segunda-feira, 7 de outubro de 2024

da Bolívia ao Piauí (via Bolívia, Peru, AM, PA, MA, PI) parte (3/7)

 ...continuação

Pela manhã subi em barco rumo à ilha da Lua, no meio das águas do lago Titicaca.

Assim que o barco contornou a última ponta do continente, eis que surgiu ao fundo, à direita, esplêndido, imponente, adiante das águas azuis do lago, o nevado Illampu, contando com seis mil trezentos e trinta e um metros de altitude. De base ampla, aquela montanha sempre me atraiu para circuito de caminhada durante sete dias ao redor dela a partir da cidade de Sorata.

O barco atracou na ilha da Lua. Desembarquei para observar as ruínas do templo inca das Virgens, ou Iñaq Uyu. Valeu mais pelas contemplações sem fim do Illampu.

Novo embarque, rumo à ilha do Sol, para atracar no cais Huacani. Almocei comida típica do camponês do altiplano boliviano, o Apthapi, similar àquele experimentado no salar de Uyuni. Mais barco para contornar a ponta da ilha do Sol e atracar em porto onde havia a ruína do templo inca Pilkokaina.

Subi a encosta atrás do templo até atingir a trilha quase em nível. O caminho margeava terraços para plantação de milho, batatas, entre outras culturas, na fase da semeadura umas, na de colheita outras. Casinhas esparsas, pousadas simples para turistas, indicavam a aproximação do principal vilarejo da ilha do Sol, Yumani. Carneiros e lhamas pastavam livremente nas encostas. Agricultores produziam alimentos em pequenas propriedades. Do lado leste, as águas escandalosamente azuis do lago Titicaca e, mais adiante, ele, sempre ele, o nevado Illampu e a cordilheira dos Andes.

Após mais de uma hora de caminhada leve e deslumbrantemente cênica entrei na hospedagem composta por chalés bem dispostos na encosta voltada para o leste, com direito a vista das plantações em terraços, das águas azuis do lago Titicaca e dele, do nevado Illampu.


Tomei enorme xicara de chá de muña, preparado a partir de infusão das folhas. A muña servia para atenuar eventuais problemas com a altitude, aumentando a oxigenação do sangue, e também para problemas digestivos e intestinais, ainda mais no caso da ilha do Sol a três mil e oitocentos metros de altitude.

Não havia sistema de calefação na hospedagem, apenas dispositivos ecológicos de aquecimento do ambiente, aproveitando e armazenando, de uma forma ou de outra, o calor da luz solar presente durante todo o dia.

O ponto mais quente da hospedagem, como não poderia deixar de ser, era a sala onde serviam as refeições. Os poucos hóspedes se concentravam lá a maior parte do tempo ocioso. O jantar veio de sopa de legumes, truta grelhada com legumes e batatas, maçã assada no forno. Para beber, infusão refrescante de muña.

Antes de voltar ao chalé a recepção forneceu bolsa de água quente a ser colocada sob as cobertas, junto às pernas, num prenúncio de como seriam as temperaturas noturnas em quarto sem calefação.

Entrei sob todas as cobertas, mais a bolsa de água quente e tentei adormecer.

Sob o edredom a temperatura era até que suportável, me permitindo dormir por uns tempos. Durante a madrugada fui ao banheiro sob o frio de trincar ossos. O ar do quarto estava gelado. O sistema ecológico de retenção de calor do sol, apesar das melhores das intenções com o meio ambiente, com o planeta, com a humanidade, não funcionava. A bolsa de água quente, colocada entre as pernas, há tempos que não estava mais quente. Ao sair da cama, me enrolava nos tecidos que vinham às mãos. Cobria cabeça, pescoço, pernas e o que mais eu conseguia a fim de não congelar entre a cama e o banheiro.


Pela manhã, corri à sala de refeições para não congelar no chalé. Tomei o saboroso e farto café da manhã cuja maioria dos itens era preparada na hora. Vinham fresquinhos, quentinhos, deliciosos.

Desci a trilha ao cais da beira do lago. Margeei as três saídas de água da chamada fonte da Juventude, Baixei os degraus da longa escadaria guardada, aos pés, por duas divindades incas, mulher e homem, na forma de esculturas coloridas, já no nível do atracadouro dos barcos sobre as águas do lago Titicaca. E embarquei no porto de Yumani de volta ao continente, à cidade de Copacabana.

Almocei e caminhei ao ponto de ônibus em Copacabana. Depois de formalidades burocráticas da empresa, preenchendo formulários, embarquei em ônibus de linha regular com destino a Puno, cidade peruana na margem do mesmo lago Titicaca.

Meia hora depois da partida de Copacabana o ônibus parou na fronteira internacional. Os passageiros caminharam cumprindo as etapas migratórias. Saída na migração boliviana, carimbo do passaporte, controle da alfândega boliviana, troca dos bolivianos remanescentes em soles e, finalmente, a entrada em território do Peru.

O ônibus vinha lotado de turistas jovens do hemisfério norte, mochileiros, todos com rostinhos de filhinhos do papai, bem alimentados, bem cuidados, bem financiados, muito diferentes dos autênticos mochileiros de décadas antes. Exceções havia, é claro, como o casal equatoriano que voltava para casa por terra. Muito jovem, talvez europeia, de olhos bem azuis e expressão levemente abobada, a turista sentada ao meu lado se recusou a conversar, mantendo o olhar vidrado para frente.


No meio da tarde o ônibus entrou no terminal terrestre de Puno. Peguei moto-taxi coberto e fechado, com assentos atrás para duas pessoas. Puno, revisitada quarenta e um anos depois, crescera, mas continuava entre cinzenta e acastanhada, sem belezas urbanísticas. As águas do lago Titicaca se encontravam afastadas do centro antigo da cidade. Situada a três mil e novecentos metros de altitude, a cidade era bem fria e fustigada por ventos gelados vindo do lago e das montanhas nevadas não distantes dali.

Apesar das pouquíssimas opções oferecidas no bufê do café da manhã do hotel, caiu bem demais da conta. Tracei cinco pães, de formato irregular e pouco fermento, com manteiga e queijo, suco de manga e suco de laranja, encerrando com chá de camomila. O minúsculo salão comportava apenas duas mesas e não havia mais ninguém.

Dei extensa volta pela cidade, incluindo a praça Mayor, com a catedral pesadona e suntuosa, em preparos para festividades, o parque Pino, praça pequena e sempre prestigiada pelos moradores. Estiquei por ruas e avenidas, até o porto de Puno. Na orla do lago Titicaca, extenso calçadão, limpo, bem cuidado e com bancos para sentar, relaxar, contemplar, conversar. Vendedores de pacotes às ilhas do lago assediavam, sem insistir ou sufocar.

Os peruanos de Puno tinham tez mais escura que os bolivianos do outro lado da fronteira e vestiam roupas mais sóbrias. Mais atraentes que as bolivianas, elas exalavam discreta sensualidade. As mulheres maduras, vestidas a caráter, com trajes andinos, saiões, chapéu coco, tranças longas, se assemelhavam bastante às bolivianas.

A despeito da ausência de arquitetura ou de urbanismo marcantes e vistosos, ao andar pelo centro e arredores da beira do lago Titicaca, Puno agradava aos olhos. Auxiliava significativamente aquela impressão a sensação de liberdade de viajar sem guias, roteiros, prazos, destinos marcados. Nada como circular por conta própria, por onde queria, no meu jeito e no meu ritmo.

Jantei o excelente lomo saltado com arroz e batatas, precedida de dose de pisco. Em ambiente clássico, aconchegante e aquecido, a proprietária setentona e sisuda costumava cercar insistentemente os fregueses no momento de escolher os pratos e bebidas. Eventualmente intervinha na mesa até mesmo durante a refeição. Era o jeito dela. Mas jamais chegava a sufocar ou impor nada. Apenas sugeria com excesso de ênfase. Era questão de sorrir, se esquivar para o que desejava e seguir em frente. Eu a driblei elegantemente, retirei sorriso daquele rosto amassado e, ao pedir a conta, até recebi outra dose de pisco como cortesia.

Dei volta rápida pelo calçadão principal do centro antigo, o peatonal, Fazia frio cortante e intenso, mas minhas roupas, inclusive gorro e luvas, me protegiam à altura. Muita gente nas ruas, calçadas e praças, prestigiando espaços públicos, democráticos e gratuitos. Apesar das baixíssimas temperaturas, as sorveterias funcionavam normalmente e os peruanos afluíam em massa, chegando a formar pequenas filas.

Pela manhã acompanhei a linha do trem no sentido de quem deixa a cidade. Atingi o lago Titicaca em outro ponto. Observei e contemplei os arredores, refletindo sobre um pouco de tudo. Estava na outra ponta do longo calçadão da orla do lago que se iniciava no porto. Naquele trecho o calçadão se alargava e virava parque linear. Do outro lado da avenida, a Universidade Nacional do Altiplano.

Assisti à passagem do trem para Cuzco, não o comum e regular, mas o que cobrava preços absurdamente altos para pensão completa e parada noturna para os passageiros dormirem fora dos vagões. Pouquíssimos passageiros ousaram desembolsar a fortuna impagável para meros mortais. Aquela opção, voltada para turistas milionários, bilionários ou insanos, contudo, servia para arrecadar fundos para o turismo peruano. Tiravam de quem tem muito. Certíssimo!

Jantei maravilhosamente em restaurante com frequência exclusiva de peruanos. Os ditos gringos alternativos, completamente diferentes dos autênticos mochileiros de décadas passadas, jamais arriscariam estabelecimentos não recomendados pelos influenciadores e, aquele ainda pior, pois frequentado apenas pelos nativos, dos quais os gringos preferiam a distância.

Esnobei Cuzco e Machu Pichu, locais visitados em minhas duas primeiras visitas ao Peru. Tomei o rumo de Iquitos, na Amazônia peruana.

As partes da manhã e da tarde daquele dia, entre a origem e o destino do meu deslocamento geográfico, apresentaram os absurdos contrastes; Em Puno, altiplano, -2 graus, 3.900 metros de altitude, 15% de umidade do ar. Em Iquitos, Amazônia, +32 graus, 150 metros de altitude, 80% de umidade do ar.

Não havia aeroporto em Puno. O dono do hotel estava na recepção para me orientar no deslocamento para o aeroporto da cidade de Juliaca. Amanhecia. Debaixo de frio glacial nos dirigimos ao escritório da transportadora que ainda se encontrava fechado. Entrei e permaneci dentro de veículo estacionado em frente. Serviu apenas para aguardar a perua definitiva. E porque ficar na calçada sob a temperatura de dois graus negativos seria desumano. Finalmente apareceu o veículo, já com outros passageiros sentados, e embarquei.

O trajeto durou cerca de uma hora por estrada cruzando zonas planas, de mais altitudes que Puno, semiáridas, pouco habitadas, tendo colinas ao fundo. Juliaca era cidade empoeirada, de tamanho médio, revelando casas e demais construções com tijolos à vista.

Juliaca saiu dos mapas no ano anterior quando dezoito pessoas foram assassinadas pelas forças de repressão política. Intensas manifestações protestavam contra o golpe de Estado que derrubara o presidente democraticamente eleito, Pedro Castillo, e impunha ao povo peruano regime ilegítimo e autoritário. O macabro episódio urbano ficou conhecido como o massacre de Juliaca.

Durante o voo avistei pico que exalava fumaça preta e espessa, denunciando provável vulcão em erupção. Mais adiante, vista privilegiada e desimpedida da cordilheira dos Andes. Montanhas altas, encostas íngremes, vales profundos, alguns picos e cristas nevadas e isoladas.

Ao sobrevoar a Amazônia peruana, o tempo abriu de vez e a paisagem se descortinou. Verde denso da floresta, rios largos e caudalosos, entre eles, evidentemente, o rio Amazonas. Raras e pequenas clareiras na floresta. A despeito de cenários conhecidos e tantas vezes contemplados em viagens anteriores pela Amazônia brasileira, aquela paisagem verde da floresta e dos rios sinuosos me emocionou mais que as estupendas montanhas nevadas da cordilheira.

O avião pousou em Iquitos em pista cercada pela floresta amazônica, parcialmente preservada.

Do lado de fora do aeroporto tomei o famoso moto-táxi de Iquitos, simples, eficaz, coberto e aberto na frente e nos lados, ao contrário, por motivos óbvios, dos moto-táxis fechados da gelada Puno. Longo trajeto ao centro da cidade, ao lado de incontáveis outros moto-táxis, ziguezagueando pelas ruas e avenidas largas.


No quarto do hotel comecei a reorganizar a mala, escondendo em compartimentos bem apertados as roupas de frio e resgatando do fundo os itens de calor. Afinal, somente naquele dia, eu trocara Puno, cidade a dois graus negativos, por Iquitos, a trinta e dois graus positivos.

Na mesa ao lado do restaurante do jantar, quatro estadunidenses se vangloriavam entre si das próprias sexualidades, e das respectivas esposas que ficaram lá no regime terrorista ao norte do México, bem comportadas, segundo a ingenuidade deles. Em dado momento encostou moto-táxi de onde dois peruanos sorriram em excesso para um dos quatro gringos. Sorriam de maneira pegajosa enquanto o gringo os ignorava solenemente. Mesmo assim os dois peruanos não desgrudavam dali. Olharam fundo quando um dos quatro estadunidenses abriu a carteira para pagar a conta. Algo não cheirava nada bem naquele conjunto. Me bateu a dúvida de quem mais explorava quem na história entre os seis. Nada era o que parecia. Em se tratando da origem dos quatro sentados imaginei o pior dos cenários.

Tanto na orla fluvial, com calçadas largas de ambos os lados da rua, como no calçadão paralelo à orla, ou na ampla Plaza de Armas, os peruanos passeavam e viviam a noite ao ar livre, em casais, amigos, famílias, sozinhos, prestigiando espaços públicos e democráticos. O policiamento peruano se fazia presente, para intervir em qualquer eventualidade, que não parecia latente. Pontos, muitos pontos, à Bolívia e aos bolivianos, ao Peru e aos peruanos. Humilhavam a maioria dos espaços similares no Brasil, normalmente negligenciados e abandonados pela população, que era induzida a se idiotizar nos xópins, e por causa disso entregava os espaços públicos a dependentes químicos, moradores de rua e afins.

Saí de manhã cedo para caminhar, apreciar a cidade de Iquitos e a orla fluvial. Ao redor da Plaza de Armas, e da beira do rio Amazonas, na verdade lagoa a partir das águas dos rios Itaya e Nanay, mais acima, construções antigas, da virada do século XIX para o XX, em meio a novidades quadriculadas, cheias de vidro e concreto. A jusante da orla fluvial urbanizada, a planície alagável da lagoa, habitações e comércios flutuantes sobre grossas ripas de madeira resistente à água. Famílias ali viviam em casas de madeira e tetos metálicos, amontoadas, sem ventilação natural. Mais ao sul do centro havia enorme concentração dessas favelas que, desgraçadamente, atraíam visualmente pela precariedade. Era o famoso e extenso bairro de Belén.

continua...

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