...continuação
Pela manhã subi em barco rumo à ilha da Lua, no meio das
águas do lago Titicaca.
Assim que o barco contornou a última ponta do continente,
eis que surgiu ao fundo, à direita, esplêndido, imponente, adiante das águas
azuis do lago, o nevado Illampu, contando com seis mil trezentos e trinta e um
metros de altitude. De base ampla, aquela montanha sempre me atraiu para
circuito de caminhada durante sete dias ao redor dela a partir da cidade de
Sorata.
O barco atracou na ilha da Lua. Desembarquei para observar
as ruínas do templo inca das Virgens, ou Iñaq Uyu. Valeu mais pelas
contemplações sem fim do Illampu.
Novo embarque, rumo à ilha do Sol, para atracar no cais
Huacani. Almocei comida típica do camponês do altiplano boliviano, o Apthapi, similar àquele experimentado no
salar de Uyuni. Mais barco para contornar a ponta da ilha do Sol e atracar em porto
onde havia a ruína do templo inca Pilkokaina.
Subi a encosta atrás do templo até atingir a trilha quase
em nível. O caminho margeava terraços para plantação de milho, batatas, entre
outras culturas, na fase da semeadura umas, na de colheita outras. Casinhas
esparsas, pousadas simples para turistas, indicavam a aproximação do principal
vilarejo da ilha do Sol, Yumani. Carneiros e lhamas pastavam livremente nas
encostas. Agricultores produziam alimentos em pequenas propriedades. Do lado
leste, as águas escandalosamente azuis do lago Titicaca e, mais adiante, ele,
sempre ele, o nevado Illampu e a cordilheira dos Andes.
Após mais de uma hora de caminhada leve e
deslumbrantemente cênica entrei na hospedagem composta por chalés bem dispostos
na encosta voltada para o leste, com direito a vista das plantações em
terraços, das águas azuis do lago Titicaca e dele, do nevado Illampu.
Tomei enorme xicara de chá de muña, preparado a partir de infusão das folhas. A muña servia para atenuar eventuais problemas com a altitude, aumentando a oxigenação do sangue, e também para problemas digestivos e intestinais, ainda mais no caso da ilha do Sol a três mil e oitocentos metros de altitude.
Não havia sistema de calefação na hospedagem, apenas
dispositivos ecológicos de aquecimento do ambiente, aproveitando e armazenando,
de uma forma ou de outra, o calor da luz solar presente durante todo o dia.
O ponto mais quente da hospedagem, como não poderia deixar
de ser, era a sala onde serviam as refeições. Os poucos hóspedes se
concentravam lá a maior parte do tempo ocioso. O jantar veio de sopa de
legumes, truta grelhada com legumes e batatas, maçã assada no forno. Para
beber, infusão refrescante de muña.
Antes de voltar ao chalé a recepção forneceu bolsa de água
quente a ser colocada sob as cobertas, junto às pernas, num prenúncio de como
seriam as temperaturas noturnas em quarto sem calefação.
Entrei sob todas as cobertas, mais a bolsa de água quente
e tentei adormecer.
Sob o edredom a temperatura era até que suportável, me
permitindo dormir por uns tempos. Durante a madrugada fui ao banheiro sob o
frio de trincar ossos. O ar do quarto estava gelado. O sistema ecológico de
retenção de calor do sol, apesar das melhores das intenções com o meio
ambiente, com o planeta, com a humanidade, não funcionava. A bolsa de água
quente, colocada entre as pernas, há tempos que não estava mais quente. Ao sair
da cama, me enrolava nos tecidos que vinham às mãos. Cobria cabeça, pescoço,
pernas e o que mais eu conseguia a fim de não congelar entre a cama e o banheiro.
Pela manhã, corri à sala de refeições para não congelar no chalé. Tomei o saboroso e farto café da manhã cuja maioria dos itens era preparada na hora. Vinham fresquinhos, quentinhos, deliciosos.
Desci a trilha ao cais da beira do lago. Margeei as três
saídas de água da chamada fonte da Juventude, Baixei os degraus da longa
escadaria guardada, aos pés, por duas divindades incas, mulher e homem, na
forma de esculturas coloridas, já no nível do atracadouro dos barcos sobre as
águas do lago Titicaca. E embarquei no porto de Yumani de volta ao continente,
à cidade de Copacabana.
Almocei e caminhei ao ponto de ônibus em Copacabana.
Depois de formalidades burocráticas da empresa, preenchendo formulários,
embarquei em ônibus de linha regular com destino a Puno, cidade peruana na
margem do mesmo lago Titicaca.
Meia hora depois da partida de Copacabana o ônibus parou
na fronteira internacional. Os passageiros caminharam cumprindo as etapas
migratórias. Saída na migração boliviana, carimbo do passaporte, controle da
alfândega boliviana, troca dos bolivianos remanescentes em soles e, finalmente,
a entrada em território do Peru.
O ônibus vinha lotado de turistas jovens do hemisfério
norte, mochileiros, todos com rostinhos de filhinhos do papai, bem alimentados,
bem cuidados, bem financiados, muito diferentes dos autênticos mochileiros de
décadas antes. Exceções havia, é claro, como o casal equatoriano que voltava
para casa por terra. Muito jovem, talvez europeia, de olhos bem azuis e
expressão levemente abobada, a turista sentada ao meu lado se recusou a
conversar, mantendo o olhar vidrado para frente.
No meio da tarde o ônibus entrou no terminal terrestre de Puno. Peguei moto-taxi coberto e fechado, com assentos atrás para duas pessoas. Puno, revisitada quarenta e um anos depois, crescera, mas continuava entre cinzenta e acastanhada, sem belezas urbanísticas. As águas do lago Titicaca se encontravam afastadas do centro antigo da cidade. Situada a três mil e novecentos metros de altitude, a cidade era bem fria e fustigada por ventos gelados vindo do lago e das montanhas nevadas não distantes dali.
Apesar das pouquíssimas opções oferecidas no bufê do café
da manhã do hotel, caiu bem demais da conta. Tracei cinco pães, de formato
irregular e pouco fermento, com manteiga e queijo, suco de manga e suco de
laranja, encerrando com chá de camomila. O minúsculo salão comportava apenas
duas mesas e não havia mais ninguém.
Dei extensa volta pela cidade, incluindo a praça Mayor,
com a catedral pesadona e suntuosa, em preparos para festividades, o parque
Pino, praça pequena e sempre prestigiada pelos moradores. Estiquei por ruas e
avenidas, até o porto de Puno. Na orla do lago Titicaca, extenso calçadão,
limpo, bem cuidado e com bancos para sentar, relaxar, contemplar, conversar.
Vendedores de pacotes às ilhas do lago assediavam, sem insistir ou sufocar.
Os peruanos de Puno tinham tez mais escura que os
bolivianos do outro lado da fronteira e vestiam roupas mais sóbrias. Mais
atraentes que as bolivianas, elas exalavam discreta sensualidade. As mulheres
maduras, vestidas a caráter, com trajes andinos, saiões, chapéu coco, tranças
longas, se assemelhavam bastante às bolivianas.
A despeito da ausência de arquitetura ou de urbanismo
marcantes e vistosos, ao andar pelo centro e arredores da beira do lago
Titicaca, Puno agradava aos olhos. Auxiliava significativamente aquela
impressão a sensação de liberdade de viajar sem guias, roteiros, prazos,
destinos marcados. Nada como circular por conta própria, por onde queria, no
meu jeito e no meu ritmo.
Jantei o excelente lomo
saltado com arroz e batatas, precedida de dose de pisco. Em ambiente
clássico, aconchegante e aquecido, a proprietária setentona e sisuda costumava
cercar insistentemente os fregueses no momento de escolher os pratos e bebidas.
Eventualmente intervinha na mesa até mesmo durante a refeição. Era o jeito
dela. Mas jamais chegava a sufocar ou impor nada. Apenas sugeria com excesso de
ênfase. Era questão de sorrir, se esquivar para o que desejava e seguir em
frente. Eu a driblei elegantemente, retirei sorriso daquele rosto amassado e,
ao pedir a conta, até recebi outra dose de pisco como cortesia.
Dei volta rápida pelo calçadão principal do centro antigo,
o peatonal, Fazia frio cortante e
intenso, mas minhas roupas, inclusive gorro e luvas, me protegiam à altura.
Muita gente nas ruas, calçadas e praças, prestigiando espaços públicos,
democráticos e gratuitos. Apesar das baixíssimas temperaturas, as sorveterias
funcionavam normalmente e os peruanos afluíam em massa, chegando a formar
pequenas filas.
Pela manhã acompanhei a linha do trem no sentido de quem
deixa a cidade. Atingi o lago Titicaca em outro ponto. Observei e contemplei os
arredores, refletindo sobre um pouco de tudo. Estava na outra ponta do longo
calçadão da orla do lago que se iniciava no porto. Naquele trecho o calçadão se
alargava e virava parque linear. Do outro lado da avenida, a Universidade
Nacional do Altiplano.
Assisti à passagem do trem para Cuzco, não o comum e
regular, mas o que cobrava preços absurdamente altos para pensão completa e
parada noturna para os passageiros dormirem fora dos vagões. Pouquíssimos
passageiros ousaram desembolsar a fortuna impagável para meros mortais. Aquela
opção, voltada para turistas milionários, bilionários ou insanos, contudo,
servia para arrecadar fundos para o turismo peruano. Tiravam de quem tem muito.
Certíssimo!
Jantei maravilhosamente em restaurante com frequência
exclusiva de peruanos. Os ditos gringos alternativos, completamente diferentes
dos autênticos mochileiros de décadas passadas, jamais arriscariam
estabelecimentos não recomendados pelos influenciadores e, aquele ainda pior, pois
frequentado apenas pelos nativos, dos quais os gringos preferiam a distância.
Esnobei Cuzco e Machu Pichu, locais visitados em minhas duas primeiras visitas ao Peru. Tomei o rumo de Iquitos, na Amazônia peruana.
As partes da manhã e da tarde daquele dia, entre a origem
e o destino do meu deslocamento geográfico, apresentaram os absurdos contrastes;
Em Puno, altiplano, -2 graus, 3.900 metros de altitude, 15% de umidade do ar.
Em Iquitos, Amazônia, +32 graus, 150 metros de altitude, 80% de umidade do ar.
Não havia aeroporto em Puno. O dono do hotel estava na
recepção para me orientar no deslocamento para o aeroporto da cidade de
Juliaca. Amanhecia. Debaixo de frio glacial nos dirigimos ao escritório da
transportadora que ainda se encontrava fechado. Entrei e permaneci dentro de
veículo estacionado em frente. Serviu apenas para aguardar a perua definitiva. E
porque ficar na calçada sob a temperatura de dois graus negativos seria
desumano. Finalmente apareceu o veículo, já com outros passageiros sentados, e embarquei.
O trajeto durou cerca de uma hora por estrada cruzando
zonas planas, de mais altitudes que Puno, semiáridas, pouco habitadas, tendo
colinas ao fundo. Juliaca era cidade empoeirada, de tamanho médio, revelando
casas e demais construções com tijolos à vista.
Juliaca saiu dos mapas no ano anterior quando dezoito
pessoas foram assassinadas pelas forças de repressão política. Intensas
manifestações protestavam contra o golpe de Estado que derrubara o presidente
democraticamente eleito, Pedro Castillo, e impunha ao povo peruano regime
ilegítimo e autoritário. O macabro episódio urbano ficou conhecido como o
massacre de Juliaca.
Durante o voo avistei pico que exalava fumaça preta e
espessa, denunciando provável vulcão em erupção. Mais adiante, vista privilegiada
e desimpedida da cordilheira dos Andes. Montanhas altas, encostas íngremes,
vales profundos, alguns picos e cristas nevadas e isoladas.
Ao sobrevoar a Amazônia peruana, o tempo abriu de vez e a
paisagem se descortinou. Verde denso da floresta, rios largos e caudalosos,
entre eles, evidentemente, o rio Amazonas. Raras e pequenas clareiras na
floresta. A despeito de cenários conhecidos e tantas vezes contemplados em
viagens anteriores pela Amazônia brasileira, aquela paisagem verde da floresta
e dos rios sinuosos me emocionou mais que as estupendas montanhas nevadas da
cordilheira.
O avião pousou em Iquitos em pista cercada pela floresta
amazônica, parcialmente preservada.
Do lado de fora do aeroporto tomei o famoso moto-táxi de
Iquitos, simples, eficaz, coberto e aberto na frente e nos lados, ao contrário,
por motivos óbvios, dos moto-táxis fechados da gelada Puno. Longo trajeto ao
centro da cidade, ao lado de incontáveis outros moto-táxis, ziguezagueando
pelas ruas e avenidas largas.
No quarto do hotel comecei a reorganizar a mala, escondendo em compartimentos bem apertados as roupas de frio e resgatando do fundo os itens de calor. Afinal, somente naquele dia, eu trocara Puno, cidade a dois graus negativos, por Iquitos, a trinta e dois graus positivos.
Na mesa ao lado do restaurante do jantar, quatro
estadunidenses se vangloriavam entre si das próprias sexualidades, e das
respectivas esposas que ficaram lá no regime terrorista ao norte do México, bem
comportadas, segundo a ingenuidade deles. Em dado momento encostou moto-táxi de
onde dois peruanos sorriram em excesso para um dos quatro gringos. Sorriam de
maneira pegajosa enquanto o gringo os ignorava solenemente. Mesmo assim os dois
peruanos não desgrudavam dali. Olharam fundo quando um dos quatro estadunidenses
abriu a carteira para pagar a conta. Algo não cheirava nada bem naquele
conjunto. Me bateu a dúvida de quem mais explorava quem na história entre os
seis. Nada era o que parecia. Em se tratando da origem dos quatro sentados
imaginei o pior dos cenários.
Tanto na orla fluvial, com calçadas largas de ambos os
lados da rua, como no calçadão paralelo à orla, ou na ampla Plaza de Armas, os
peruanos passeavam e viviam a noite ao ar livre, em casais, amigos, famílias,
sozinhos, prestigiando espaços públicos e democráticos. O policiamento peruano
se fazia presente, para intervir em qualquer eventualidade, que não parecia
latente. Pontos, muitos pontos, à Bolívia e aos bolivianos, ao Peru e aos
peruanos. Humilhavam a maioria dos espaços similares no Brasil, normalmente
negligenciados e abandonados pela população, que era induzida a se idiotizar
nos xópins, e por causa disso entregava os espaços públicos a dependentes
químicos, moradores de rua e afins.
Saí de manhã cedo para caminhar, apreciar a cidade de Iquitos
e a orla fluvial. Ao redor da Plaza de Armas, e da beira do rio Amazonas, na
verdade lagoa a partir das águas dos rios Itaya e Nanay, mais acima,
construções antigas, da virada do século XIX para o XX, em meio a novidades
quadriculadas, cheias de vidro e concreto. A jusante da orla fluvial urbanizada,
a planície alagável da lagoa, habitações e comércios flutuantes sobre grossas
ripas de madeira resistente à água. Famílias ali viviam em casas de madeira e
tetos metálicos, amontoadas, sem ventilação natural. Mais ao sul do centro
havia enorme concentração dessas favelas que, desgraçadamente, atraíam
visualmente pela precariedade. Era o famoso e extenso bairro
de Belén.
continua...
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