sexta-feira, 6 de maio de 2011

da Bolívia ao Chile (parte 2/3)

...continuação
A linha de trem para visitar a cidade Inca de Machu Pichu se encerrava em Águas Callientes, de onde subiam ônibus à entrada da cidade. Machu Pichu mais parecia um planeta, tal a infinidade de construções de diversos formatos e tamanhos, erguidas em níveis diferentes. Tempo de sobra para subir, descer, cruzar portas e passagens, sentar, olhar, ouvir, investigar, absorver, apreciar, contemplar, refletir. A localização privilegiada e protegida impediu a intromissão de invasores por séculos. Os turistas se maravilhavam com tamanha herança de força e sabedoria. Do alto, vista panorâmica e estratégica da região ao redor. Montanhas esverdeadas, escarpas abruptas, abismos, vales profundos, rios de forte correnteza que quilômetros adiante, junto a outros cursos d’água, formariam o rio Amazonas. As nuvens jamais abandonavam os céus, característica típica dos meses de verão.
Mais dias na imponente e instigante cidade de Cuzco. Depois, trem com destino a Arequipa, localizada nas encostas ocidentais da cordilheira dos Andes. O outro casal ficara para trás e o rumo que tomaram a partir dali somente ao voltar para o Brasil.
O trem noturno contava com as mesmas características dos demais, compartilhando bancos com famílias peruanas. Não faltaram boas e esclarecedoras conversas. O frango com batatas, o pollo con papas fritas, opção monótona, mas segura em termos sanitários, abastecia a fome e garantia chegada saudável aos destinos.
Amanheceu durante a descida da cordilheira e o visual das encostas cobria-se de branco. Num primeiro momento pensei que estivessem cobertas de neve. À medida que o sol clareava e a paisagem tornava-se mais nítida, pude notar que não era neve, e sim areia. Muita areia. A ferrovia cruzava o trecho peruano do deserto do Atacama. Nada de vegetação. Apenas areia e rochas de coloração acinzentada. Raríssimos casebres perdidos no meio do deserto desafiavam a aridez.

Arequipa localizava-se aos pés do cone do vulcão ativo El Misti, imponência de 5.800 metros de altitude, cujo cume nevado invariavelmente cobria-se de densa névoa. A cidade pertencia à faixa sujeita a tremores de terra, além de possíveis erupções vulcânicas. Construções, sempre de um ou no máximo dois pavimentos, parcialmente destruídas ou inacabadas, surgiam em ruas e becos. Muitas delas utilizavam material vulcânico como matéria prima, fornecendo-lhes coloração acinzentada e vistosa.
O centro antigo de Arequipa guardava arquitetura barroca, sobretudo ao redor da praça das Armas, onde palácios com sacadas sobre as calçadas, colunas trabalhadas, torres da catedral, formavam harmonia exuberante com o verde pálido das árvores do miolo da praça e a cordilheira desértica ao fundo. Aquele imponente conjunto arquitetônico revelava a opulência do passado da região, mas somente para a minoria de grandes latifundiários, associada à miséria da maioria da população.
Caminhamos pelas ruas que davam acesso às encostas do vulcão Misti, as quais viravam becos, caminhos de terra e finalmente trilhas. A simples visão daquele enorme cone impunha respeito.
Arequipa estendia-se ao lado da rodovia pan-americana que seguia ao sul, ao Chile, o próximo destino. O plano consistia de ônibus até a última cidade do sul do Peru e táxi ou outro transporte local rumo a Arica, a primeira cidade do norte do Chile. Transporte direto de Arequipa a Arica sairia muito mais caro devido às tarifas internacionais.
O ônibus peruano percorreu a sinuosa rodovia pan-americana, cujas pistas estreitas atravessavam o deserto do Atacama, através de paisagem montanhosa de areia e rochas. As encostas ocidentais dos Andes, inteiramente áridas, encantavam pela completa desolação e pela variação das cores de acordo com a inclinação da luz do sol.
A rodovia cruzou a cidade de Tacna antes do desembarque na fronteira peruana em Concórdia. Então o táxi que levaria a Arica, já em território chileno.
 
A saída do Peru não trouxe novidades além das formalidades aduaneiras. A entrada no Chile, ao contrário, mostrou aperitivos do que seria enfrentar a ditadura civil/militar chilena, organizada, apoiada e financiada pela burguesia local e principalmente pelo regime dos Estados Unidos.
Nos primeiros metros em território chileno o veículo foi barrado. Todos eram obrigados a desembarcar. Militares fortemente armados com as metralhadoras apontadas em nossa direção nos arrancaram do táxi, exigiram a abertura do porta-malas, revistaram os interiores do veículo. Jogaram as bagagens no chão empoeirado e nos forçaram a abri-las, enquanto as metralhadoras continuavam a mirar nossas cabeças.
Minha aparência não era das melhores, tampouco minhas roupas. O preconceito incutido nos militares chilenos, duramente treinados nas escolas de tortura dos Estados Unidos e assessorados pelos agentes da ditadura do Brasil, só fez aumentar as desconfianças. Mas a vistoria nas bagagens não demorou tanto assim. Cutucaram mais as peças de cima e enfiaram os canos das armas mais abaixo. Mantendo as expressões e comportamento de assassinos, os animais amestrados mandaram fechar as bagagens, entrar no táxi e seguir adiante. Logo eu lembraria que guardava por mera curiosidade no fundo da mochila farto material sobre o grupo guerrilheiro peruano Sendero Luminoso, entre periódicos, panfletos, programa, lista de reivindicações.
O taxista parou em frente ao escritório de informações turísticas de Arica. Eu viajava sem qualquer guia ou coisa parecida, precisando me informar em cada parada sobre hospedagens e pontos de interesse.
Uma morena trintona, tremendamente simpática e sensual, veio atender. Entre sorrisos discretos e olhares dissimulados indicou hotel de luxo, com piscinas, quadras de esportes, instalações de muitas estrelas, mais outras opulências. Imediatamente argumentei que o orçamento era curto e que pretendia hospedagem mais simples e mais barata. Porém, para a surpresa geral, após os preços de tabela do hotel de luxo, ela mostrou os preços com descontos. Os valores após os descontos equivaliam a menos de um sexto dos preços oficiais. Era difícil de acreditar que um hotel daquela categoria pudesse oferecer descontos de mais de 80%, em cidade na beira no mar, com praias no oceano pacífico, em pleno mês de janeiro, alta temporada, verão, principal mês das maiores férias do hemisfério sul. Alegou que o Chile andava vazio de turistas em virtude dos preços altos. Era a versão oficial que a ditadura a obrigava decorar, omitindo que os turistas evitavam o país com medo de serem perseguidos, presos, torturados, mortos, pelo terror de Pinochet.
Aproveitei as deixas para pedir-lhe o endereço a fim de passar lá mais tarde. Ela sorriu e escreveu tudo num papel com certo prazer e expectativa.

O hotel era realmente demais. A enorme e bem aproveitada área verde escondia os apartamentos térreos com sacada, tudo amplo, confortável, de bom gosto. O atendimento exageradamente formal tornava-se ainda mais incômodo naquela imensidão quase sem hóspedes. Os preços de tabela apareciam afixados na parede da recepção, mas não passavam de ficção em tempos de ditadura.
No início da noite caminhei pelas ruas escuras e vazias de Arica na busca da casa da funcionária de turismo. Com o mapa da cidade fornecido por ela nas mãos, não foi difícil encontrar o endereço. A mãe atendeu desconfiada. Olhando para os lados, falando baixo, afirmou que a filha saíra e não tinha horas para voltar. Insisti sobre o combinado naquele horário e naquele local. Com expressão que não fora com minha cara e muito menos com minhas insistências, a mãe me pediu que fosse embora. Agradeci a atenção, me despedi e voltei às ruas. Algo me dizia que a funcionária de turismo, que tanto se animara com o encontro, se encontrava próxima à porta semiaberta pela mãe. Eu estava em cidade do interior de outro país, diante de outra cultura e de pessoas apavoradas com a situação política vivida pelo país.
Retornei pelas ruas desertas daquela noite de Arica. O horário do toque de recolher imposto pela ditadura se aproximava. Ninguém ousava desafiar o instinto assassino do regime e se trancafiava em casa. Tanto na ida como na volta da casa dela, senti estar sendo seguido por um homem à paisana. Ele mantinha distância de segurança sem jamais me perder de vista. Fingi não perceber. Também fingi normalidade diante das constantes e móveis duplas de militares uniformizados e armados com metralhadoras apontadas aos pedestres.
continua...

10 comentários:

  1. Nossa!
    Acredita que me impressionei quando você relata a abordagem dos militares em terras chilenas. Vocês não ficaram com medo? Eu ficaria!
    Pensa que é só diversão?! Me parece que não.rsrs
    Bjus!
    Sandra.

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  2. Claro que não era diversão e ficamos, sim, com muito medo. Mesmo sem o receio de eles encontrarem os textos que eu carregava no fundo da mochila, aquela ditadura assassina oprimia a cada segundo. Mas, já que estávamos lá, decidimos aproveitar e registrar todos os momentos de terror. Afinal estávamos sentindo na pele o conceito de "democracia" exportada pelo regime estadunidense.

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  3. Estive no Chile em 3 ocasiões e em regiões distintas, mas todas as vezes em épocas bem longe dos períodos sombrios da ditadura.

    Para o Deserto do Atacama, entrei por terra, a partir do Salar de Uyuni. Surpreendente o contraste dos 2 países. Em questão de 30 minutos, saí de uma beleza estonteante, rústica ao extremo, e me deparei com um lugar singular, mas que me fez desejar ir logo embora dali, tamanha a exploração comercial.

    Na aduana, em San Pedro de Atacama, apenas as formalidades e uma revista rápida das bagagens. Na Bolívia, a presente má fama das autoridades a cobrar propinas indvidas.

    Do Atacama, retornei ao Peru, por Arica, até Tacna. Fiz o mesmo percurso, porém em sentido inverso para chegar até Arequipa.

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  4. Penso como você, tanto que, embora tenha adiado a viagem várias vezes, sempre me atraiu mais o lado boliviano do deserto, pela paisagem e principalmente pelo lado cultural.
    Incrível, e lamentável, como abundam os pacotes turísticos em massa para o atacama chileno. E a maioria entra e sai sem absorver nada da cultura e situação histórica e atual do Chile.
    Triste...

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  5. Machu Picchu: a "cidade perdida" da civilização Inca, desperta meu lado curioso, por sua história ser tão misteriosa. Ela é mágica!
    Mesmo a aridez do deserto de Atacama,tem sua beleza, consegue dar uma esplanada na cultura, no comércio, na geografia...
    Chile, ditadura, imagino o temor que passou, tantas pessoas desapareceram e outras eram mortas sem saber o motivo. Chile, época negra, acho que mais de 15 anos de ditadura.
    Mesmo diante de tudo conseguiu sair ileso e relatar tua viagem, com muita percepção.
    Continuo...Até.

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  6. Oi Ivete,
    Tem mais sobre o Peru, Cusco e Machu Pichu na viagem que realizei em 2003, quando caminhei e acampei pela trilha Inca por quatro dias.
    Na mesma oportunidade fiz trilhas mais longas pela Cordilheira Blanca, mais ao centro do Peru. Fantásticas!
    É só pesquisar aqui no blog.
    Abraços!

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  7. Visitar Machu Picchu é sem dúvida uma experiência inesquecível e obrigatória para quem busca aventura e contato com a natureza.

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  8. Oi José, obrigado pelos comentários!
    Concordo com você, tanto que estive lá por duas vezes. Esta, que você leu, mais de trinta anos atrás, quando cheguei nas ruínas de trem, e outra vez, há onze anos, quando percorri a Trilha Inca completa. Desta última experiência também publiquei os relatos. Depois me conta o que achou.
    Abraços e boas reflexões!

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  9. Incrível como este lugar parece ficar ainda mais mágico a cada ano que passa...
    Muito legal o relato.

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  10. Oi Dan, obrigado pela visita e o comentário.
    Lá se vão mais de trinta anos desses relatos e eles ainda dão o que falar.
    Publiquei relatos de viagens para todos os gostos aqui no blog. Fique à vontade para ler, comentar, divulgar...
    Comente sempre!

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