segunda-feira, 12 de agosto de 2013

O Rio Purus (de Manaus a Rio Branco) (parte 3/6)

...continuação
Acima de Beruri, o Purus perdeu aquela largura toda da foz e ganhou dimensões de afluente do Solimões, ainda que de porte. Ambas as margens guardavam infindáveis igapós, inundando barrancos e praias que aflorariam na vazante.
O grosso dos passageiros, quando não lançava tudo que é coisa descartada nas águas do rio, deixava um rastro de lixo orgânico ou inorgânico por onde passava. Raros os que se utilizavam dos isolados latões de lixo.
Via antena parabólica, a sintonia da televisão requeria ajustes constantes, uma vez que o barco executava uma trajetória repleta de curvas e sinuosidades. A manivela no teto tinha que ser girada com frequência a fim de recuperar a imagem. Normalmente alguém da tripulação era eleito o senhor antena. Se sentava no banquinho mais alto mantendo as mãos atentas na manivela.
O jantar se compôs de sopa com legumes e pedaços de carne com osso. Para acompanhar, farinha de mandioca e molho de pimenta. Como de praxe, após cada uma das três refeições servidas no barco e incluídas no preço da passagem, eu entrava no camarote para complementar a pança com as opções adquiridas em Manaus, entre castanhas com frutas secas, barra de cereais e queijinhos.
Após o jantar, um rapazinho muito jovem, mas com o filho no colo, me acompanhou na contemplação da noite na popa do nível de lazer. Nascido na comunidade do Jaburu e morador de Pauini, o colega descreveu as belezas e fartura dos lagos atrás das margens e ao longo dos quais passávamos naquele momento via um furo providencial. Discorria sobre a riqueza da fauna e da flora, a abundância de alimentos, peixes, quelônios, caças, frutas, mandiocas. Durante a vazante, quando as praias apareciam, nela se cultivavam feijão, batata, milho, melancia, abóbora. Ressaltou a prevenção e a repressão sobre os pescadores e caçadores predatórios, fazendo ganhar a natureza e os ribeirinhos sustentáveis. Quase lhe vinham lágrimas ao comentar o que sentia pela calha do rio, a tranquilidade, a vida em contato íntimo e harmonioso com a natureza, que tudo lhe forneceria se tratada de forma equilibrada, respeitando os limites naturais, de épocas e estações.
Depois da noite bem dormida, do café da manhã na base de pão com margarina, macaxeira cozida, café e leite, boas e longas conversas na proa do piso de lazer entre passageiros variados.
Botos, dos rosas e dos tucuxis, diversas variedades de peixes, saltavam e mergulhavam nas águas. Araras, periquitos, papagaios, socós, entre outros tantos pássaros, revoavam e cantavam, compondo sinfonias distintas. Macaquinhos faziam uma festa danada pelos galhos das árvores enquanto se deliciavam com os ingás.
As pequenas comunidades ribeirinhas se espaçavam mais, sem perder o charme das casinhas, comércio, escola, igrejas desgraçadamente fundamentalistas, tudo de madeira e flutuantes, recém-pintadas, de boa aparência externa. Estávamos na cheia e a comunicação entre os casebres, mesmo que próximos, exigia canoas, a remo ou motorizadas.
Almocei na segunda leva da mesa arroz, feijão, macarrão que nunca pego, carne com osso em placas no molho. Na mesa, somente quatro passageiros, entre elas a copeira resmungona e desejosa de mostrar uma autoridade inexistente. A coitada talvez recebesse o equivalente do dono do barco, um homem longe de tratar carinhosamente os passageiros e funcionários.
No meio da tarde atingimos a Reserva Biológica do Abufari, extensa área abrangendo ambas as margens do Purus. Nesse trecho, durante a estação seca, dez anos antes eu observara imensas praias nas quais, sob a supervisão de agentes ambientais dos órgãos públicos competentes, os quelônios botavam ovos a serem desovados tempos depois.
A maioria dos passageiros do barco tomava dois a três banhos diariamente, vestindo em seguida roupas limpas.
Caiu um belo entardecer e o por do sol veio tingido por chamas de fogo entre nuvens alongadas que evoluíam de alaranjadas, avermelhadas, ao violeta. Lindo demais!
O senhor de olhos vermelhos, que se tornaria minha constante companhia na proa do piso de lazer durante a viagem, sobretudo nas manhãs, enriqueceu o anoitecer com estórias de onças, sucuris, assassinatos por vingança durante a segunda campanha da borracha no alto rio Envira, acima da cidade de Feijó, estado do Acre. Os ouvintes nem piscavam os olhos tamanha a emoção pelos detalhes descritos.
Jantamos arroz, feijão, macarrão que eu recuso, picadinho de carne com um resto de legumes.
No início da madrugada o barco atracou no porto da cidade de Tapauá. Pouca movimentação de cargas e passageiros. No topo da escada sobre o barranco, meia dúzia de moradores recepcionava a chegada, talvez carregadores ou moto-taxistas. As águas espelhadas do Purus refletiam o luar de brilho intenso da lua cheia.
 Acordei bem antes do amanhecer para a chuveirada fria que me tiraria o grude do suor noturno.
O Purus se estreitava gradativamente rio acima. Praias submersas nas concavidades, terra firme alagada nas convexidades, onde cresciam árvores de maior porte, mais fascinantes, como os mais de quarenta metros de altura da imponente Samaúma. Curvas e mais curvas faziam o sol brilhar à esquerda, à direita, em frente, atrás, dando uma volta completa em poucas horas.
Pássaros brancos, pretos, sobrevoavam e pousavam nas canaranas. Araras, periquitos, pássaros maiores, se aquietavam nas árvores de maiores porte. Mergulhões paravam em tocos e galhos flutuantes, nas plantas aquáticas do meio do rio, na espera de peixes para se alimentarem.
Manhã das mulheres em plena atividade no piso de lazer. Umas lavavam roupas e as estendiam para secar em varais improvisados, outras se auxiliavam a tingir os cabelos, fazer a unha dos pés e das mãos. E falavam mal dos homens, comparavam comportamento de crianças, fofocavam sobre a cidadezinha onde moravam, eventualmente fatos mais picantes. Os poucos homens por perto se mantinham sentados ou deitados, fazendo ou ajudando em absolutamente nada.
No meio da manhã, o comandante nos chamou para tomar açaí fresquinho, colhido na tarde anterior numa das saídas da lancha amarrada ao barco, e recém-centrifugado pela manhã. Mandei ver dois copos adoçados com açúcar e encorpados com farinha de mandioca.
Arroz, feijão, macarrão, estrogonofe de carne de oitava, talvez do dedão da pata do boi, compuseram o almoço, regado a suco aguado de cupuaçu. Enquanto comíamos, tentando engolir a gororoba, o barco parou, deu voltas, foi para frente, para traz, navegando em velocidade bem abaixo do normal. Os tripulantes corrigiram não sei o quê antes de o motor retomar o ritmo normal.
Emparelhamento com o segundo barco do mesmo dono no meio da tarde. Gritos de um para o outro, entre homens e mulheres. Do piso de lazer do outro, que iria somente até Lábrea, vinha o volume ensurdecedor de algum lixo comercial de ocasião. Quatro homens de lá, de bermudas, sem camisa, balançavam o esqueleto, cada um com uma garrafa de cerveja na mão, exibindo embriagues explícita junto a alegrias tristes e artificialmente aditivadas. Alegria real e natural era a minha de não estar lá.
Estourando nas caixas do barco emparelhado, o refrão da banda soltava pérolas do tipo “homem não trai, homem se distrai. Se fizer direito, nunca a casa cai”. Ou então “vou festejar no posto. A bebida é uísque, as garotas tira-gosto”.
Embora ainda sob o sol por onde navegávamos, o céu escureceu mais à frente, depois das árvores da margem oposta, pintando um cenário de brilhos contrastantes. Mais chuva se aproximava.
Encerrei a releitura de O Ateneu, de Raul Pompeia, livro denso e rebuscado, repleto de detalhes e ironias. Referência na literatura brasileira do final do século XIX, o autor se suicidaria com apenas trinta e dois anos. Retirei do fundo da mochila o próximo da lista, mais uma releitura, o romance Maíra, de Darcy Ribeiro, antropólogo imprescindível para quem quer entender o Brasil de coração aberto.
No jantar veio frango ensopado acompanhado do trio de sempre. Depois subi ao camarote e reforcei com castanhas e frutas secas, barra de cereais, queijinhos.
Acordei ainda no escuro. A pouca claridade revelava o Purus espelhado, calmo, em curvas longas e suaves. O barco deslizava silencioso rio acima. Flutuantes esparsos guardavam casinhas de madeira, bem acabadas, pintadas de cores vivas, conservadas carinhosamente pelos moradores ribeirinhos.
Em meio às conversas matinais, pares de araras, de vários tipos e cores, cruzavam de uma margem à outra. Botos tucuxis mergulhavam se exibindo à frente e ao lado do barco.
O casal jovem e menor de idade, casados havia dois anos, se preparava para desembarcar na próxima escala. Ele fazia bicos de carregador no porto da cidadezinha. Moravam em casebre na beira do rio, sujeito a enchentes constantes.
Parada em Canutama por uma hora no começo da tarde. Um tripulante usou a voadeira do barco para ir à cidade repor o estoque de gelo do barco. O sol brilhava escandalosamente, queimando tal fornalha. O calor, sem o vento do barco em movimento, foi às alturas. E os piuns, pelo mesmo motivo, me recepcionaram agressivamente. As águas do rio batiam centímetros abaixo das ruas da cidade, anunciando transbordamentos para logo mais.
A mudança de posição do sol, devido às curvas do Purus, deslocava os passageiros do lado esquerdo do convés para o direito, para, logo em seguida, empurrá-los, eu no meio, do lado direito para o esquerdo. A primeira tarde de céu praticamente limpo de nuvens permitia ao sol torrar qualquer cidadão.
Ao sair do banho frio do banheiro do piso superior, antes mesmo de subir a escada para o piso de lazer, eu já estava suando. E o jantar veio de sopa. Sopa encorpada e saborosa, mas sopa, esquentando ainda mais tudo e todos.
Embarcaram dezesseis passageiros em Canutama, contra o desembarque somente do casal jovem. O setor de redes do piso superior, que já estava lotado, entupiu a ponto de surgirem reclamações. As redes atadas se dispunham uma sobre as outras, comprometendo a circulação de ar, a movimentação das pessoas, a privacidade, o conforto. E muitas, mas muitas mesmo, crianças de colo, bebês, no meio do emaranhado, compondo um caos desumano.
À noite, os mosquitos fizeram festa em torno das lâmpadas acesas, mesmo com a brisa do barco em movimento. O céu se mostrava absurdamente estrelado. Relâmpagos respeitáveis e seguidos explodiam no horizonte, anunciando chuvas para dali a não sei quanto tempo.
Acordei durante a madrugada em meio a oscilações e ruídos estranhos no casco do barco. Cruzávamos um furo, o quarto da viagem. Não um furo normal e amplo, mas estreito, de maneira que as árvores quase tocavam a embarcação, os galhos partidos esbarravam e entravam nas laterais dos pisos. Parecia que a floresta abraçava o barco.
Levantei bem cedo. Desci e tomei a chuveirada para acordar definitivamente e tirar o suor acumulado. Sim, pois o camarote ferveu durante a noite. Precisei de muita concentração e persistência para conseguir adormecer empapado de suor sobre o lençol umedecido.
O barco seguia o curso normal do Purus, já fora do furo estreito da madrugada. Logo o horizonte leste anunciou o nascer do sol num evoluir de cores púrpuras, vermelhas, laranjas, amarelas, desenhando efeitos belíssimos nas nuvens e reflexos nas águas espelhadas do rio.
Na espera do ralo café da manhã, passageiros descreveram histórias antigas de autoritarismos, prepotências, crueldades, vindas de diversos proprietários de barcos, o daquele inclusive. Em viagens passadas, negavam comida, esbravejavam com passageiros, se comportando mais como senhor de escravos do que prestadores de serviços de transporte e alimentação. Mas contavam essas perversidades de maneira resignada, como se os tais donos de barcos pudessem tudo, até humilhar, maltratar, espezinhar seres humanos. Cenas que escancaravam o clientelismo, o coronelismo, os donos de gente, a opressão e a exploração mais desavergonhadas. A cidadania plena passava longe daqueles confins. E o comércio evangélico acentuava e lucrava bastante com a situação.
O dono do barco, o conferente, a copeira rabugenta, entre outros da tripulação, vestiram roupas urbanas, calças, camisas, uniformes, limpos, recém-tirados da bagagem. A copeira varria os cantos. Os tripulantes ajeitavam isso e aquilo nos pisos. A aparência parecia contar muito. Afinal, nos aproximávamos de Lábrea, a mais importante cidade da calha do rio Purus, e terra natal do clã do dono do barco.
continua...

4 comentários:

  1. Nossa que viagem, me peguei a reviver meus seis dias indo de Belém a Manaus em janeiro de 2011, e é bem isso mesmo! Parabéns pela maravilhosa obra relatada!

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  2. Olá Osny!
    Obrigadão pela visita e pelo comentário.
    Pois é, nem sei quantas vezes percorri aqueles rios da Amazônia. O Solimões, o Amazonas, o Negro, o Madeira, o Purus, o Japurá, o Juruá, partes do Maués, Jari, Tapajós, Nhamundá.
    Tem desconforto sim, claro, afinal essas linhas de barcos não são turísticas. Mas as qualidades da paisagem, dos seres humanos, de avançar o rio num barco, superam e muito os eventuais problemas.
    Todas essas viagens estão relatadas aqui no blog. Pode conferir.
    Adoro a Amazônia fluvial e viajar de barco. Não vai demorar para eu retornar lá...
    Abraços e comente sempre!

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  3. Que viagem!A natureza em si já é um espetáculo.Gosto como relata, suas observações atiçam o meu lado aventureiro e não consigo parar de ler. Bom demais! Pena, que ainda existam seres humanos que oprimam os desvantajados. Utopia minha, pensar que ainda poderemos viver e ver uma sociedade justa.
    Toda a beleza que descreve, o que os olhos registram, vale por tudo, até pelos momentos desconfortáveis, estes são logos deletados, ficam na lembrança os bons. Abraços...continuo. rsrsrs

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  4. Ivete, você resumiu muito bem. Os desconfortos foram humilhados pelos prazeres visuais, das conversas, das vivências, das lembranças.
    E a sua utopia, que também é minha e a de todos os humanistas, é essencial para nos movermos e tentarmos, dessa ou daquela maneira, conquistarmos. Chegaremos lá!!!!
    Abraços!

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