...continuação
Atravessamos a empoeirada e sem graça cidade de Uyuni. Mais
ao norte, após o vilarejo de Colchani, me hospedei em hotel em cujos tetos do
quarto, e nas cúpulas das áreas comuns do hotel, havia detalhes feitos de sal.
Levantei cedo para o dia do grande deserto de sal da
Bolívia, o salar de Uyuni. Se tratava de mais de dez mil quilômetros quadrados
de sal branco, produto extraído para processamento e consumo, sem comprometer,
no entanto, a paisagem e o ecossistema.
Dentro da área do salar atravessamos de carro extensões de
paisagens inacreditáveis, pela beleza e pela esquisitice dessa beleza, duas
qualidades que se multiplicavam. Aquela paisagem, assim como o diferente e
deslumbrante monte Roraima, na divisa tríplice entre Brasil, Venezuela e
Guiana, transmitia beleza esquisita, ou esquisitice bela.
O deslocamento no quatro por quatro parecia que não
evoluía, pois o entorno, montanhas, vulcões, não se movia, tal a imensidão das
distâncias.
Paramos no meio do nada. Piso plano, branco, cristalino,
riscado pelas gretas pentagonais, em todas as direções. Ninguém, nenhum veículo
por perto. Seria o lugar do almoço, a partir de comida preparada no hotel de
Colchani. Vez ou outra, firmando a vista protegida pelos eficazes óculos de
sol, eu notava, bem longe, minúsculo, um veículo em movimento, feito inseto em
deslocamento naquele infinito branco. Foram retiradas do porta-malas mesas e
cadeiras dobráveis e dispostas sobre o piso branco e salgado. Guarda-sóis nos
protegeram do sol implacável, ainda que sob as temperaturas frias. Em nenhum
momento tirei os óculos de sol, sob o risco de ferir as retinas com tanta luz e
brilhos. O cardápio daquele almoço nobre sobre local especial se compôs do Apthapi, comida típica boliviana, da
etnia aymara, que costuma ser apreciada no início da semeadura e da colheita
nas zonas rurais. Vinham muitas opções secas, carne de boi, carne de frango,
charque em fios finos, milho branco, diversos tipos de batatas, inclusive as
desidratadas, legumes variados. O sabor da comida, apesar dos itens demasiadamente
ressecados, os dois colegas bolivianos como companhia, o entorno único, plano,
branco, cristalino, infinito, o nada, o isolamento, o silêncio absoluto, me
proporcionaram emoções ímpares, diferentes de tudo que já experimentara.
Bem abastecidos de comida seguimos em frente. Em trajeto longo, plano e muito branco, é claro, avançamos no salar no sentido norte.
O veículo encostou ao lado da ilha Incahuasi, morro
cercado de sal por todos os lados. Sobre o terreno irregular, rochas
vulcânicas, corais, cactos gigantes, na altura e na espessura. Percorri a
trilha em formato circular. Permaneci bastante tempo no topo, onde se realizavam
periodicamente rituais aymara e de onde se tinha visão panorâmica completa do
salar em todas as direções. A visão dos cactos grandes e gordos e da planície salgada infinita era arrebatadora. Parecia impossível a orientação dentro da
imensidão branca.
Deixando a ilha no sentido de Colchani, mas ainda no meio
da brancura de sal, em ponto onde havia afloramento de águas, aconteceu a parada
para assistir ao por do sol. Novamente a mesa dobrável foi montada. Foi aberta garrafa
de vinho boliviano da região de Tarija, acrescida de potinhos com salgadinhos
variados. O sol se punha de um lado e a lua, quase cheia, se erguia do outro.
Mágico! A cada minuto que passava a temperatura despencava alguns graus. Sem mais
luz, exceto a da lua, tudo foi guardado de volta no porta-malas do veículo. Retornei
à vila de Colchani.
Durante o jantar encontrei dois brasileiros quarentões,
capixabas, viajando em duas motos desde o Espírito Santo. Pareciam descolados e
cheios de aventuras para contar. A conversa não durou muito. No entanto, sempre
emociona quando brasileiros se encontram em viagens. E me lembrei de outro
encontro com capixaba, dessa vez um cinquentão sozinho, na Chapada dos
Guimarães, cinco anos antes. Ele também viajava de moto, e também explorara os
interiores dos países vizinhos andinos.
Pela manhã lá fui eu ao pequeno e simpático aeroporto de
Uyuni.
Após voo tranquilo, com direito a vistas acachapantes da
cordilheira Real a oeste, destacando o onipresente Illimani e, principalmente,
o Huayna Potosi, pico de formato piramidal e coberto de neve recente, o avião
pousou no aeroporto da cidade de El Alto.
No aeroporto em El Alto peguei veículo que desceu centenas
de metros, por estradas sinuosas, até a cidade de La Paz.
Da cidade, vista privilegiada do nevado Illimani, sempre
ele. Durante a noite, festejos com banda musical nas proximidades,
provavelmente na praça do Estudante. Muitas buzinas, mesmo durante a noite e a
madrugada, para os motoristas tentarem, em vão, escapar dos crônicos
congestionamentos de La Paz.
Entre os comes e bebes, tomei duas xicaras de chá de folha
de coca no café da manhã variado do hotel. Todo cuidado era pouco diante da
altitude e do ar rarefeito.
Embarquei na estação de uma das linhas do teleférico de La Paz. Ao contrário do que imaginara sobre o teleférico, apenas como ferramenta turística e de passeios aleatórios, se tratava de meio de transporte local, composto de onze linhas que se integravam por estações de conexão. Tanto que percorri três linhas através de duas conexões em estações modernas, eficientes e limpas. Para viajantes, no entanto, servia como passeio, pela vista do alto da cidade de La Paz, dos morros, colinas, escarpas, cortadas pelos estreitos caminhos de rato e por raras avenidas, tornando insuportável o trânsito da cidade, mesmo fora dos horários de pico.
Belisquei saltenhas
de massas adocicadas e me hidratei com o mocochinchi,
refresco industrializado boliviano, exageradamente adocicado e enjoativo.
Subi ao mirante Killi Killi de onde se tinha visão de
trezentos e sessenta graus da cidade. Pude apreciar os contrastes do urbanismo
e do trânsito de La Paz, ambos caóticos e fascinantes. Dali, vista do pico
Illimani, coberto de neve, principal fonte de água potável para a cidade, dos
morros com altíssima densidade demográfica e casas com tijolos à vista, das
linhas de teleférico, dos prédios novos da zona sul, mais procurada pelas
elites locais por contar com menor altitude e, sobretudo, por se afastar dos
bairros mais altos e ocupados pela população indígena.
Segui ao centro antigo de La Paz, entre becos, ladeiras,
casario barroco, palácios administrativos, galerias de arte. Era a La Paz
autêntica, dos velhos tempos, inclusive o da minha primeira visita à cidade
quarenta e um anos antes. Entrei na galeria de arte de artista boliviano
contemporâneo cujos temas realçavam cores e formas da cultura andina, as
paisagens, a mitologia, as crenças.
Circulei pela praça Murillo, o marco zero de La Paz, tendo
ao redor o palácio presidencial e o congresso. Na calçada que circundava a
praça, o quitute típico pacenho, a gelatina avermelhada com cobertura de
chantilly, oferecida pelas inúmeras vendedoras em barracas improvisadas.
Continuei a caminhada à assim chamada rua das Bruxas, ou
mercado das Bruxas. Além de lojinhas para turistas, havia as tendas com
produtos místicos para rituais de simpatias, a favor ou contra, numa variada
profusão de itens expostos e também de matérias primas utilizadas, inclusive
fetos ressecados de lhama.
Me deparei com o baita engarrafamento de trânsito, a famosa trancadera de La Paz, como os habitantes denominaram aquela calamidade de veículos em excesso em cidade que já existia assim havia séculos.
Mais para o sul de La Paz, sempre baixando a altitude,
visitei o então desfigurado Vale da Lua. As casas da elite boliviana invadiram
o entorno bem próximo, estragando de vez com o que jamais se constituiu em
atração imperdível.
De volta ao centro da cidade, bandas tocando marchas
militares continuavam na ativa pelos lados da praça do Estudante, o local
preferido dos pacenhos para encontros, eventos, manifestações.
Cedinho pela manhã embarquei em perua com destino à cidade
de Coroico, na região dos Yungas, na altitude de apenas mil e quinhentos
metros, ou seja, dois mil e cem metros abaixo de La Paz.
De La Paz, por ruas íngremes e esburacadas, o veículo
subiu a quatro mil e seiscentos metros de altitude. Somente a partir daí
iniciou a descida propriamente dita, pela estrada nova, ainda assim muito
perigosa, pelas curvas fechadas e pelos declives acentuados, fatores agravados
pelo comportamento imprudente de muitos motoristas. Pela estrada velha, a
famigerada estrada da morte, muitos morreram dentro dos ônibus que despencavam
no abismo por conta da absurda estreiteza do leito do caminho extremamente
sinuoso.
Na primeira parte da descida da cordilheira, a neblina,
seca e depois úmida, envolveu parte da paisagem. O verde e a vegetação se
assemelhavam à da serra da Mantiqueira, no sudeste brasileiro, porém se
diferenciava pelas encostas mais altas e mais íngremes. Casinhas e pequenas
plantações despontavam aqui e ali.
Mais acima da cidade de Coroico visitei o cafezal orgânico
onde ouvi explicações sobre cada fase da cultura do café, desde a produção de
mudas, a semeadura, colheita, limpeza, secagem, torrefação, liberação para o
consumo.
O clima úmido, serrano, rico em vegetação exuberante,
abriu escancaradamente o apetite. O almoço veio de torradas com alho, azeite e pesto, salada de legumes e quinoa,
sempre ela, espaguete ao pesto,
sorvete de café e maracujá, suco diferente e refrescante de sultana e hibisco.
E veio a subida da cordilheira de volta a La Paz. Mais
neblina e também garoa teimosa. Pelas faixas da rodovia, brotavam motoristas
que desejavam morrer e matar os outros, tal a imprudência doentia nas
ultrapassagens. Talvez fossem saudosos incuráveis dos perigos de morte da
estrada velha.
O carro entrou à noite em La Paz, congestionada como
regra, mas ainda mais por conta dos eventos da Entrada Folclórica do Gran
Poder, festividade anual que avançaria pela madrugada.
Naquele domingo pela manhã circulei de leve pelo centro antigo de La Paz. Pessoas circulavam sob o sol ameno, comprando pequenas coisas ou simplesmente batendo pernas com a família. Passei pela igreja de São Francisco, construção suntuosa, pesada, em cor ocre.
Escolhi para almoçar restaurante frequentado pela elite
pacenha, em ambiente decorado de modo conservador e servido por garçons
uniformizados e submissos. Fui de filé mignon alto, coberto por dois ovos fritos,
mais arroz branco e batatas fritas. Encerrei com xicara de chá de camomila. Ali
dentro, pessoas de traços indígenas, ou seja, a maioria esmagadora da população
boliviana, somente os garçons e demais empregados. Nas demais mesas,
descendentes dos invasores europeus.
E me estendi no quarto do hotel para prosseguir a leitura
de O Século das Luzes, de Alejo
Carpentier.
Na manhã seguinte deixei La Paz pela cidade de El Alto.
Assim como o nevado Illimani era onipresente em La Paz, em El Alto quem se
fazia visível de todas as partes era o estupendo nevado Huayna Potosi. De
formato piramidal, coberto de neve, era o legítimo e charmoso guardião da
cidade.
Após cruzar a extensa e populosa cidade de El Alto, o
veículo finalmente alcançou a rodovia. A cordilheira Real, nome regional da
cordilheira dos Andes, se erguia imponente a leste, dotada de vários picos
nevados com altitude acima dos cinco mil metros, inclusive o nevado Condoriri.
O veículo teve que encarar uma das longas filas para
abastecer com gasolina em posto de combustíveis da beira da estrada. A fila do
diesel era infinitamente mais longa. A Bolívia passava por problemas de
abastecimento de combustíveis e as correntes de extrema-direita tentavam
faturar em cima da crise, a favor dos capitalistas e contra a maioria da população.
Mais ao norte, não demorei a avistar as águas do lago
Titicaca. O visual da cordilheira exigiu parada para contemplar e registrar as
imagens do lago, de águas extremamente azuis, das montanhas nevadas da
cordilheira ao fundo e, na beira da água, de casas espaçadas.
No povoado de Tiquina o veículo subiu na balsa para atravessar o estreito e mudar de margem do lago Titicaca. Gaivotas mansas e curiosas pousavam na grade lateral da balsa, a menos de um metro dos passageiros. O céu limpo, sem nuvens, pouco vento, valorizava as luzes e as cores em terra e, principalmente, as águas incrivelmente azuis do lago.
Do outro lado do estreito a estrada se tornou
terrivelmente sinuosa. Em dado momento, depois de uma das inúmeras curvas
acentuadas, dos altos, avistei Copacabana, espremida entre dois morros, a
encosta íngreme atrás, e a imensidão das águas azuladas do lago Titicaca à frente.
Lá embaixo me hospedei em hotel de construção de bom
gosto, com quartos amplos e envidraçados, sem excluir o banheiro, apesar da
criminosa banheira escorregadia, solução sanitária copiada da Europa e dos
tempos do onça.
Almocei enorme filé de truta, pescada em criadouros no
lago, ao molho de muña, verdura
aromática. O creme de cenoura serviu como entrada e a torta de maracujá como
sobremesa para fechar com chave-de-ouro o almoço saboroso.
À tarde circulei por Copacabana, visitando a imensa igreja
da Virgem e padroeira da Bolívia. Emendei com as escadarias do calvário, rumo
ao topo do morro cerca de duzentos metros acima. E naquela altitude a escadaria
não poderia ter outro nome. A árdua subida, no entanto, teve como recompensa a
estupenda vista da cidade, do lago até o último horizonte, outros vilarejos
lacustres distantes, minúsculos ou pequenos, nas margens do lago.
Desci as escadarias e contemplei o por do sol na orla de
Copacabana. Ali, na ruazinha da orla, Copacabana se transformara, havia anos, naqueles
pontos de turistas jovens, previsíveis, iguaizinhos pelo mundo afora, metidos a
alternativos, a falsos mochileiros, termos anacrônicos na terceira década do
século XXI. E, como esperado, os tais estavam lá. Sentados nas cadeiras de
mesas que pareciam cativas, pois jamais as desocupavam. Raros os que retribuíam
aos meus cumprimentos. Uma ou duas ruas, transversais ou paralelas,
concentravam os bares, restaurantes, agências de turismo local. Embora ainda
dotada de belezas e charmes, longe de totalmente deformada pelo turismo e pelos
turistas, Copacabana em algum lugar do passado já fora local idílico.
Jantei sopa de amendoim, keperí, prato típico da Amazônia
boliviana, mais especificamente do departamento de Beni, composto de carne
amaciada com cozimento brando e demorado, purê de batatas servido ao redor de
bastão de madeira, legumes variados. De sobremesa, a deliciosa repetição do
almoço, torta de maracujá.
continua...
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