Embarquei naquele mês de maio pela empresa boliviana de
aviação, rumo à conexão em Santa Cruz de La Sierra. Novo voo para Sucre pela
mesma empresa. Durante ambos os voos, me debrucei nas leituras de O Século das Luzes, de Alejo Carpentier.
Pousei no aeroporto de Sucre, distante trinta e três
quilômetros da cidade. Durante o percurso, pela janela do avião, secura,
montanhas de tom ocre e pouco habitadas. Sucre se situava a cerca de dois mil e
oitocentos metros de altitude. Embora cidade muito alta para os padrões
brasileiros, era considerada baixa diante do altiplano boliviano.
O casario colonial, todo recém-pintado de branco para as
comemorações de data nacional, encantava nas margens das ruas estreitas e
alongadas de Sucre, a capital constitucional da Bolívia, deixando La Paz como a
sede do governo. A cidade guardava centro urbano belo e charmoso, dotado de
inúmeras atrações históricas, arquitetônicas, culturais, sem falar dos próprios
moradores, entre muitos estudantes universitários.
Visitei a praça da Recoleta, o convento em uma das faces, e
outras construções repletas de balcões chamativos. Caminhei por ruas cujas
construções, invariavelmente brancas, se encontravam adornadas com vasos de
flores suspensos nas paredes frontais. O povo boliviano que coincidia com meu
caminho se mostrava sempre educado e gentil, tomando a iniciativa de sorrir e
de me cumprimentar.
Percorri diversas ruas estreitas, em meio ao casario antigo,
atravessando a praça principal, rodeada de construções suntuosas, incluindo o
supremo tribunal, sede do judiciário da Bolívia, e da administração do
departamento de Chuquisaca, nos limites do qual se localizava a cidade de
Sucre. Tudo bem preservado e recém-pintado de branco. Acolhedoras as praças e
parques prestigiados pelos sucrenhos, valorizando os espaços públicos,
democráticos, gratuitos, bem cuidados pelas administrações públicas e pela
população.
Durante a noite, ruas e praças enchiam de sucrenhos, aumentando a minha admiração pelos bolivianos e crescendo minha consternação pelos brasileiros enfurnados em xópins e lixos afins. Em dia e noite com campanha dos museus de Sucre de incentivo à visitação dos habitantes, os preços simbólicos cobrados atraíram ainda mais gente para ruas, praças, bares, restaurantes, centros culturais, museus.
Levantei cedo para pegar a estrada para o sul da Bolívia O
motorista foi bancário em La Paz por trinta e dois anos. Durante todo o tempo
sofreu de desgaste nervoso, causando sérios problemas de saúde, devido aos
excessos de trabalho e às pressões psicológicas. Abandonou tudo e se mudou com
a esposa, professora universitária, para Sucre. Como motorista de turismo, ele
resumia a própria vida antes, quando pagava para realizar as raras viagens a
passeio, e a vida atual que passara a receber para viajar sempre. Sarou de
todos os sintomas doentios. Ele e a mulher se sentiam felizes e renascidos para
a vida.
A paisagem durante o percurso, campos com arbustos e
gramíneas, se tornou mais dramática após a entrada no departamento de Potosi,
cujas rodovias subiam sempre de altitude.
Em Potosi visitei a Casa da Moeda, local onde, durante
quase quinhentos anos, se cunhavam as moedas a partir da prata extraída de
minas nos arredores da cidade. Durante séculos o metal foi retirado
criminosamente pelos invasores espanhóis utilizando mão de obra escravizada dos
indígenas da região. Extraíam das galerias do famoso Cerro Rico de Potosi,
montanha ao lado da cidade, riquíssima em prata, chumbo, zinco.
Circulei a pé pelas ruas estreitas de Potosi. Os charmosos
balcões fabricados em cedro, pintados geralmente de verde, não poderiam faltar,
além do casario secular, entre palácios, igrejas, torres, obeliscos, revelando
conjunto arquitetônico extremamente vistoso e atraente. Potosi se localizava a
quatro mi e cem metros de altitude. O ar demasiadamente seco congestionava as
narinas, provocando espirros ocasionais, seguidos de secreções volumosas.
Parei para almoçar em restaurante familiar, simples,
básico, frequentado por moradores e visitantes. Comi comida comum bem servida.
A trilha sonora do ambiente, baseada em versões bolivianas de sucessos da
música comercial internacional, com arranjos para lá de bregas, foi o destaque
ridículo daquele estabelecimento instalado em mais um casarão colonial.
Após o almoço, vestindo capacete e uniforme de segurança,
visitei uma galeria da mina do Cerro Rico. Antes entrei em comércio local para
adquirir oferendas ao protetor dos mineiros, entre folhas de coca, pasta
comestível de cinzas, álcool 96 graus. Sim, os mineiros de Potosi bebem álcool
96 graus! As minas estavam então sendo administradas por trinta e cinco
cooperativas, empregando trinta mil mineiros em péssimas condições de trabalho,
insalubre e de horário demasiadamente extenso.
As centenas de galerias tornavam o Cerro Rico formigueiro repleto de caminhos internos abertos à dinamite, o transformando em volume cada vez mais oco que rochoso. Situação que ameaçava desmoronar a estrutura, total ou parcialmente, a qualquer momento. Na boca da galeria entreguei as oferendas a um dos mineiros que se embebedavam com colegas em dia de feriado em homenagem ao Espírito.
Entrei na galeria, irregular, baixa, obrigando a me
curvar. Logo no começo lá estava o boneco da divindade protetora dos mineiros,
rodeado de oferendas. Aproveitei para observar, e matar saudades dos tempos de
prospecção mineral, os filões do minério nas paredes e tetos. Da galeria de
entrada, saíam, para os lados, para cima e para baixo, outras galerias menores,
ainda mais claustrofóbicas que a principal.
De volta à rodovia para enfrentar os últimos duzentos
quilômetros até a cidade de Uyuni. O traçado sinuoso, as montanhas belíssimas
valorizadas pela luz do sol vespertino, ora acinzentadas, ora acastanhadas, ora
avermelhadas, encantavam os olhos. Os dobramentos das camadas geológicas, nítidos,
escandalosamente visíveis a olho nu, causariam orgasmos múltiplos aos
profissionais e estudantes da área.
Em trechos mais planos da paisagem, com ofertas de água
vinda das montanhas, esverdeando o capim e as gramíneas, rebanhos de lhamas
atravessavam a estrada vez ou outra em busca de pastos mais verdes e
suculentos.
No começo da noite cheguei a Uyuni e logo fui jantar. Fui
de sopa de quinoa, seguida de lhama grelhada com arroz e legumes. Tudo
preparado com carinho e servido com atenção e simpatia.
O dia seguinte amanheceu seis graus negativos. O quarto e
o banheiro privativo do quarto do hotel, no entanto, se encontravam levemente
aquecidos pelos dois aquecedores previamente acionados antes de eu entrar na
noite anterior.
Saí ao vilarejo de Pulacayo, sede de antiga mineradora
estatal de estanho, cuja administração passara à cooperativa de mineiros. Nos
limites da mina, trens abandonados sobre trilhos desativados, maquinário
obsoleto, casario precário e quase abandonado. A descoberta de novas jazidas
próximas, sob o cerro principal, reativaria a economia local e vida na
cidadezinha. Circulei pelas ruazinhas, observando construções vazias e paradas
no tempo. Fazia frio intenso, agravado pelo vento constante.
De volta às imediações de Uyuni parei para visitar o
cemitério de trens, ao lado de ferrovia desativada. Antes os trilhos levavam
minérios ao porto de Antofagasta, cidade hoje pertencente ao Chile, mas que
anteriormente à guerra do Pacífico, no final do século XIX, fazia parte do
território da Bolívia. Daí o abandono de locomotivas, vagões, acessórios
ferroviários em geral.
A cidade de Uyuni se apresentava empoeirada, plana, espalhada, desprovida de qualidades visuais. Com traçado de ruas quadriculadas, parecidíssimas entre si, sem calçamento, mais parecia concentração urbana perdida no deserto, e reerguida e ampliada para o turismo.
O veículo tomou o rumo sul para longa jornada com destino
ao vilarejo de Villamar, percorrendo estradas pavimentadas e não pavimentadas,
estas cheias de poeira em suspensão. Do lado oeste a cordilheira dos Andes se
aproximava e, ao fundo, montanhas mais altas e nevadas. Lhamas e vicunhas
pastavam livremente em terrenos ricos em vegetação rasteira.
Parada sem graça em San Cristobál para visitar igreja toda
construída em pedra e que fora transplantada e reerguida em outro local da
cidade, pois o primeiro ponto se localizava sobre rica jazida mineral de
estanho.
À tardinha chegada em Villamar que me fez sentir bem
afastado das zonas urbanas do país. Ao redor, vilarejo precário e, ao fundo,
formações rochosas curiosas de coloração ocre.
Antes de jantar coloquei o nariz do lado de fora da porta
de entrada do hotel. Frações de segundo foram suficientes para concluir que as
temperaturas despencaram rapidamente para abaixo de zero.
Jantei sopa de legumes, seguida de carne com batatas,
arroz e salada. Para hidratar e aquecer o sangue eu escolhi meia garrafa do
vinho malbec boliviano da região de
Tarija. O ambiente do jantar era pequeno e acolhedor, servido por funcionária
da cozinha, calada e sorridente, e pelo gerente do hotel, também calado e
atencioso.
Muito frio pelos corredores ao retornar ao quarto.
Bem cedinho eu embarquei no veículo quatro por quatro,
apenas com a mochila de ataque, com o guia e o motorista, sob o frio
congelante. Pela madrugada os termômetros atingiram a marca de onze graus
negativos. Eu vestia todo o arsenal contra o frio disponível na bagagem. Meias
grossas de montanhismo, botas de montanha, minhocão térmico sob a calça de
caminhada, camiseta térmica de mangas longas, malha justa de montanha até o
pescoço, casaco duplo com capuz, gorro, luvas. Como se tratava de material
técnico, voltado a montanhismo e a atividades ao ar livre, sob as baixas
temperaturas, me senti seguro de que não passaria frio. E não passei.
Percorrermos naquele dia, em trajeto circular, cerca de
quatrocentos quilômetros. Por estradas e caminhos arenosos, ou sob as cinzas
vulcânicas, ambos irregulares, nas partes mais altas com neve fresca sobre o
leito dos caminhos, exploramos com calma aquela região do extremo sul da
Bolívia, única no mundo.
Logo no começo, lagoa seca e produtora de bórax,
evaporitos de tons creme a acinzentados, de extensões sem fim. Ao fundo,
montanhas de encostas íngremes.
Lhamas, pertencentes a rebanhos particulares, e vicunhas,
animais silvestres e sem donos, eram vistas com frequência. A vegetação, único
alimento dos animais, não passava de gramíneas naquelas altitudes frias e
áridas. Viscachas, raposas, chinchilas, circulavam tranquilamente, sem se
assustarem.
Parada na Laguna Colorada, atração turística famosa, porém
surpreendentemente vazia. A lagoa contava com pouca água e alguma névoa. Flamingos
circulavam ou flutuavam sobre as águas avermelhadas. Ao redor, montanhas
ressecadas e de cor ocre compunham cenário desértico bem mais atraente que a
própria atração turística.
De volta aos caminhos improvisados. E sempre subindo. Em trecho longo, demorado, mas visualmente magnífico, com muita neve nas estradinhas, assim como nas encostas e topos das montanhas próximas, o veículo atingiu os cinco mil metros de altitude. Era o ponto chamado Sol de Mañana, conjunto de gêiseres ativos, exalando vapor de água com odor podre de enxofre, depressões com lama acinzentada e borbulhante, revelando atividade vulcânica intensa em toda a região. Nem parecia que eu estava na Terra, tal a paisagem insólita, única, esquisita, incrivelmente bela e fascinante.
Em mais um longo percurso, a lagoa Chalviri, repleta de
vicunhas pastando na beira das águas com montanhas nevadas ao fundo. Mais à
frente, as curiosíssimas formações rochosas sobre encosta ocre de cinzas
vulcânicas, imagens que inspiraram quadros do pintor surrealista Salvador Dali.
Se tratavam de blocos de rocha, monólitos, que se erguiam isolada e
aleatoriamente na paisagem árida, completamente desprovida de vegetação.
Ao final do percurso, a Laguna Verde, bem ao lado de uma
das fronteiras com Chile, mais usada pelos veículos tracionados das empresas de
turismo de ambos os países. Bem mais bonita e fascinante que a Colorada, a
Laguna Verde exibia águas cinza esverdeadas pelo sulfato de cobre, águas
crespas pelo vento implacável. Ao fundo, dois vulcões. O mais impressionante
deles, o Licancabur, se erguia imponente com encostas íngremes e acastanhadas.
O topo da estrutura cônica estava parcialmente coberto de neve.
O vento constante e gelado não me impediu de circular
entre os blocos de rocha vulcânica negra. Consegui avistar, mais ao fundo,
outras montanhas com encostas nevadas, e, no rumo sul, o posto da fronteira
entre Bolívia e Chile, para onde afluíram quatro veículos quatro por quatro,
provavelmente em travessia entre os dois países. Eles pararam ali apenas alguns
minutos, tempo insuficiente para apreciar decentemente a Laguna Verde, os
vulcões, as montanhas nevadas do entorno.
De volta à Lagoa Chilviri, dentro de instalações precárias
de construção baixa, almoço simples a partir de comida preparada no hotel de
Villamar. O banquete veio de frango ensopado, arroz, batatas fritas, legumes,
maçã de sobremesa. A comida estava fria, mas saborosa e providencial para a
fome galopante. E muitas conversas instigantes com o guie e o motorista, ambos
bolivianos e comunicativos.
Tomamos o caminho de volta a Villamar, a tempo de
observar, no vilarejo, em local próximo ao hotel, pinturas rupestres datadas de
três mil anos sobre rochas de cor ocre, esculpidas em formas curiosas pelos
ventos glaciais.
Pela manhã o guia e o motorista comentaram o frio
escandaloso que passaram durante a madrugada em alojamento coletivo do
vilarejo. Sem aquecimento central, sem cobertores e edredons suficientes, se
enrolaram nas próprias roupas e dormiram aos trancos e barrancos, acordando
sempre com o corpo tremendo e os maxilares tiritando. Enquanto os turistas eram
bem tratados e bem alimentados, em ambiente aquecido, a despeito de pagarem
caro por isso, os imprescindíveis funcionários do turismo boliviano, sem os
quais nenhum passeio aconteceria, sofriam com o frio e o desconforto.
Acessamos charco esverdeado pela umidade constante, com
pouca água visível, mas alguns fios congelados. O vale largo e alongado era
margeado por paredões irregulares de rocha de coloração ocre. Ao fundo, depois
de extensa e estimulante caminhada, ao lado de viscachas, chinchilas, gaivotas,
variados patos selvagens, surgiu o lago Catal, de águas plácidas, silencioso,
discreto. Aquele ambiente tranquilo, sem turistas ruidosos, em meio a curiosas
formações rochosas, à fauna e à flora exuberantes, ao ar puro, ouvindo o
delicado som do silêncio, gerava imensa paz interior e prazer sem fim de estar
ali, naquela hora. Caminhei, contemplei, relaxei, divaguei, devaneei. Retornei
por caminho distinto da ida, também exuberante, me obrigando a, vez ou outra,
pular fios de água congelada. A fauna ao lado reinava absoluta e pouco se
importava com a minha presença.
Mais adiante, a Garganta da Anaconda, a profunda garganta
com vales úmidos e esverdeados era ladeada por altíssimos paredões rochosos,
avistada do promontório de rocha no formato de cabeça de cobra gigante.
Definitivamente não era local para quem tem medo de altura.
Almoçamos novamente comida preparada pelo hotel de
Villamar, dessa vez em salão vazio do povoado de San Cristobál. Carne ao molho
com legumes, torta de batata, quinoa com milho. E, novamente, debatemos os
cotidianos dos dois países, satisfazendo a curiosidade de ambos os lados. O
guia e o motorista se mostravam simpáticos e falantes, embalando o diálogo,
esquecendo a rotina turística e as funções temporárias de cada um.
continua...
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