segunda-feira, 14 de outubro de 2024

da Bolívia ao Piauí (via Bolívia, Peru, AM, PA, MA, PI) parte (5/7)

 ...continuação

Na parada em Santo Antônio do Içá, os passageiros foram recebidos com gritarias histéricas do fundamentalismo evangélico, vindas dos alto-falantes do porto flutuante. Em local público, aos berros, o energúmeno vomitava textos mal decorados da bíblia, livro de ficção, escrito por seres humanos, portanto falível e de verdades questionáveis como qualquer outro livro. Dentro do navio, membros daquele grupo de missionários jovens embarcados em Tabatinga se maquiaram de palhaço e se dirigiam aos passageiros das redes para convertê-los ao fundamentalismo. Os traficantes da fé do povo, os comerciantes evangélicos, atuavam intensamente, sem freios ou legislação que garantisse o sossego e a liberdade de pensar e agir da população. Onde estavam os setores da sociedade que discordavam dessas práticas criminosas e defendiam o país laico e socialmente justo?

O bufê do almoço cedo veio de arroz, macarrão, frango assado, carne no molho, farinha, salada variada, goiabada com creme de leite, servida em copinhos minúsculos, suco artificial. Era paradoxal, mas servir peixes nas embarcações amazônicas virou raridade, para não dizer impossibilidade, na maioria dos percursos por mim realizados.

Parada na pequena Tonantins. Repetindo as paradas anteriores, soldados da polícia militar amazonense entraram e circularam por toda a embarcação, olhando tudo e todos, mas sem revistar bagagens pessoais.

Ao anoitecer pude ver indícios do encontro das águas escuras do rio Jutaí com as águas barrentas do Solimões. Em seguida o navio atracou na cidade de Jutaí, numa manobra apertada, sem espaço suficiente para o desembarque e o embarque.


Durante a madrugada a última parada prevista naquele trajeto fluvial, a cidade de Fonte Boa.

Amanheceu com belos efeitos arroxeados, avermelhados, alaranjados, amarelados, para o lado leste.

Durante o serviço de café da manhã, a copeira cinquentona acompanhava as canções evangélicas vindas dos alto-falantes do refeitório, programadas por ela mesma, provavelmente. Desrespeito total aos passageiros e a outros tripulantes que não compactuavam com o fundamentalismo religioso da distinta senhora. No entanto, menos mal, não notei alusões a fundamentalismos religiosos nas partes internas e externas do navio, diferentemente da quase regra revoltante em embarcações na Amazônia, inclusive nos próprios nomes de registro delas.

Devorava com avidez Literatura da Floresta: textos amazônicos e cultura latino-americana, de Lúcia Sá. A autora tratava da cosmogonia de quatro grandes grupos indígenas brasileiros e do aproveitamento dela na literatura e teatro latino-americanos. Destacou e analisou Macunaíma, de Mário de Andrade, I Juca Pirama, de Gonçalves Dias, Maíra, de Darcy Ribeiro e Meu Tio o Iauaretê, de Guimarães Rosa, Quarup, de Antônio Callado e Cobra Norato, de Raul Bopp, os espetáculos teatrais em Manaus nos anos 1970, pelo grupo liderado por Márcio Souza, o questionável O Falador, de Mario Vargas Llosa. Além de empolgante e instrutivo, o livro de Lucia Sá caía como luva naquele percurso pelo rio Solimões abaixo. Na sacada da suíte, de frente para o rio, lia o livro entre contempladas naquela paisagem tantas vezes percorrida em anos anteriores.

O navio atravessou furo ou canal estreito, entre ilhas no meio do rio. As margens muito próximas, a vegetação exuberante, aves cantando sinfonias estridentes, a natureza abraçando a embarcação e os passageiros, extasiaram a todos. Mesmo tendo presenciado cenas semelhantes tantas vezes, não pude deixar de me emocionar com aquele deslumbrante flagrante amazônico.

A embarcação passou ao lado de comunidade de cerca de trinta moradias, de madeira e sem acabamento. Ao redor de dez canoas a remo, pilotadas por crianças, se soltaram das casinhas e se aproximaram do navio na esperança de receber esmolas, comidas, presentes, lançadas pelos passageiros. Era versão resumida das cenas comuns no estreito de Breves, Pará.


Comecei a ler Na Corda Bamba – Memórias Ficcionais, de Daniel Aarão Reis. Ao longo da autobiografia, o texto mostra a importância de relembrar sempre os males causados pela ditadura militar implantada no Brasil a partir do golpe de Estado de 1964, sobretudo contra o povo brasileiro que se insurgiu contra ela.

Avistei, subindo o Solimões, a lancha Soberana, que deveria perfazer o trecho entre Manaus e Tabatinga em cerca de trinta e seis horas. Muito menos tempo que as embarcações lentas, como a em que eu navegava. Porém, muito, mas muito mesmo, mais desconfortável permanecer sentado em assentos nada anatômicos, sem a liberdade de circular à vontade, apreciar a paisagem com calma e de vários ângulos, dormir em cama ou rede, contar com refeitório em vez de comer naquelas minúsculas mesinhas de frente aos assentos, entre tantas desvantagens da lancha em comparação aos navios e barcos convencionais e lentos.

No começo da noite, parada no posto de fiscalização da polícia federal. Expectativas e suspense geral. As redes foram levantadas e assim amarradas. Os passageiros, encostados na grade de proteção, longe das bagagens. Os das suítes permaneceram de pé, ao lado das respectivas portas de entrada. Seis policiais, mais um mascarado e fortemente armado, circularam pelos quatro pisos da embarcação. Olharam, abriram bagagens aleatoriamente. No meu caso, um entrou, verificou a sacada e o banheiro e, em menos de um minuto, se deu por satisfeito. Três policiais, entretanto, entraram e saíram várias vezes na suíte ao lado da minha. Perguntaram coisas para os ocupantes, inspecionaram novamente e seguiram em frente. Quarenta minutos depois do início das operações agradeceram a todos, desejaram boa viagem e desembarcaram de volta ao posto policial flutuante.

Levantei cedo para o último café da manhã a bordo. Dois pães com margarina, fatias secas de banana, banana frita seca, macaxeira seca. Era a raspa do tacho no estoque de alimentos para os passageiros. O café com leite hidratou e, principalmente, ajudou a empurrar tanta secura para o estômago.

Acabei Na Corda Bamba – Memórias Ficcionais, de Daniel Aarão Reis, comovente libelo contra os horrores da ditadura militar brasileira.

Tive longa conversa no piso de Lazer com o passageiro tagarela embarcado em Benjamin Constant. Na verdade só ele falou sobre tudo o que lhe vinha à mente, como, por exemplo, planos de criar gado ou construir novas casas para herdar aos quatro filhos. A despeito da tagarelice, o trintão era laico, lúcido e sabia o que estava falando e fazendo, e por quê. Acusou a maioria do comércio em Benjamin Constant de lavagem de dinheiro obtido pelo tráfico de drogas, situação que, segundo ele, se repetia em Tabatinga. Questionava os fundamentalismos religiosos, em especial a facção que atuava principalmente no Peru, cujos membros vestiam roupas supostamente da época de Jesus Cristo, não tomavam banho, sonhando ser e viver, nas roupas e comportamentos, como os fundadores do cristianismo. Mesmo assim, os membros dessa seita, ainda segundo meu interlocutor, se imiscuíam no tráfico de drogas e lucravam com isso. E ele trocava de tema e não parava de falar. Astronomia, estilo de vida, trabalho, família, lazer, ciências, geografia, vulcões, terremotos, contato com etnias indígenas do vale do Javari, onde, como engenheiro, ele construiu posto de saúde e outras benfeitorias públicas, caça de animais silvestres, estórias de onças, antas, queixadas, sobre cultura de açaí, pupunha. E falava, falava, falava. Não era desagradável, mas meus ouvidos e minha capacidade de captação tinham limites.


A chamada para o último almoço daquele trajeto fluvial me salvou. No bufê do refeitório, além dos itens de sempre, pedaços empanados de pirarucu, bem comíveis. Milagre dos milagres servirem peixe nas refeições. E justamente na última daquele trajeto.

Nem bem o almoço terminara e o navio passava perto da cidade de Manacapuru.

No começo da tarde, o famoso encontro das águas barrentas do rio Solimões com as escuras do rio Negro. Ao fundo, a cinzenta cidade de Manaus. Nos pisos, passageiros fotografando ou filmando as cenas, na ansiosa expectativa da chegada.

Logo depois o navio atracou na estação hidroviária de Manaus. Retirei as bagagens da suíte, desci as escadas ao piso principal e desembarquei. Atravessei o longo percurso dentro da estação até a calçada da rua.

Me hospedei no hotel onde ficara inúmeras vezes.

O ar noturno do largo de São Sebastião queimava de tão quente. Dei voltas por ali. Apreciei o movimento dos bares antigos, boêmios, inclusive o mais afastado e frequentado por coroas e bebuns em geral, além de putas que trabalham na rua transversal.

Iniciei a comilança do café da manhã do hotel com duas tigelas cheias de granola, salada de frutas e iogurte. Intercalei com três copos de creme fresco de açaí. Segui com meia bengala recheada de manteiga e queijo. Finalizei com xícara de café preto, puro, sem leite, sem açúcar. Saí do salão em estado de graça, estufado, estupidamente feliz. Nas demais mesas, hóspedes principalmente a trabalho na cidade.

Caminhei o longo e familiar trajeto pela rua Joaquim Nabuco até a margem do rio Negro, na faixa entre o porto da Escadaria, ou Manaus Moderna e a estação hidroviária. Era, de longe, a região mais interessante e a mais amazônica da Manaus de concreto e asfalto. E saí de lá com o bilhete confirmado da passagem antecipada de navio para Santarém.

O sol no meio da manhã já massacrava a cabeça e o corpo.

Subi as escadas do centro da cidade para almoçar. Era restaurante simples, no segundo andar de construção velha e mal conservada, quase em frente ao prédio histórico da Alfândega e perto dos diversos portos fluviais. Me sentei em mesa alta, diante da vista parcial do rio Negro.

A caipirinha veio batida e coada, mas saborosa, bem temperada. Optei por caldeirada de tucunaré, acompanhada de arroz e pirão. Encerrei o almoço com o infalível suco de cupuaçu, impecavelmente delicioso.

Depois de circular para lá e para cá, por quase todo o centro velho de Manaus, percorrendo por dentro os infinitos corredores de comidas frescas e processadas do mercado da Manaus Moderna, o mercado da Banana, o mercado turístico Adolpho Lisboa, ainda encontrei forças para explorar a última balsa flutuante do porto da Escadaria, na beira do rio Negro, onde atracavam as embarcações que faziam a linha do rio Juruá, e satisfazer curiosidades.


À noite, os restaurantes do largo de São Sebastião, com mesinhas ao ar livre, próximos entre si, ofereciam música, e até danças, ao vivo, todos ao mesmo tempo, provocando geleia sonora incômoda. Como na noite anterior, verifiquei o movimento nos antológicos bares do próprio largo e da esquina com a rua das putas.

No dia seguinte desci lentamente a rua Lobo D’Almada, a que ferve de putas e puteiros à noite, mas que dormia profundamente naquela hora da manhã. Lá embaixo dobrei à direita, até o inicio da avenida 7 de Setembro, rumo ao mirante São Vicente, inaugurado havia dois meses. Antes, atravessei praça e ruazinhas estreitas, tranquilas e bucólicas, levemente arborizadas, ladeadas por casario e edifícios públicos da virada do século XIX para o XX. O mirante era construção de três andares, contendo bares, restaurantes, cafés, sorveterias, lanchonetes, bancos, plataforma para sentar, relaxar e apreciar a vista das águas escuras do rio Negro e de ambas as margens. Permaneci horas ali contemplando as águas negras do rio, parte da estação hidroviária à esquerda, a extensa ponte sobre o rio que liga Manaus às estradas rumo a Manacapuru, Iranduba e Novo Airão, as colinas do bairro de São Raimundo à direita.

Lentamente, buscando as calçadas sombreadas e menos tórridas, retornei ao largo de São Sebastião para almoçar. Passei em frente ao teatro Amazonas e me sentei em mesa externa do restaurante tão frequentado em viagens anteriores. Saboreei duas caipirinhas pequenas e bem temperadas, costela de tambaqui assado com baião, farofa e vinagrete. Encerrei mantendo o nível com o inatacável suco de cupuaçu.

À noite, seria extremamente difícil arranjar mesa em restaurantes por conta da data comercial, nada mais que comercial, do dia dos namorados. Sem fome fui de sorvete perto do centro comercial, região da cidade vazia de almas naquele começo de noite. Nem putas eu notei circulando por ali. A sorveteria estava aberta e funcionando, mas também às moscas. Tristeza total.

Almocei com casal amigo em restaurante típico amazonense no bairro de São Raimundo, nos altos e de frente para o rio Negro. Duas caipirinhas abriram o apetite para costela assada de tambaqui, sardinha frita, baião, vinagrete, farinha, banana seca, banana em calda. Coroei a lauta refeição com doce de abacaxi com queijo.

Comecei a ler o instigante Vida ao Vivo, livro mais recente de Ivan Ângelo.

continua...

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