sexta-feira, 4 de outubro de 2024

da Bolívia ao Piauí (via Bolívia, Peru, AM, PA, MA, PI) parte (2/7)

 ...continuação

Atravessamos a empoeirada e sem graça cidade de Uyuni. Mais ao norte, após o vilarejo de Colchani, me hospedei em hotel em cujos tetos do quarto, e nas cúpulas das áreas comuns do hotel, havia detalhes feitos de sal.

Levantei cedo para o dia do grande deserto de sal da Bolívia, o salar de Uyuni. Se tratava de mais de dez mil quilômetros quadrados de sal branco, produto extraído para processamento e consumo, sem comprometer, no entanto, a paisagem e o ecossistema.

Dentro da área do salar atravessamos de carro extensões de paisagens inacreditáveis, pela beleza e pela esquisitice dessa beleza, duas qualidades que se multiplicavam. Aquela paisagem, assim como o diferente e deslumbrante monte Roraima, na divisa tríplice entre Brasil, Venezuela e Guiana, transmitia beleza esquisita, ou esquisitice bela.

O deslocamento no quatro por quatro parecia que não evoluía, pois o entorno, montanhas, vulcões, não se movia, tal a imensidão das distâncias.

Paramos no meio do nada. Piso plano, branco, cristalino, riscado pelas gretas pentagonais, em todas as direções. Ninguém, nenhum veículo por perto. Seria o lugar do almoço, a partir de comida preparada no hotel de Colchani. Vez ou outra, firmando a vista protegida pelos eficazes óculos de sol, eu notava, bem longe, minúsculo, um veículo em movimento, feito inseto em deslocamento naquele infinito branco. Foram retiradas do porta-malas mesas e cadeiras dobráveis e dispostas sobre o piso branco e salgado. Guarda-sóis nos protegeram do sol implacável, ainda que sob as temperaturas frias. Em nenhum momento tirei os óculos de sol, sob o risco de ferir as retinas com tanta luz e brilhos. O cardápio daquele almoço nobre sobre local especial se compôs do Apthapi, comida típica boliviana, da etnia aymara, que costuma ser apreciada no início da semeadura e da colheita nas zonas rurais. Vinham muitas opções secas, carne de boi, carne de frango, charque em fios finos, milho branco, diversos tipos de batatas, inclusive as desidratadas, legumes variados. O sabor da comida, apesar dos itens demasiadamente ressecados, os dois colegas bolivianos como companhia, o entorno único, plano, branco, cristalino, infinito, o nada, o isolamento, o silêncio absoluto, me proporcionaram emoções ímpares, diferentes de tudo que já experimentara.


Bem abastecidos de comida seguimos em frente. Em trajeto longo, plano e muito branco, é claro, avançamos no salar no sentido norte.

O veículo encostou ao lado da ilha Incahuasi, morro cercado de sal por todos os lados. Sobre o terreno irregular, rochas vulcânicas, corais, cactos gigantes, na altura e na espessura. Percorri a trilha em formato circular. Permaneci bastante tempo no topo, onde se realizavam periodicamente rituais aymara e de onde se tinha visão panorâmica completa do salar em todas as direções. A visão dos cactos grandes e gordos e da planície salgada infinita era arrebatadora. Parecia impossível a orientação dentro da imensidão branca.

Deixando a ilha no sentido de Colchani, mas ainda no meio da brancura de sal, em ponto onde havia afloramento de águas, aconteceu a parada para assistir ao por do sol. Novamente a mesa dobrável foi montada. Foi aberta garrafa de vinho boliviano da região de Tarija, acrescida de potinhos com salgadinhos variados. O sol se punha de um lado e a lua, quase cheia, se erguia do outro. Mágico! A cada minuto que passava a temperatura despencava alguns graus. Sem mais luz, exceto a da lua, tudo foi guardado de volta no porta-malas do veículo. Retornei à vila de Colchani.

Durante o jantar encontrei dois brasileiros quarentões, capixabas, viajando em duas motos desde o Espírito Santo. Pareciam descolados e cheios de aventuras para contar. A conversa não durou muito. No entanto, sempre emociona quando brasileiros se encontram em viagens. E me lembrei de outro encontro com capixaba, dessa vez um cinquentão sozinho, na Chapada dos Guimarães, cinco anos antes. Ele também viajava de moto, e também explorara os interiores dos países vizinhos andinos.

Pela manhã lá fui eu ao pequeno e simpático aeroporto de Uyuni.

Após voo tranquilo, com direito a vistas acachapantes da cordilheira Real a oeste, destacando o onipresente Illimani e, principalmente, o Huayna Potosi, pico de formato piramidal e coberto de neve recente, o avião pousou no aeroporto da cidade de El Alto.

No aeroporto em El Alto peguei veículo que desceu centenas de metros, por estradas sinuosas, até a cidade de La Paz.

Da cidade, vista privilegiada do nevado Illimani, sempre ele. Durante a noite, festejos com banda musical nas proximidades, provavelmente na praça do Estudante. Muitas buzinas, mesmo durante a noite e a madrugada, para os motoristas tentarem, em vão, escapar dos crônicos congestionamentos de La Paz.

Entre os comes e bebes, tomei duas xicaras de chá de folha de coca no café da manhã variado do hotel. Todo cuidado era pouco diante da altitude e do ar rarefeito.


Embarquei na estação de uma das linhas do teleférico de La Paz. Ao contrário do que imaginara sobre o teleférico, apenas como ferramenta turística e de passeios aleatórios, se tratava de meio de transporte local, composto de onze linhas que se integravam por estações de conexão. Tanto que percorri três linhas através de duas conexões em estações modernas, eficientes e limpas. Para viajantes, no entanto, servia como passeio, pela vista do alto da cidade de La Paz, dos morros, colinas, escarpas, cortadas pelos estreitos caminhos de rato e por raras avenidas, tornando insuportável o trânsito da cidade, mesmo fora dos horários de pico.

Belisquei saltenhas de massas adocicadas e me hidratei com o mocochinchi, refresco industrializado boliviano, exageradamente adocicado e enjoativo.

Subi ao mirante Killi Killi de onde se tinha visão de trezentos e sessenta graus da cidade. Pude apreciar os contrastes do urbanismo e do trânsito de La Paz, ambos caóticos e fascinantes. Dali, vista do pico Illimani, coberto de neve, principal fonte de água potável para a cidade, dos morros com altíssima densidade demográfica e casas com tijolos à vista, das linhas de teleférico, dos prédios novos da zona sul, mais procurada pelas elites locais por contar com menor altitude e, sobretudo, por se afastar dos bairros mais altos e ocupados pela população indígena.

Segui ao centro antigo de La Paz, entre becos, ladeiras, casario barroco, palácios administrativos, galerias de arte. Era a La Paz autêntica, dos velhos tempos, inclusive o da minha primeira visita à cidade quarenta e um anos antes. Entrei na galeria de arte de artista boliviano contemporâneo cujos temas realçavam cores e formas da cultura andina, as paisagens, a mitologia, as crenças.

Circulei pela praça Murillo, o marco zero de La Paz, tendo ao redor o palácio presidencial e o congresso. Na calçada que circundava a praça, o quitute típico pacenho, a gelatina avermelhada com cobertura de chantilly, oferecida pelas inúmeras vendedoras em barracas improvisadas.

Continuei a caminhada à assim chamada rua das Bruxas, ou mercado das Bruxas. Além de lojinhas para turistas, havia as tendas com produtos místicos para rituais de simpatias, a favor ou contra, numa variada profusão de itens expostos e também de matérias primas utilizadas, inclusive fetos ressecados de lhama.


Me deparei com o baita engarrafamento de trânsito, a famosa trancadera de La Paz, como os habitantes denominaram aquela calamidade de veículos em excesso em cidade que já existia assim havia séculos.

Mais para o sul de La Paz, sempre baixando a altitude, visitei o então desfigurado Vale da Lua. As casas da elite boliviana invadiram o entorno bem próximo, estragando de vez com o que jamais se constituiu em atração imperdível.

De volta ao centro da cidade, bandas tocando marchas militares continuavam na ativa pelos lados da praça do Estudante, o local preferido dos pacenhos para encontros, eventos, manifestações.

Cedinho pela manhã embarquei em perua com destino à cidade de Coroico, na região dos Yungas, na altitude de apenas mil e quinhentos metros, ou seja, dois mil e cem metros abaixo de La Paz.

De La Paz, por ruas íngremes e esburacadas, o veículo subiu a quatro mil e seiscentos metros de altitude. Somente a partir daí iniciou a descida propriamente dita, pela estrada nova, ainda assim muito perigosa, pelas curvas fechadas e pelos declives acentuados, fatores agravados pelo comportamento imprudente de muitos motoristas. Pela estrada velha, a famigerada estrada da morte, muitos morreram dentro dos ônibus que despencavam no abismo por conta da absurda estreiteza do leito do caminho extremamente sinuoso.

Na primeira parte da descida da cordilheira, a neblina, seca e depois úmida, envolveu parte da paisagem. O verde e a vegetação se assemelhavam à da serra da Mantiqueira, no sudeste brasileiro, porém se diferenciava pelas encostas mais altas e mais íngremes. Casinhas e pequenas plantações despontavam aqui e ali.

Mais acima da cidade de Coroico visitei o cafezal orgânico onde ouvi explicações sobre cada fase da cultura do café, desde a produção de mudas, a semeadura, colheita, limpeza, secagem, torrefação, liberação para o consumo.

O clima úmido, serrano, rico em vegetação exuberante, abriu escancaradamente o apetite. O almoço veio de torradas com alho, azeite e pesto, salada de legumes e quinoa, sempre ela, espaguete ao pesto, sorvete de café e maracujá, suco diferente e refrescante de sultana e hibisco.

E veio a subida da cordilheira de volta a La Paz. Mais neblina e também garoa teimosa. Pelas faixas da rodovia, brotavam motoristas que desejavam morrer e matar os outros, tal a imprudência doentia nas ultrapassagens. Talvez fossem saudosos incuráveis dos perigos de morte da estrada velha.

O carro entrou à noite em La Paz, congestionada como regra, mas ainda mais por conta dos eventos da Entrada Folclórica do Gran Poder, festividade anual que avançaria pela madrugada.

Naquele domingo pela manhã circulei de leve pelo centro antigo de La Paz. Pessoas circulavam sob o sol ameno, comprando pequenas coisas ou simplesmente batendo pernas com a família. Passei pela igreja de São Francisco, construção suntuosa, pesada, em cor ocre.

Escolhi para almoçar restaurante frequentado pela elite pacenha, em ambiente decorado de modo conservador e servido por garçons uniformizados e submissos. Fui de filé mignon alto, coberto por dois ovos fritos, mais arroz branco e batatas fritas. Encerrei com xicara de chá de camomila. Ali dentro, pessoas de traços indígenas, ou seja, a maioria esmagadora da população boliviana, somente os garçons e demais empregados. Nas demais mesas, descendentes dos invasores europeus.

E me estendi no quarto do hotel para prosseguir a leitura de O Século das Luzes, de Alejo Carpentier.

Na manhã seguinte deixei La Paz pela cidade de El Alto. Assim como o nevado Illimani era onipresente em La Paz, em El Alto quem se fazia visível de todas as partes era o estupendo nevado Huayna Potosi. De formato piramidal, coberto de neve, era o legítimo e charmoso guardião da cidade.

Após cruzar a extensa e populosa cidade de El Alto, o veículo finalmente alcançou a rodovia. A cordilheira Real, nome regional da cordilheira dos Andes, se erguia imponente a leste, dotada de vários picos nevados com altitude acima dos cinco mil metros, inclusive o nevado Condoriri.

O veículo teve que encarar uma das longas filas para abastecer com gasolina em posto de combustíveis da beira da estrada. A fila do diesel era infinitamente mais longa. A Bolívia passava por problemas de abastecimento de combustíveis e as correntes de extrema-direita tentavam faturar em cima da crise, a favor dos capitalistas e contra a maioria da população.

Mais ao norte, não demorei a avistar as águas do lago Titicaca. O visual da cordilheira exigiu parada para contemplar e registrar as imagens do lago, de águas extremamente azuis, das montanhas nevadas da cordilheira ao fundo e, na beira da água, de casas espaçadas.


No povoado de Tiquina o veículo subiu na balsa para atravessar o estreito e mudar de margem do lago Titicaca. Gaivotas mansas e curiosas pousavam na grade lateral da balsa, a menos de um metro dos passageiros. O céu limpo, sem nuvens, pouco vento, valorizava as luzes e as cores em terra e, principalmente, as águas incrivelmente azuis do lago.

Do outro lado do estreito a estrada se tornou terrivelmente sinuosa. Em dado momento, depois de uma das inúmeras curvas acentuadas, dos altos, avistei Copacabana, espremida entre dois morros, a encosta íngreme atrás, e a imensidão das águas azuladas do lago Titicaca à frente.

Lá embaixo me hospedei em hotel de construção de bom gosto, com quartos amplos e envidraçados, sem excluir o banheiro, apesar da criminosa banheira escorregadia, solução sanitária copiada da Europa e dos tempos do onça.

Almocei enorme filé de truta, pescada em criadouros no lago, ao molho de muña, verdura aromática. O creme de cenoura serviu como entrada e a torta de maracujá como sobremesa para fechar com chave-de-ouro o almoço saboroso.

À tarde circulei por Copacabana, visitando a imensa igreja da Virgem e padroeira da Bolívia. Emendei com as escadarias do calvário, rumo ao topo do morro cerca de duzentos metros acima. E naquela altitude a escadaria não poderia ter outro nome. A árdua subida, no entanto, teve como recompensa a estupenda vista da cidade, do lago até o último horizonte, outros vilarejos lacustres distantes, minúsculos ou pequenos, nas margens do lago.

Desci as escadarias e contemplei o por do sol na orla de Copacabana. Ali, na ruazinha da orla, Copacabana se transformara, havia anos, naqueles pontos de turistas jovens, previsíveis, iguaizinhos pelo mundo afora, metidos a alternativos, a falsos mochileiros, termos anacrônicos na terceira década do século XXI. E, como esperado, os tais estavam lá. Sentados nas cadeiras de mesas que pareciam cativas, pois jamais as desocupavam. Raros os que retribuíam aos meus cumprimentos. Uma ou duas ruas, transversais ou paralelas, concentravam os bares, restaurantes, agências de turismo local. Embora ainda dotada de belezas e charmes, longe de totalmente deformada pelo turismo e pelos turistas, Copacabana em algum lugar do passado já fora local idílico.

Jantei sopa de amendoim, keperí, prato típico da Amazônia boliviana, mais especificamente do departamento de Beni, composto de carne amaciada com cozimento brando e demorado, purê de batatas servido ao redor de bastão de madeira, legumes variados. De sobremesa, a deliciosa repetição do almoço, torta de maracujá.

continua...

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