômetros e
quilômetros de mata nativa, variada e bem preservada dentro da reserva. Mais
adiante a rodovia cortou grandes extensões de cerrado, com árvores retorcidas,
campos, buritizais, igarapés fluindo sobre lajes de pedra. Atravessou pontes de
madeira sobre igarapés de águas escuras ou esverdeadas. Os açaizais abundavam,
carregados de frutos. Poucas casas nas margens da estrada.
Entardecia ao entrar na rodoviária de Macapá.
Anoiteceu e saí em direção à simpática orla na margem do
rio Amazonas. Optei por barraca de rua para saborear vatapá, maniçoba e arroz.
O sorvete caprichado saciou a fome. A lua cheia refletida nas águas recuadas
pela maré do rio Amazonas dava espetáculos à parte, de coloração alaranjada,
passando a amarelada e finalmente prateada, enorme e brilhante.
Macapá agradava com centro arborizado, praças, extensa
orla urbanizada de maneira humana na margem do rio, pela qual espalhavam
espaços para atividades físicas, caminhadas, namoro, bares, restaurantes e
lanchonetes, em geral para o lazer noturno. No almoço encarei caldeirada de
filhote em local com visual do rio Amazonas e das ilhas no fundo do horizonte.
Saí dali alimentado, ensopado de suor, feliz da vida.
A lancha partiu na maré alta e chegou em Afuá ao
entardecer, cortando paranás do delta do rio Amazonas. Quando a terra se
aproximava, surgiram açaizais, buritizais e demais palmeiras, casas de madeira
isoladas.
Acordei cedo e conversei com um
catarinense radicado na região, que ganhava dinheiro cortando os caules dos
açaizeiros para vender palmito. Graças a esse processo predatório, os açaizais
estavam em acelerado processo de extinção. E ninguém parecia se importar.
O município paraense de Afuá, no noroeste da ilha do
Marajó, era suspenso e na forma de palafitas interligadas por passarelas de
madeira, exceto as principais, de cimento. Não havia nenhum tipo de veículo
motorizado em Afuá, nem carros, nem motos, apenas bicicletas e os famosos
bicitáxis. Os afuaenses ligavam duas bicicletas através de canos soldados,
instalavam bancos estofados para duas ou três pessoas na frente, no meio, na parte
de trás. Eventualmente usavam a traseira como bagageiro ou caixas de som. Havia
pedais em ambos os lados e o volante no lado esquerdo do banco dianteiro. E
podiam ser alugados. Circulavam durante a noite com iluminação provocante,
invariavelmente acompanhada da sonoplastia das caixas de som, causando
sensação.
O almoço na pousada foi um banquete, na base de arroz com
chicória, camarão, carne de jaboti, filé de peixe, feijão, salada de camarão
miúdo e palmito, sucos, açaí de sobremesa. Não satisfeito, encomendei à tarde um
litro de açaí grosso. Devorei o litro todo com adição de açúcar e farinha para
encorpar ainda mais.
Caminhei na parte de trás da cidade, área maior que a
central, mais nova, mais pobre, mas com as mesmas características, suspensa e
construída em madeira. Ao fundo, madeireiras e depósitos de palmito do açaí.
Afuá também se destacava pelas minúsculas praças situadas
nas esquinas das passarelas, com bancos de madeira, cercadinho, floreiras e
estátuas de cor amarelada com reproduções da arte marajoara. Nas passarelas
externas havia também bancos isolados de madeira, com encosto e suporte para os
braços. Caíam como luva para descanso durante as caminhadas ou simplesmente
para o papo entre amigos.
Outro banquete na pousada na hora do almoço. Desta vez
foram servidos picanha grelhada, pitu fervido no próprio caldo, arroz, feijão e
farofa. Não faltou o saboroso açaí de sobremesa, com farinha de tapioca.
A economia da região de Afuá baseava-se no camarão,
madeira, palmito e açaí. O alívio era que a extração da madeira, insustentável
sob todos os aspectos, passava por séria crise, talvez terminal. Que afundasse
de vez e deixasse de pé o restante da floresta. Mas pouco se cultivava a terra.
A cidade trazia de fora praticamente toda a alimentação. A elite local
transferia a culpa da situação para os caboclos nativos, justamente os
primeiros e maiores interessados em colaborar.
Embarquei bem cedo na lancha rumo a Macapá.
De noite a orla fluvial da capital encheu e se animou. A
frequência era variada. Adolescentes faziam malabarismos com as bicicletas e
davam saltos mortais dentro das águas do rio Amazonas. Muita música e alegria
imperavam no bom e velho espaço público, livre e democrático.
Os navios para Belém ofereciam saídas apenas semanais,
cobravam caro por viagem de 24 horas e, contrariando o costume em toda a
Amazônia, não incluíam as refeições no preço da passagem.
Em Belém visitei com calma o mercado Ver-o-Peso, a feira
ao redor, com frutas, verduras, temperos, plantas medicinais, garrafadas, simpatias.
O sol massacrava. Segui ao Forte do Presépio, à Casa das Onze Janelas, às
construções restauradas nos últimos anos para abrigar museus de peças regionais
e históricas, galerias de arte, restaurantes. A cidade velha encontrava-se em
processo de revitalização, lento, mas louvável pela preservação do importante
conjunto urbano.
Caminhei pelas ruas arborizadas dos bairros de Campina,
Nazaré, Batista Campos, sombreadas pelas mangueiras centenárias, até o museu e
parque Emilio Goeldi. Em meio a trecho de floresta preservada, os animais
nativos estavam expostos em jaulas minúsculas, desumanas, sufocantes. A onça
negra apresentava comportamento esquizofrênico tal o sofrimento naquele aperto.
O parque, no entanto, é amplo, com muito verde e sombra, árvores imensas,
lagos, grande variedade de plantas e animais.
Pulei da cama ainda no escuro e voei em direção à Feira do
Açaí. Dezenas de barcos atracavam e desembarcavam cestos e mais cestos lotados
da fruta. Os potenciais compradores examinavam o produto, cutucavam, levavam à
boca e iniciavam a negociação. Antes das oito horas da manhã já estava tudo
vendido. Perambulando por ali, prostitutas cansadas, vendedores de comidas
quentes, jogadores, aproveitadores em geral, tentavam atrair os trabalhadores
rurais e barqueiros para gastarem o dinheiro recém-adquirido.
O campus da Universidade Federal do Pará era mais uma
imagem do descaso com a educação no país. Mal cuidado, com construções em
péssimo estado em meio ao mato alto, entulhos até nos corredores das salas de
aula. Faltavam professores, equipamentos, boas instalações, bibliotecas. O
sucateamento do ensino público estava em processo avançado. Mas a localização
era privilegiada e agradável, ao lado das águas do rio Guamá.
Almocei em peixaria muito simples, com atendimento
familiar e informal, toalhas de plástico e comida extremamente saborosa. Degustei
a caldeirada mista de caranguejo, camarão e filhote. As caipirinhas bem
preparadas não podiam faltar. Assim como o incrível suadouro pelo corpo todo.
continua...
É na leitura sobre suas viagens que admiro o interior de nosso país, nosso povo com sua cultura diferenciada, cidades pitorescas com os mesmos problemas dos grandes centros, enfim todo o Brasil é construído por pessoas que conservam, possuem uma visão futurista por aqueles que só pensam em explorar e também por outros que ainda não possuem consciência que o quanto é importante a conservação do meio ambiente...mas há coisas bonitas e gosto do povo das pequenas cidades, que se reúnem na praça, nos bares, jogam conversa fora, todos se conhecem...ou sou eu que gosto de conhecer as pessoas. Sei lá, o ser humano sempre surpreende, eu gosto de gente, gente simples, autêntica. Abraços. Embarcando no próximo capitulo.
ResponderExcluirResumiu bem o que tentei passar, Ivete!
ResponderExcluirEmbora saibamos muito bem as causas, os responsáveis e até listemos soluções, não dá para evitar o chavão, Brasil um país de contrastes.
Contamos com bem mais qualidades do que defeitos, sem falar que as qualidades são únicas e imprescindíveis e os defeitos não são tão complicados assim. Vamos lutar de maneira organizada que chegaremos lá!