...continuação
Pela manhã desci à estação hidroviária de Manaus. No navio
me foi designada a suíte com duas camas de solteiro em beliche, banheiro
privativo, ar condicionado.
Almocei os cinco pães de queijo e os dois sanduíches de
queijo que preparara no café da manhã do hotel. E tracei também três das seis
maçãs fresquinhas que comprei de ambulante em circulação pelo navio.
Três horas e dez minutos após o horário programado, o
navio zarpou de Manaus. Uma hora depois atravessou o encontro das águas entre o
rio Negro e o rio Amazonas. A ocupação de apenas um terço da capacidade do
navio incluía bebuns que jogavam as latinhas de cerveja no piso do navio ou nas
águas do rio, ignorando os enormes cestos de lixo por todos os pisos.
Em frente à lanchonete do terceiro piso, enormes caixas de
som vomitavam o lixo da indústria cultural em alto volume, compondo trilha
sonora para os bêbados e as bêbadas em estados animalescos.
No refeitório jantei o jantar por quilo, mas pago à parte
como em todas as embarcações de bandeira paraense.
Insisti e subi novamente ao bar e lanchonete e também ao
último piso, descoberto, sob as estrelas e a lua quarto crescente. Mas não deu
para permanecer ali. Além do lixo comercial vindo das caixas de som da
lanchonete, uns passageiros, não contentes com a poluição sonora logo abaixo,
trouxeram e ligaram aquelas monstruosidades portáteis que vomitam luzes e som.
Mais lixo descartável da indústria cultural. Mais latas e garrafas pelos pisos,
escadas, mesas, cadeiras, em todos os lugares, menos nos cestos de lixo
disponíveis por todos os cantos do navio.
Li bastante na suíte e adormeci cedo, bem cedo.
Nem levantei durante a parada em Itacoatiara. Apenas ouvi
a movimentação interna e externa, a oscilação do ronco dos motores, o apito,
para imediatamente voltar a adormecer.
O café da manhã, também pago à parte, oferecia fatia de
melancia, mungunzá quentinho no copo, sanduíche grande de queijo e presunto,
pedaço de bolo, copo de café com leite.
E me liberei para apreciar a paisagem fluvial. Li bastante
ao lado da cabine de comando, de frente para a imensidão de água do rio
Amazonas. Poucas embarcações subindo ou descendo o rio.
No meio da manhã, bem no fundo do horizonte, avistei as
antenas e a torre da igreja matriz de Parintins. Mas somente uma hora e vinte
minutos depois o navio atracou no porto da cidade. No mesmo instante os
microfones internos convocavam os passageiros para o almoço. Se já vinha com
poucos passageiros, o navio esvaziou ainda mais após Parintins. E, ufa, todos
os bebuns e as caixas de poluição sonora desembarcaram ali. Todos se
esbaldariam desenfreadamente no festival de Parintins que começaria em poucos
dias.
Pouco depois o navio singrava as águas do rio Amazonas em
terras paraenses. E o fuso horário passava a ser o de Brasília.
Encerrei Vida ao
Vivo, de Ivan Ângelo. O livro disseca, de maneira envolvente, curiosa e
ácida, a vida e as ações de magnata dos meios de comunicação. Qualquer
semelhança com pessoas reais e contemporâneas não seria mera coincidência.
A parada em Juruti não ocorreu no porto da cidade, mas a
jusante da zona urbana, em barranco improvisado sobre o qual passava estradinha
de terra. O navio baixou a rampa da proa e um caminhão desembarcou direto rumo
às ruas da cidade. Os vendedores de comes e bebes, normalmente posicionados no
porto, na espera das embarcações, se desembestaram para aquele local inusitado
para tentar vender as mercadorias. Parada irregular, em barranco irregular,
apenas para satisfazer os interesses monetários do proprietário do navio.
Para surpresa de muitos passageiros o navio não parou em
Óbidos, cidade incluída em todas as rotas fluviais das embarcações entre Manaus
e Belém. O atraso deliberado pela sede de lucros do proprietário do navio,
porém, se mantinha o mesmo.
O navio atracou no porto das balsas, e não na estação hidroviária, em Santarém, no começo da madrugada. As carretas, caminhões e veículos começaram a desembarcar pela rampa frontal da embarcação, provocando barulhos incríveis que reverberavam pelas estruturas metálicas. Aquela fora viagem de transporte de cargas, especialmente caminhões e carretas, pouco importando a sorte ou o horário dos passageiros.
Nem me levantei. Continuei na cama de baixo do beliche e,
à medida que os ruídos diminuíam, adormeci novamente. Despertei ao amanhecer.
Silêncio total do motor, nos pisos internos e nas áreas externas ao navio.
Fechei as bagagens e desembarquei. Mais adiante, em frente ao ponto de embarque
da balsa que cruzava o rio Amazonas rumo à vila de Tapará, eu consegui quem me
levasse ao hotel.
Eu esquecera o quão deserto e silencioso era um domingo santareno. Dava para ouvir o som do silêncio. Ao caminhar para o restaurante do almoço eu me sentia atravessando cidade abandonada depois de uma hecatombe qualquer. Um ou outro veículo circulava de vidros fechados e ar condicionado ligado. Fazia calor ardido no meio do dia. Alcancei restaurante simplório e aconchegante. Ao fundo da paisagem o rio Tapajós fluía lentamente para o norte.
Enfrentei o sol de rachar a cuca do começo da tarde a fim
de circular pela orla do rio. Parava vez ou outra em banco sob a sombra das
palmeiras, mas que geravam sombras tímidas. Prosseguia para, mais adiante me
sentar sob as mangueiras, estas sim de sombras amplas e refrescantes. Raros
gatos pingados por ali naquele horário. Paz e tranquilidade para contemplar o
Tapajós, o encontro das águas, mais visível na luz da tarde, e o Amazonas mais
ao fundo. Detonei duas bolas de sorvete, açaí e cupuaçu, diante das águas
esverdeadas a azuladas do rio.
Escureceu em Santarém. Era noite alta e a temperatura
batia nos trinta graus. Quente, abafado, úmido. O largo e extenso calçadão da
orla do Tapajós fervia de gente de todos os tipos e idades. Animação e alegria
em espaço público e democrático. O calçadão fora estendido até praticamente o
fim da zona urbana. O porto da praça Tiradentes, de onde embarquei tantas vezes
para Macapá anos antes, foi corretamente transferido para a estação
hidroviária, mais a jusante. No calçadão ainda havia balsas flutuantes, bem
instaladas, limpas e funcionais, mas apenas para embarcações menores com
destino às comunidades próximas, rio acima, e para as lanchas rumo a destinos
mais afastados como Itaituba, Alenquer, Óbidos, Juruti. Com essas mudanças
ganharam tanto os passageiros dos barcos e lanchas, como os moradores e visitantes
que desfrutavam do extenso calçadão, dotado de quiosques de comes e bebes,
sobretudo dos de batatas fritas, petisco típico das noites dos interiores
paraenses, sem falar em aluguel de bicicletas, patins e brinquedos para
crianças. Pescadores avulsos, com varas ou apenas utilizando as linhas se
espaçavam na murada metálica. Noite tórrida muito bem aproveitada pela
população, ao ar livre, socialmente, coletivamente.
Iniciei a leitura de Vasto Mundo, de Maria Valéria Resende.
Pela manhã caminhei por todo o calçadão da orla do
Tapajós, bem depois da Feira do Pescado e do Mercadão 2000. O chapéu e o
protetor solar amenizaram parcialmente os efeitos do sol implacável. O calçadão
largo, extenso, alto para conter eventuais cheias do rio, percorria quase toda
a margem fluvial urbana, enfeitando a maior parte de Santarém. As águas do
Tapajós, esverdeadas, batiam na murada.
Almocei mistura insólita de maniçoba, arroz de pato,
pedaços de filé mignon, banana frita e o invariavelmente soberbo suco de
cupuaçu. Encerrei com duas balas de cupuaçu.
À tardinha pude contemplar estupendo por do sol nas águas
do Tapajós. As cores evoluíam do alaranjado ao avermelhado, entre outros tantos
tons vivos e incandescentes. Barquinhos e navios maiores navegavam no
horizonte. Belíssimas imagens para apreciar e registrar.
Para uma ideia do campo político a que pertencem os
sujeitos que têm coragem de defender a criação de estado próprio, separado do
Pará, com capital em Santarém, e assim mandar e desmandar na população, como em
um feudo particular, bastava ler a faixa estendida por tais indivíduos na orla
da cidade: “estado do Tapajós, agora vai, em nome de Jesus”. Não precisa ser
muito informado ou ter raciocínio privilegiado para saber que aquilo vem das
trevas do fundamentalismo, dos traficantes da fé do povo, das empresas
evangélicas, do comércio ilegal travestido de religião, que querem a todo custo
explorar e oprimir ainda mais os povos do sudoeste do Pará.
Na orla fluvial da cidade não resisti e caí de cabeça em
tigela de creme de açaí fresco, centrifugada provavelmente pela manhã, com
farinha de tapioca e açúcar.
Encerrei a leitura de Vasto
Mundo, de Maria Valéria Resende, excelente livro que narra diversas
estórias ocorridas em torno de vilarejo do sertão paraibano.
À noite, o calçadão da orla do Tapajós em Santarém se
mantinha prestigiado.
No dia seguinte, na Feira do Pescado, as garças brancas perambulavam
ousadamente pelas bancadas cheias de peixes. Parecia que até pediam para serem
fotografadas, de pertinho, em planos bem fechados. Botos, dos cinzentos ou dos
rosas, davam voltas nas águas bem próximas na esperança de ganhar restos de
peixes frescos.
Depois de entrar no Mercadão 2000 parei na balsa das
lanchas para Itaituba. Durante a espera da próxima embarcação conversei com
itaitubense que voltava pra casa após as sessões de quimioterapia trimestral. O
câncer na próstata, já extraída, ainda exigia tratamento intensivo. Segundo o
próprio, bem humorado e levando tudo na esportiva, faltava pouco para morrer,
pois na família dele poucos ultrapassavam setenta anos de vida. Falante e
engraçado alegrava a fila de embarque para o percurso previsto de oito horas ao
destino final.
Andei lentamente ao outro lado da cidade, mais precisamente ao restaurante onde costumava almoçar anos antes, muitos anos antes. Abri com caipirinha coada, como regra por ali, caipirinha feia, mas saborosa. Prossegui com caldeirada de tucunaré, pirão engrossado, quase duro, com farinha d’água, arroz branco. Encerrei com jarra de suco de graviola, pois não havia o invariavelmente divino suco de cupuaçu.
E fugi do caldeirão das ruas de Santarém para o fresco
quatro do hotel.
À noite, duas caipirinhas honestas, apesar de coadas,
e uma generosa porção de calabresa, batatas, farinha e rodelas de cebola frita,
no calçadão da orla do Tapajós. Pouca gente. Tranquilidade. Silêncio apenas
cortado pelo marulhar das águas na murada de proteção. Delícia das delícias em
noite do meio da semana, noite comum, sempre mais agradável que as noites de
fins de semana, feriados, períodos festivos. Eu contemplava o vazio, a
escuridão das águas, raramente interrompida por voadeiras em deslocamento. A
brisa, o frescor do ar noturno, a imensidão e o brilho fugidio das águas do
Tapajós, o movimento quase nulo de pessoas, lembrava que valia e muito a pena
estar em Santarém.
Subi em ônibus urbano ao distrito de Alter do Chão, dentro
do município de Santarém. O percurso de uma hora pela PA-457 atravessou trechos
de floresta razoavelmente preservada e partes de povoados como Cucurumã, São
Braz, São Pedro, entre tantos outros.
Já na vilazinha embarquei em catraia a remo para a curtíssima travessia à ponta de areia, a imagem símbolo do lugar. Ziguezagueei ao longo da ainda estreita faixa de areia, que cresceria, em extensão e principalmente largura, com a baixa das águas do Tapajós. Avancei bem depois de muitas outras barracas então fechadas, pisando ora numa margem ora na outra da faixa, chapinhando os pés nas águas mornas. Quase ao final, com praias dos dois lados, entre vegetação de pequeno porte, avistei a boca da trilha. Era a mesma trilha que percorrera vinte e um anos antes e que levava ao topo do morro da Piroca, de onde se tinha visão privilegiada do entorno.
E lá fui eu, no impróprio horário das 12:30h, ciente do
esforço físico que faria debaixo do sol amazônico brilhando no pico do céu. A
maior parte do percurso seguia terreno aplainado e arenoso. Cerca de quinze
minutos antes de completar uma hora de caminhada a trilha iniciou a subida em
terreno pedregoso, a subir bem, exigindo pernas, pulmões, enquanto o corpo todo
se ensopava de suor.
Atingi o topo, vazio de gente, para minha felicidade. Nele,
um banco de jardim, um mastro contendo dezenas de flechas com as direções e
distâncias de vários pontos do Brasil e do exterior. E me deparei com a visão
de trezentos e sessenta graus de toda a região. Avistei a vila de Alter do
Chão, a faixa estreita de areia, zonas de floresta nativa, baías ainda
submersas e, mais adiante, o curso principal do rio Tapajós. Minha pele e as
roupas do corpo estavam encharcadas de suor. Nada de brisa. Somente o sol a
pino, o calor, o mormaço. E a visão estupenda ao redor. Relaxei, contemplei, registrei
imagens do cume e dos entornos.
De volta à praia, encostei o esqueleto na barraca mais
vazia e tranquila. Entrei nas águas da praia de Alter do Chão, braço afastado
do leito principal do Tapajós. Mergulhei, me refresquei, nadei, flutuei na água
doce. Tracei pirarucu com arroz, baião, farinha e vinagrete e duas garrafas
grandes de água. Um lagarto gordo, cinza esverdeado, de um metro de
comprimento, apareceu nas areias da praia. Eu já acabara de comer. Não sei o
que ele buscava. Não incomodou ninguém. De repente não estava mais lá.
No meio da tarde, atravessei as águas e peguei o ônibus no
terminal local.
Em Santarém fui me deliciar com a tigela de creme fresco
de açaí, farinha de tapioca e açúcar. Que maravilha o creme de açaí fresco,
provavelmente colhido durante a madrugada anterior e centrifugado, ou batido,
na manhã daquele mesmo dia! Manjar dos deuses estratosféricos!
Comecei a ler O Boto,
de Tadeu Sarmento, livro que me atraiu pelo enredo ambientado em comunidades
ribeirinhas do rio Negro, mas com pegada explicitamente sobrenatural.
A noite de domingo em Santarém, como de regra em
praticamente todos os interiores onde vivem pessoas que vivem e não apenas
vegetam, era a noite mais prestigiada nas ruas, calçadas e praças. Famílias,
casais, grupos, todos, desentocavam e saíam para circular e encontrar
conhecidos. Alegria em locais públicos, democráticos, a maior parte gratuitos.
continua...
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