sexta-feira, 15 de outubro de 2010

do Acre à Bahia (parte 3/7)

...continuação
Parada ainda no escuro em Vitória do Jari. Em frente, do lado paraense, cenário típico de Cubatão. Indústrias, chaminés, fumaça fedorenta, ruídos de máquinas. Era a fábrica de celulose do Jari.
Chegada em Laranjal do Jari em pleno amanhecer. O ambiente na beira do rio estava agitado àquela hora da manhã. Em alguns bares a noite ainda não havia terminado. As construções eram de madeira, no formato de palafitas, ou esteio.
Subi em um táxi lotação no início enlameado da grande avenida que ligava as partes antiga e nova de Laranjal do Jari. Em ambos os lados, passarelas e mais passarelas de acesso a dezenas de casas e barracos de madeira, podres ou quase podres. Nenhum sinal de saneamento básico, água encanada, coleta de lixo.
Laranjal do Jari era fantástica, horrorosa e fascinante ao mesmo tempo. O charme concentrava-se na margem do rio, no famigerado “Beiradão”, que correu fama durante as décadas de 1970 e 1980 pela violência e prostituição desenfreadas, ao lado de miséria alarmante, da ausência de qualquer tipo de infraestrutura social. E tudo graças ao vizinho paraense Projeto Jari, de propriedade, na época, do milionário estadunidense Daniel Ludwig. O objetivo era o lucro imediato, indiferente à desgraça dos trabalhadores e da população. O país vivia sob a ditadura civil e militar, protegendo o grande capital, sobretudo o estrangeiro, contra o povo brasileiro.
Ali virou um emaranhado de esteios, interligados por passarelas precárias, em madeira, em estado avançado de deterioração. Pelos becos estreitos estendiam-se o comércio variado, dormitórios e hotéis decrépitos, restaurantes baratos, oficinas, residências podres, bares sujos e com frequência para lá de pesada, puteiros sombrios, igrejas, escritórios públicos antigos, diversos ancoradouros onde também se limpavam peixes. As águas escuras e entupidas de lixo do rio Jari circulavam por baixo e, nessa época de cheia, quase tocavam as passarelas. O complexo urbano sustentava-se sobre extensa área de várzea que avançava até a parte mais alta da cidade. Foi construído espontaneamente e assim sobrevivia aos trancos e barrancos, esquecidos pelos órgãos públicos.

Pela manhã os bares do Beiradão já exibiam bêbados, putas, jogadores. Os moradores garantiam que o clima dali acalmara com o tempo e já não ocorria média diária de dez a quinze assassinatos. Repetiam que a polícia federal conseguiu dar conta do recado, mas, à noite, ninguém garantia a segurança de ninguém. O Beiradão, na verdade, nunca foi caso de polícia, mas de ausência de justiça social e dignidade humana. O local deveria ser preservado e combinado com urgentes e intensos investimentos sociais controlados pelos próprios moradores.
Cheguei de catraia à margem paraense do rio Jari, no distrito de Monte Dourado, município de Almeirim. Do alto a visão privilegiada do rio e, no lado amapaense, os esteios do Beiradão em Laranjal do Jari.
As variadas casas noturnas abundavam em Laranjal do Jari, prometendo atrações irresistíveis para aquela noite de sábado. Os principais bares, restaurantes, hotéis e casas noturnas situavam-se na avenida principal, ao lado de inúmeras empresas evangélicas caça-níqueis, que usavam e abusavam de todos os nomes possíveis para atrair trouxas. Pelos alto-falantes berravam propaganda obscurantista, o fanatismo, o fim do mundo para quem não se entregasse a Je$u$. Também carros de som convocavam a população para as atrações do circo precário, entre elas a de desvendar os segredos da vassoura amaldiçoada.
E a noite começou mostrando grande animação na cidade. Ao redor da praça da parte nova a frequência era variada e democrática. Cada um se comportava ou se vestia como queria, descontraindo o ambiente. Caminhavam, paqueravam, bebiam, comiam, conversavam em grupos ou casais.
Comprei um litro de açaí grosso em um dos inúmeros pontos de venda de vinho de açaí. Usei a cozinha do hotel para acrescentar açúcar, algumas pedras de gelo e degustar aquela iguaria em menos de cinco minutos.

Acordei cedo, empurrei o café da manhã e esperei o ônibus a caminho de Macapá. A estrada de chão estava em condições razoáveis, com buracos e pontos de lama devidos às recentes chuvas de inverno. O veículo velho, mal cuidado, sem espaço suficiente para as pernas, atolou apenas uma vez. Os passageiros tiveram que desembarcar e subir a rampa a pé. O motorista conseguiu desencalhar e reembarcamos.
A paisagem mostrava relevo ondulado, com muitos sobes e desces. Cruzou a extensa reserva extrativista do Cajari, unidade de conservação de desenvolvimento sustentável para extração de castanha da Amazônia. Impressionaram as imensas e centenárias castanheiras. Foram quilômetros e quilômetros de mata nativa, variada e bem preservada dentro da reserva. Mais adiante a rodovia cortou grandes extensões de cerrado, com árvores retorcidas, campos, buritizais, igarapés fluindo sobre lajes de pedra. Atravessou pontes de madeira sobre igarapés de águas escuras ou esverdeadas. Os açaizais abundavam, carregados de frutos. Poucas casas nas margens da estrada.
Entardecia ao entrar na rodoviária de Macapá.
Anoiteceu e saí em direção à simpática orla na margem do rio Amazonas. Optei por barraca de rua para saborear vatapá, maniçoba e arroz. O sorvete caprichado saciou a fome. A lua cheia refletida nas águas recuadas pela maré do rio Amazonas dava espetáculos à parte, de coloração alaranjada, passando a amarelada e finalmente prateada, enorme e brilhante.
Macapá agradava com centro arborizado, praças, extensa orla urbanizada de maneira humana na margem do rio, pela qual espalhavam espaços para atividades físicas, caminhadas, namoro, bares, restaurantes e lanchonetes, em geral para o lazer noturno. No almoço encarei caldeirada de filhote em local com visual do rio Amazonas e das ilhas no fundo do horizonte. Saí dali alimentado, ensopado de suor, feliz da vida.
A lancha partiu na maré alta e chegou em Afuá ao entardecer, cortando paranás do delta do rio Amazonas. Quando a terra se aproximava, surgiram açaizais, buritizais e demais palmeiras, casas de madeira isoladas.
Acordei cedo e conversei com um catarinense radicado na região, que ganhava dinheiro cortando os caules dos açaizeiros para vender palmito. Graças a esse processo predatório, os açaizais estavam em acelerado processo de extinção. E ninguém parecia se importar.

O município paraense de Afuá, no noroeste da ilha do Marajó, era suspenso e na forma de palafitas interligadas por passarelas de madeira, exceto as principais, de cimento. Não havia nenhum tipo de veículo motorizado em Afuá, nem carros, nem motos, apenas bicicletas e os famosos bicitáxis. Os afuaenses ligavam duas bicicletas através de canos soldados, instalavam bancos estofados para duas ou três pessoas na frente, no meio, na parte de trás. Eventualmente usavam a traseira como bagageiro ou caixas de som. Havia pedais em ambos os lados e o volante no lado esquerdo do banco dianteiro. E podiam ser alugados. Circulavam durante a noite com iluminação provocante, invariavelmente acompanhada da sonoplastia das caixas de som, causando sensação.
O almoço na pousada foi um banquete, na base de arroz com chicória, camarão, carne de jaboti, filé de peixe, feijão, salada de camarão miúdo e palmito, sucos, açaí de sobremesa. Não satisfeito, encomendei à tarde um litro de açaí grosso. Devorei o litro todo com adição de açúcar e farinha para encorpar ainda mais.
Caminhei na parte de trás da cidade, área maior que a central, mais nova, mais pobre, mas com as mesmas características, suspensa e construída em madeira. Ao fundo, madeireiras e depósitos de palmito do açaí.
Afuá também se destacava pelas minúsculas praças situadas nas esquinas das passarelas, com bancos de madeira, cercadinho, floreiras e estátuas de cor amarelada com reproduções da arte marajoara. Nas passarelas externas havia também bancos isolados de madeira, com encosto e suporte para os braços. Caíam como luva para descanso durante as caminhadas ou simplesmente para o papo entre amigos.
Outro banquete na pousada na hora do almoço. Desta vez foram servidos picanha grelhada, pitu fervido no próprio caldo, arroz, feijão e farofa. Não faltou o saboroso açaí de sobremesa, com farinha de tapioca.
A economia da região de Afuá baseava-se no camarão, madeira, palmito e açaí. O alívio era que a extração da madeira, insustentável sob todos os aspectos, passava por séria crise, talvez terminal. Que afundasse de vez e deixasse de pé o restante da floresta. Mas pouco se cultivava a terra. A cidade trazia de fora praticamente toda a alimentação. A elite local transferia a culpa da situação para os caboclos nativos, justamente os primeiros e maiores interessados em colaborar.
Embarquei bem cedo na lancha rumo a Macapá.
De noite a orla fluvial da capital encheu e se animou. A frequência era variada. Adolescentes faziam malabarismos com as bicicletas e davam saltos mortais dentro das águas do rio Amazonas. Muita música e alegria imperavam no bom e velho espaço público, livre e democrático.
Os navios para Belém ofereciam saídas apenas semanais, cobravam caro por viagem de 24 horas e, contrariando o costume em toda a Amazônia, não incluíam as refeições no preço da passagem.
Em Belém visitei com calma o mercado Ver-o-Peso, a feira ao redor, com frutas, verduras, temperos, plantas medicinais, garrafadas, simpatias. O sol massacrava. Segui ao Forte do Presépio, à Casa das Onze Janelas, às construções restauradas nos últimos anos para abrigar museus de peças regionais e históricas, galerias de arte, restaurantes. A cidade velha encontrava-se em processo de revitalização, lento, mas louvável pela preservação do importante conjunto urbano.
Caminhei pelas ruas arborizadas dos bairros de Campina, Nazaré, Batista Campos, sombreadas pelas mangueiras centenárias, até o museu e parque Emilio Goeldi. Em meio a trecho de floresta preservada, os animais nativos estavam expostos em jaulas minúsculas, desumanas, sufocantes. A onça negra apresentava comportamento esquizofrênico tal o sofrimento naquele aperto. O parque, no entanto, é amplo, com muito verde e sombra, árvores imensas, lagos, grande variedade de plantas e animais.
Pulei da cama ainda no escuro e voei em direção à Feira do Açaí. Dezenas de barcos atracavam e desembarcavam cestos e mais cestos lotados da fruta. Os potenciais compradores examinavam o produto, cutucavam, levavam à boca e iniciavam a negociação. Antes das oito horas da manhã já estava tudo vendido. Perambulando por ali, prostitutas cansadas, vendedores de comidas quentes, jogadores, aproveitadores em geral, tentavam atrair os trabalhadores rurais e barqueiros para gastarem o dinheiro recém-adquirido.
O campus da Universidade Federal do Pará era mais uma imagem do descaso com a educação no país. Mal cuidado, com construções em péssimo estado em meio ao mato alto, entulhos até nos corredores das salas de aula. Faltavam professores, equipamentos, boas instalações, bibliotecas. O sucateamento do ensino público estava em processo avançado. Mas a localização era privilegiada e agradável, ao lado das águas do rio Guamá.
Almocei em peixaria muito simples, com atendimento familiar e informal, toalhas de plástico e comida extremamente saborosa. Degustei a caldeirada mista de caranguejo, camarão e filhote. As caipirinhas bem preparadas não podiam faltar. Assim como o incrível suadouro pelo corpo todo.
continua...

2 comentários:

  1. É na leitura sobre suas viagens que admiro o interior de nosso país, nosso povo com sua cultura diferenciada, cidades pitorescas com os mesmos problemas dos grandes centros, enfim todo o Brasil é construído por pessoas que conservam, possuem uma visão futurista por aqueles que só pensam em explorar e também por outros que ainda não possuem consciência que o quanto é importante a conservação do meio ambiente...mas há coisas bonitas e gosto do povo das pequenas cidades, que se reúnem na praça, nos bares, jogam conversa fora, todos se conhecem...ou sou eu que gosto de conhecer as pessoas. Sei lá, o ser humano sempre surpreende, eu gosto de gente, gente simples, autêntica. Abraços. Embarcando no próximo capitulo.

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  2. Resumiu bem o que tentei passar, Ivete!
    Embora saibamos muito bem as causas, os responsáveis e até listemos soluções, não dá para evitar o chavão, Brasil um país de contrastes.
    Contamos com bem mais qualidades do que defeitos, sem falar que as qualidades são únicas e imprescindíveis e os defeitos não são tão complicados assim. Vamos lutar de maneira organizada que chegaremos lá!

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