...continuação
Na manhã seguinte, comprei bananas e embarquei no barco
rumo à viagem de oito horas até a cidade piauiense Parnaíba, pelo Delta, ao lado
de viajantes e moradores locais. Havia redes já armadas para os turistas,
apenas para os turistas. Entre eles, dois gaúchos e quatro cariocas. A família
de seis pessoas residentes em Carnaubeiras, cidadezinha situada no meio do
Delta, voltava com compras para casa. Presenteei-lhes com o livro Verão no Aquário, da Lygia Fagundes
Telles, após uma delas mencionar que adorava ler. Passaram a folheá-lo com
carinho como se tocassem em uma joia rara e frágil. Liam aleatoriamente algumas
páginas. Os olhares brilhavam de emoção.
Somente após a partida daquela família prestei atenção nos
turistas das outras redes. E na paisagem pela qual percorrera cinco anos antes.
O visual dos extensos manguezais permanecia encantador. Árvores com raízes
imitando tentáculos sobre a água, ramos com imensas folhas, águas límpidas e o
brilho do sol que valorizava tudo. Catadores de caranguejo, cobertos de lama
escura, tiravam o sustento diário.
Em Tatus, enquanto aguardávamos a lotação gratuita e
encomendada pelo comandante do barco, nós observávamos a chegada de dezenas de
barcos entupidos de caranguejo. E de várias carretas estacionadas, com placas
de Fortaleza, que os transportariam para serem vendidos no Ceará a preço de
ouro. Os catadores recebiam uma miséria dos compradores. Em Fortaleza seriam
vendidos em bares e restaurantes vinte vezes mais caro. E os que mais
trabalhavam, em péssimas condições, se afundando nos lamaçais dos mangues, eram
os que mais sofriam e os menos recompensados por isso.
A lotação nos levou até o centro de Parnaíba, já no estado
do Piauí, onde desembarcamos no começo da noite. Eu e os gaúchos saímos para
jantar sem tomar banho.
Após o bom café da manhã, fomos à praia da Pedra do Sal,
situada na ilha grande de Santa Isabel. O ônibus urbano cruzou extensas áreas
de carnaubais, lagoas, riachos, casas esparsas. Eram duas praias quase vazias,
separadas por uma ponta de pedras com um farol. Do lado esquerdo, a grande baía
de águas calmas. Do lado direito grande extensão de praia de tombo com mar
violento. Apesar da ausência de vegetação, o ambiente seduzia pela simplicidade,
despretensão e sossego.
Eu e os gaúchos voltamos ao centro da cidade e lá subimos
em lotação até a praia do Coqueiro. Caminhamos pela praia com mais
infraestrutura que a Pedra do Sal. Ainda assim estava calma e limpa. A ressalva
era a liberação para a circulação de veículos na areia. Em local bem
posicionado, bebemos, matamos a fome, apreciamos o visual. Os preços eram bem
inferiores aos cobrados no Maranhão.
Percorri de moto-táxi quase toda a cidade, ampla,
bem urbanizada, sem edifícios altos, com muito verde, praças e jardins, a fim
de me despedir do casal gaúcho no terminal rodoviário. As calçadas existiam e
estavam em boas condições. Cruzar a fronteira do Maranhão com o Piauí foi como
deixar o inferno e entrar no paraíso. Pelo menos visualmente. O aspecto,
higiene, habitação, urbanismo, população, preços, eram melhores no lado
piauiense. O Maranhão vencia fácil na parte cultural, feminina, charme e
culinária.
A vida noturna nos calçadões da avenida Beira Rio de
Parnaíba concentrava o pior dos mundos. Adolescentes produzidos, celulares à
mão, poses e olhares arrogantes, carros vomitando em volume ensurdecedor a
barulheira dos porta-malas. Desfilavam uns para os outros. Nenhuma
naturalidade. Exibição total. Lixo social e cultural. As noites de Parnaíba,
porém, não se resumiam àquilo. Havia os bares charmosos da região do Porto das
Barcas e no Beco da Boemia. As quadrilhas durante as festas juninas se
espalhavam pelas ruas em manifestações espontâneas, despretensiosas, bonitas e
populares. E caminhar à noite pelas calçadas só aumentava o charme da cidade
por ruas arborizadas, limpas, vazias, fileiras de casas antigas e novas,
segurança, urbanismo humano.
A região do Porto das Barcas, situada na margem direita do
rio Parnaíba, era uma extensa área de armazéns, galpões e fábricas, cortada por
becos calçados de pedra. Quase tudo estava abandonado, alguns reutilizados para
espaços culturais, restaurantes, bares, lojas, centros comerciais. Grupos
musicais ensaiavam em grandes galpões. O acabamento antigo dava charme especial
ao local, ainda mais com lustres pendurados em várias paredes.
As tais bandas moderninhas de “forró”, que passavam longe
do baião, xote ou xaxado, eram absolutamente iguais. No desespero de
diferenciarem-se em meio à geleia geral, anunciavam o nome da banda no meio de
todas as faixas. E, por lançarem discos em série e iguais, também anunciavam o
número do disco, ou volume. Ficava ainda mais insuportável ouvir aqueles lixos
de letra e melodia, cortadas insistentemente pelos nomes das bandas e volumes
dos discos.
Dia sem compromissos, nada de programação, muita preguiça
e vagabundagem. Nem à praia eu fui, mesmo em domingo ensolarado. Almocei em
descontraído restaurante em frente ao rio Parnaíba, com direito a exuberantes
carnaubais na margem oposta. A comida e as caipirinhas fizeram efeito e a
preguiça caiu matando. Não resisti e me entreguei a sonecas no quarto da
pousada.
O ônibus, confortável e frio, não saiu lotado.
Esparramei-me na cadeira e apreciei o curto litoral piauiense após a cidade de
Luís Correia. Eram dunas baixas, com pequenos vilarejos. Logo cruzamos a
fronteira cearense em relevo levemente acidentado, com cidadezinhas simples,
lajedos de pedra. O ônibus entrou no terminal rodoviário de Fortaleza antes do
amanhecer. Peguei imediatamente outro ônibus para Natal. Via-se muita sujeira
nas avenidas de Fortaleza, com moradores de rua e visual nada convidativo.
O ônibus engatinhava na rodovia esburacada que nem parecia
pavimentada. Pouco antes da fronteira potiguar a caatinga já reinava absoluta,
entre arbustos secos, retorcidos e espinhosos, mas esverdeados pelas chuvas
recentes. Riachos temporários expunham a areia ressecada. Bodes e cabras
circulavam, em meio a raras casas e vilarejos isolados. Lajes de pedra, blocos
rochosos e serras, carentes de vegetação, se destacavam na paisagem do
semiárido. Acampamentos improvisados de trabalhadores rurais sem terra
espalhavam-se nas margens da rodovia. As barracas precárias cobertas de
plástico preto revelavam os males causados pela indecente concentração de terra
no Brasil. Enormes propriedades improdutivas se estendiam em ambos os lados da
estrada. Enormes vazios.
O ônibus entrou no terminal rodoviário de Natal no meio da
tarde. A colega potiguar apareceu para me pegar. Jantei carne de sol preparada
pela minha anfitriã. O cansaço e o sono aumentaram. Mal podia me concentrar nos
assuntos. A lua cheia brilhava forte pela janela e iluminava o quarto. Nem
precisei acender a luz.
Depois de noite de sono profundo, acordei, li, cochilei,
li novamente, cochilei em seguida. Acordei no início da tarde com muita preguiça.
Eu, ela e mais uma amiga saímos à noite a procura de
diversão. A praia da Ponta Negra se transformara em ambiente repugnante. E me
lembrei da primeira vez que a vi.
Naquele remoto ano de 1976, o ônibus urbano que trouxera
eu e o colega do centro da cidade parou no meio do nada. Havia apenas a estrada
de pista simples no alto do morro e a encosta caindo na praia, bem abaixo. Do
alto, impressionava a beleza da praia, o mar azul e agitado, mais algumas dunas
cobertas parcialmente de vegetação rasteira. Nada de construção ou habitação,
no alto do morro ou nas areias da praia. Tentamos encontrar a trilha para
descer, mas não havia nenhuma. Iniciamos a descida. O terreno era íngreme e a
areia solta. Os pequenos lagartos, habitantes solitários do lugar, se assustaram
com a nossa presença e correram desesperados para todos os lados. Tentavam
fugir de um e se dirigiam ao outro lado. Assim que percebiam que também tinha
gente, iniciavam o caminho inverso e assim por diante. Atingimos a praia e seguimos,
sem parar, em direção ao mar para o gostoso mergulho naquelas águas para lá de
convidativas. Nenhuma alma viva, com exceção dos lagartos, nos fazia companhia
naquela manhã de sol, calor e céu azul. A temperatura quase morna da água
refrescava do intenso calor. Cansamos de pegar “jacarés” nas ondas fortes.
Ficamos horas e horas assim. Descansamos na areia, voltamos ao mar por diversas
vezes. Bateu sede doida, mas não havia nada por perto, barraca, habitação.
Nada. A fome não tardou também a aparecer. Já estávamos no meio da tarde e
tivemos que deixar aquela beleza. Retornamos ao centro da cidade, ardidos do
sol, famintos, sedentos e extremamente felizes.
A praia da Ponta Negra ocuparia, durante anos e anos, a
minha mente, como uma das praias mais belas e mais gostosas que conhecera até
então. Bela, deserta, selvagem.
Nunca mais a vi. Daí a emoção de retornar ao mesmo local
quase trinta anos depois.
Claro que eu não a imaginaria intacta depois de tanto
tempo. A indústria do turismo avançara demais nessas décadas. Mas também não
esperava o tamanho choque e decepção. Eram hotéis e mais hotéis, bares,
restaurantes, boates, agências de viagem, ambulantes, asfalto e concreto,
poluição sonora, putas maiores e menores de idade, travestis, menores de rua,
gringos, aproveitadores, golpistas, passadores e consumidores de drogas,
turistas desavisados ou mal intencionados. Horror dos horrores!
Logo ao amanhecer a chuva desabou sobre a cidade. Rajadas
de vento, muita água, o céu cinza claro e uniforme, nenhum sinal de melhoras. A
tempestade só se aquietou no final da tarde. Mesmo assim saímos para almoçar em
restaurante de comida regional. Depois fomos à casa da amiga dela, um sobrado
caindo aos pedaços, onde não faltavam goteiras e infiltrações pelas paredes e
teto. Havia três crianças doentes, duas delas com pneumonia, sem qualquer
assistência da mãe, andando descalças e nuas debaixo da chuva. A tal amiga
passava por doloroso processo de separação de um pastor de igreja empresarial.
A casa e os moradores combinavam com o tempo cinzento e chuvoso.
Na volta observei parte das festas juninas de Natal, entre
fogueiras nas ruas, milho assado, gritarias, bombas e fogos.
Nenhum sinal de estiagem, sol ou céu azul em Natal, a
capital do sol. As chuvas e o vento forte não davam sossego. Eu permanecia
trancado, ora no apartamento da amiga, ora na casa com goteiras da amiga da
amiga. Comecei a estudar mapas em busca de novos destinos. E, para o meu
desconsolo, foi marcado almoço na casa da amiga da amiga. As coisas correram
como o previsto, ou seja, uma tortura. O ambiente sempre pesado, pessoas
doentes ou tristes, comida horrível acompanhada de gigantescas garrafas de
refrigerante. A soturna e negativa dona da casa mal conversava, a despeito de
minhas tentativas de animar o velório. À tarde, a chuva deu trégua, o céu ficou
parcialmente azul. Convidei todos para passear pelas praias e espairecer. Não
puderam ou não quiseram. Saí sozinho mesmo, sem saber exatamente aonde ir.
Necessitava me afastar daquele ambiente mofado e depressivo.
Cheguei à praia de Ponta Negra pouco antes do anoitecer.
Durante o percurso, muita gente, animação e vida, me fazendo sentir aliviado. A
praia ainda não estava tomada apenas por gringos, putas, traficantes e os
coitados potiguares a serviço de tudo aquilo. Mas o cenário do comércio era
lamentável. CD´s de rock e afins. Bares e lojas com títulos escritos em inglês.
Ambulantes chapados dançando sob os aplausos de turistas chapados. Artigos para
lá de manjados, preços altos, barracas de quinquilharias. Nada diferia das
praias badaladas pelo mundo afora, destinos comuns dos gringos do tipo padrão,
mais interessados em sexo, drogas e música descartável do que no respeito à
cultura local. O vendedor de camisetas, completamente alucinado pelo tanto que
consumiu, cismou comigo. Queria porque queria me empurrar uma camisa da seleção
brasileira. Não foi fácil me livrar do sujeito. As prostitutas adolescentes
começavam a baixar pelo calçadão e bares. Voltei ao apartamento antes da noite
esquentar.
O tempo abriu finalmente. Logo após o café da manhã
pegamos nossas tralhas e fomos para a parte norte da praia de Ponta Negra, mais
familiar e potiguar. Estavam lá outras amigas dela, com as quais formamos a
roda. Uma delas nos convidou para almoçarmos em restaurante isolado na praia de
Genipabu, ao norte de Natal. Pagamos a conta e fomos de encontro a enorme
congestionamento na ponte sobre o rio Potengi. Horas depois entramos em
restaurante no pé da duna de Genipabu, de frente para o mar, construído todo em
madeira. Devoramos caipirinhas, saborosos ensopados de camarão, peixadas,
sorvetes, sucos. Quase nem percebemos o sol baixar no horizonte e dourar a
imensa duna ao nosso lado.
continua...
Que viagem!!!! Os Lençóis Maranhenses, me encantaram. Teus textos são tão explícitos, que me situo tanto, acabo me hibernando.Abraços.
ResponderExcluirSigo.
Oi Ivete, obrigado pela atenção.
ResponderExcluirNão foi à toa que estive três ou quatro vezes nos Lençóis Maranhenses.
Pela manhã, ao entardecer, com luz assim ou assado, o local é um paraíso.
Inclua em sua lista dos próximos destinos.
Abraços!