quinta-feira, 10 de outubro de 2024

da Bolívia ao Piauí (via Bolívia, Peru, AM, PA, MA, PI) parte (4/7)

 ...continuação

Andei horrores pelo traçado quadriculado da cidade de Iquitos, sempre atento aos moto-táxis cobertos e naturalmente ventilados, mas também aos chamativos ônibus de Iquitos, construídos a partir de chassis de velhos caminhões e cobertos por carroceria de madeira, a fim de evitar o calor excessivo que os metais provocariam.

Alguns jovens me abordavam em inglês para vender pacotes turísticos na selva, daqueles pacotes xoxos e previsíveis aos turistas do hemisfério norte. Ao informá-los que eu era brasileiro e que já tinha explorado os meandros da floresta amazônica no Brasil eles retiravam a fantasia de vendedor e passavam a conversar despreocupadamente em castelhano, como se eu fosse amigo e não cliente em potencial.

Longe da orla turística, e principalmente dos turistas que sempre repetem os mesmos lugares recomendados na internet, almocei em cevicheria típica peruana, frequentado por casais, amigos e famílias locais. No cardápio reduzido e bem específico fui de ceviche de peixes com arroz de mariscos. Muito bom, na quantidade e na qualidade, além do serviço eficiente e simpático.

Nos ambientes autenticamente peruanos de Iquitos, e frequentados basicamente por peruanos, predominava música mestiça, com forte influência caribenha. Era fruto provavelmente da herança africana presente no Peru, de modo não tão marcante como no Brasil, mas evidente pela alegria, ritmo contagiante e dançante. Bem diferente das canções andinas ouvidas no altiplano, caracterizadas pelos dramalhões e tragédias amorosas.

Domingo à noite, ainda mais gente pelas ruas e praças que na noite de sábado. Gente andando, comendo, beliscando, conversando, usando e abusando dos espaços públicos e gratuitos, se relacionando com outros moradores e visitantes.


Não me cansava de observar o trânsito de Iquitos. Mesmo à noite, impressionante a ciranda de centenas de moto-táxis cobertos e para dois passageiros circulando pelas ruas. Eram batalhões deles, uns atrás e ao lado dos outros, causando ruídos insanos.

Pela manhã, caminhei no sentido do bairro de Belén, na zona sul de Iquitos, região erguida, na maior parte, sobre a várzea fluvial. Antes, o imenso mercado, ou feira livre, a céu aberto e em lojas e mercados, abrangendo várias quadras, em todas as direções. Nas barracas, tendas, armazéns, se vendiam de tudo, inclusive milho preto, cigarros enrolados na frente dos fregueses a partir de fumo fresco, garrafadas e demais produtos para saúde, simpatias, oferendas, rituais. E, claro, produtos frescos, como frutas, verduras, legumes, grãos, carnes de peixe, de boi, de porco, de frango, entre outros tantos animais.

Avançando nos setores da feira, ou quebrando a leste, entrei no bairro propriamente dito de Belén, guardando moradias modestas, pobres, miseráveis, muitas sobre palafitas e interligadas por passarelas suspensas, a fim de conviver com as oscilações das águas fluviais. Muitas caindo aos pedaços, entre muita sujeira, moscas, mosquitos, lixo, esgotos fétidos a céu aberto. Na beira da água saíam embarcações de diferentes formas e tamanhos para as moradias flutuantes ou que contavam com acesso exclusivo pelas águas do lago em frente a Iquitos. Por ali, muito lixo e mau cheiro, em terra e nas águas, embora se afirmasse que a situação sanitária do município tenha melhorado muito nas últimas décadas.

Belén se tornava bairro perigoso fora dos horários das feiras. Policiais marcavam presença, em rondas, em postos fixos ou circulando a pé. Nas paredes e muros, clamores pela diminuição da violência, da criminalidade, da gravidez precoce. Enfim, bairro típico de país capitalista dependente, nada muito diferente das grandes, e algumas médias, cidades da América. No caso das palafitas e das passarelas suspensas que as interligam, eram similares às demais cidades nas margens fluviais da Amazônia brasileira, cujos níveis das águas oscilam intensamente conforme as estações do ano.

Ao retornar ao centro de Iquitos, repeti o bom restaurante do dia anterior. Dessa vez escolhi arroz temperado com pedaços de pato. Saborosíssimo. A travessa na qual vinha servida a refeição era oval e apertada. Foi uma luta para me equilibrar naquele espaço reduzido e não esparramar o arroz e o pato na mesa.

Principal cidade da Amazônia peruana, acessada somente por barcos ou aviões, apesar de contar com mais de quinhentos mil habitantes, Iquitos não tinha edifícios altos, espigões ou outras aberrações. Os seres humanos, moradores e visitantes, com cérebro e sangue nas veias, agradeciam de coração.

Entre os estrangeiros presentes na cidade, predominavam de maneira absoluta os estadunidenses. A maioria deles, vintões ou trintões. Seriam inocentes turistas ou teriam relação com as bases militares em território peruano? Ao pousar no aeroporto de Iquitos, reparei em aeronaves militares vindos daquele regime.


Voltei a ler O Século das Luzes, de Alejo Carpentier, livro deixado de lado na maior parte do tempo durante a intensa e fascinante viagem à Bolívia e ao Peru.

Naquela manhã, os estudantes das universidades próximas ao hotel desfilavam, marchavam, cantavam, gritavam. A movimentação fazia parte dos sessenta e dois anos da Universidade Nacional da Amazônia Peruana. Cada turma, cada departamento, caracterizado de acordo com a área de estudos, desfilava nas ruas. Durante uma semana as festas prosseguiriam, nas ruas e nos interiores da universidade.

Iquitos, pelo menos no centro e arredores, contava com calçadas ininterruptas, conservadas e seguras para andar. Era tremenda humilhação para as cidades amazônicas brasileiras. As raras calçadas existentes no Brasil apresentavam buracos fétidos, remendos, descontinuidades, tralhas mil, todas as dificuldades e perigos para seres humanos circularem. Por outro lado, em Iquitos abundavam cassinos e máquinas caça-níqueis. Não eram duas ou três casas, mas dezenas delas em cidade de porte médio. Casas ávidas pelos trouxas e estúpidos a jogarem o dinheiro e a vida fora.

Era dia de deixar a cidade. Tomei um daqueles interessantes, curiosos e eficazes moto-táxis, cobertos e para dois passageiros, ao porto da Enapu. Em ambiente limpo e funcional revistaram por alto minhas bagagens. Aguardei o embarque na lancha de dois andares. O de cima, mais caro e mais gelado, era reservado a estrangeiros.

A lancha partiu à tardinha. Na fileira de assentos à minha frente sentou casal de setentões amazonenses residente em São Paulo. A conversa engrenou e perdemos a noção do tempo em troca de informações de viagens pelos interiores do Brasil e o mundo afora.

No início da noite desci ao piso inferior para comprar o jantar, na base de arroz, feijão, perna de frango assado, água mineral e picolé de sobremesa.

Anoiteceu de vez e o ar condicionado agiu para gelar os ambientes, sobretudo o piso superior. Vesti a camiseta térmica de mangas longas e a jaqueta justa e impermeável. Me sentei no assento para relaxar e tentar dormir durante o trajeto que ocuparia toda a noite e a madrugada. O corpo ainda sentia frio. Apelei ao gorro, meu derradeiro item contra baixas temperaturas trazido na mochila de ataque. Enfiei na cabeça e cobri as orelhas. Meu corpo estava gelado pela estupidez do ar condicionado regulado de maneira despropositada.

O frio durante a noite e a madrugada foi indecente. A estupidez da temperatura do ar condicionado atingiu a insanidade. Outros passageiros apelaram a sacos plásticos, nas pernas, braços, cabeça.


Dormi, acordei, cochilei, troquei mil vezes de posição no assento com encosto reclinável.

Acordei de vez ao amanhecer, antes da penúltima parada da lancha, em Caballococha. Tomei chá gratuito bem quente para relaxar a musculatura contraída pelos efeitos do frio vindo do ar condicionado criminoso. À medida que clareava do lado do fora a situação trágica do frio interno se amenizava, mas muito lentamente. Foi servido diretamente nos assentos o café da manhã gratuito, na base de sanduíche de queijo e presunto e copo grande de café preto.

No meio da manhã a lancha atracou no porto da ilha de Santa Rosa. Eu e o casal amazonense nos esprememos no banco traseiro do moto-táxi coberto rumo ao centrinho da cidade a fim de dar baixa no passaporte no escritório da migração peruana. A chuva que começou fina pela manhã aumentou de volume. Embarcamos em canoa alongada e coberta, com motor de popa, para atravessar o rio Amazonas, como chamado no Peru, ou Solimões, como chamado no Brasil, com destino à cidade brasileira de Tabatinga. Chovia forte durante a travessia fluvial e ao desembarcar no porto do mercado.

Permanecemos um tempão no pequeno flutuante na espera de estiar. Mas eu estava em território brasileiro. Viva!

A chuva enfraqueceu levemente. Caminhei pelas passarelas de madeira ensopada e escorregadia em direção à terra firme, e finalmente ao hotel. Estendi no quarto os itens molhados pela chuva e fui ao porto da cidade para comprar a passagem do navio para Manaus.

O tempo estiara e pude caminhar pela cidade. Poucas mudanças desde minha última visita sete anos antes. Tabatinga continuava feia, largada às traças pelas sucessivas administrações municipais e estaduais. As calçadas, onde existiam, se encontravam arrebentadas, com buracos fundos às dezenas, mato crescido em toda parte, bares podres cheios de bêbados ameaçadores. Perambulando pelo centro da cidade almocei em restaurante por quilo de qualidade medíocre e frequência entristecida.

Mas que contraste abissal no atendimento entre os simpáticos, educados e prestativos bolivianos e peruanos, de um lado, e os frios, desinteressados e até bruscos brasileiros de outro! O país parecia em ruínas e o povo indiferente e apático em relação ao presente e com o que estava por vir no curto prazo.

Encerrei o interessante O Século das Luzes, de Alejo Carpentier. E comecei Literatura da Floresta: textos amazônicos e cultura latino-americana, livro de Lúcia Sá.

Saí cedo para jantar. Impressionante a poluição sonora em Tabatinga vinda dos bares, dezenas deles, ao longo das principais ruas, mas principalmente na longa e larga avenida da Amizade que leva, mais adiante, à cidade de Letícia, já na Colômbia. Parecia concurso de quem tinha o som mais alto e de repertório mais repugnante. Mas não era somente isso. A frequência decrépita, em grau etílico avançado, com vozes empapadas, no início de noite em dia útil de semana, berrava para as meninas que passavam na rua, na base de “vem cá”, “vamos se divertir”, “ei isso, ei aquilo”. Desanimador. Essa era Tabatinga, no Brasil, tão diferente das cidades bolivianas e peruanas visitadas, com praças cheias de gente diversificada e orgulhosa da própria cultura. Nem havia praça decente em Tabatinga. A que fora construída em frente à igreja matriz estava em ruínas, com mato crescido, bancos estraçalhados, lixo por toda parte, vazia de seres humanos. Horror dos horrores. Tabatinga era administrada por animais irracionais que, na maioria dos casos, nem sequer moravam na cidade, péssimo exemplo de descaso urbano que se refletia na imensa maioria dos moradores.

Levantei e me empanturrei no saboroso, variado e abundante café da manhã do simplório hotel brasileiro. Fui ao porto de Tabatinga caminhando sobre os restos de calçadas.

Pouca gente na fila do navio. Lentamente os passageiros foram cumprindo as etapas para o embarque. Cadastramento na polícia federal, etiquetagem das bagagens e dos passageiros na base de pulseira impermeável, vistoria praticamente nula das bagagens, apenas da passagem e do documento e, finalmente, o embarque no meio da manhã.


Fui designado à suíte ampla, com cama de casal, ar condicionado, televisor que se manteve desligado durante todo o trajeto fluvial, banheiro privativo espaçoso e sacada coberta, com janelona de vidro de correr, de frente para a paisagem em evolução e para o vento refrescante.

No mesmo piso os passageiros escolhiam os melhores pontos para armar as redes. No piso superior, também reservado às redes, e à cabine de comando, mais espaço e menos procura entre os passageiros embarcados em Tabatinga.

Entre os passageiros brasileiros, grupo de jovens pertencentes à organização de missionários religiosos, não ligados oficialmente, segundo o integrante carioca, a nenhuma denominação específica, ou seja, a nenhuma corporação evangélica em particular, mas todos representantes do cristianismo. Ele garantiu que no trabalho do grupo nada tinha de forçado ou impositivo. Sei. Me engana que eu gosto. Na prática mais uma frente de ataque das empresas do fundamentalismo religioso a traficar com a fé do povo, urbano, rural, indígena.

No começo da tarde o navio zarpou com cerca de um terço da capacidade de passageiros. Inicialmente deixou o rio Solimões para subir parte do rio Javari, rumo à cidade de Benjamin Constant, a primeira parada para desembarque e embarque, de mercadorias e passageiros.

No jantar servido antes de escurecer tomei bastante sopa de macarrão, carne, batata, acrescida na mesa com farinha de mandioca para engrossar. Suco artificial à vontade para hidratar e lavar o organismo.

O navio já deixara para trás o rio Javari e retomara o curso no Solimões, de baixada, a favor da correnteza. Parada em São Paulo de Olivença à meia noite.

Levantei com chuva antes de clarear. Amaturá, a cidade bonitinha da visita anterior, se aproximava. Três apitos da buzina foram acionados pelo comando da embarcação. Observando a altura da escadaria da orla da cidadezinha, o Solimões se encontrava mais cheio que sete anos antes.

O bufê do café da manhã ofereceu mamão, macaxeira cozida, copinho com salsicha picada e temperada, suco artificial, pão com margarina, que peguei dois, café com leite. Empurrei tudo goela abaixo, com dificuldades na macaxeira seca e na salsicha.

Em viagens de baixada como aquela, a favor da corrente fluvial, as embarcações buscam a correnteza, o canal principal do rio, para economizar motores e combustível, se posicionando, na maior parte do tempo, distante das margens. Daí pouco ou nada para ver em rio tão largo como o Solimões, a não ser nas paradas intermediárias.

continua...

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