segunda-feira, 21 de outubro de 2024

da Bolívia ao Piauí (via Bolívia, Peru, AM, PA, MA, PI) parte (7/7)

 ...continuação

Na parte da manhã tomei carro de aplicativo local, cópia bem copiada de aplicativo estrangeiro, até o porto na beira do Tapajós. O motorista, nissei paranaense, morara no Japão e lá conhecera a esposa, brasileira de Santarém. Retornaram ao Brasil para morar na cidade natal dela. Ele se deu bem com a família dela e o casamento corria às mil maravilhas. Mas câncer fulminante a levou em poucos meses. Ambientado na cidade e em boas relações com a família dela ele permaneceu por ali. Decidiu ser motorista para ganhar algum, se relacionar com gente e afastar a depressão que o assolava após a viuvez precoce. Falava sem parar. Na verdade desabafava com quem o ouvia com paciência. Ao final da corrida me agradeceu por tê-lo ouvido e pela oportunidade de se dirigir a alguém.

A tripulação ainda fazia a limpeza e a arrumação geral da embarcação que, estranhamente, partiria no mesmo dia da chegada. Normalmente os barcos permaneciam dias nos portos das extremidades do percurso para lavagem e organização geral.  Nenhuma suíte ou camarote se encontrava disponível. As expressões cansadas e irritadas dos tripulantes davam os primeiros sinais de navio mal administrado e mal comandado.

Com menos da metade da ocupação dos passageiros nos dois pisos para armação das redes, o navio partiu de um dos portos de Santarém. Permaneci um tempo no piso de Lazer, sob as estrelas e relâmpagos a oeste.

Encerrei O Boto, de Tadeu Sarmento. Era livro de aventura fantástica, embora o autor ameaçasse destrinchar um Brasil dilacerado pelo capitalismo, ONG’s, empresas evangélicas, entre outros fundamentalismos.


Comecei a ler Pagu – Vida e Obra, de Augusto de Campos. No livro o concretista esmiuçava a vida heroica e sofrida da personagem, além de presentear os leitores com as principais obras dela, de ficção e não ficção. Oportunidade de ouro para me familiarizar com Patrícia Galvão, a Pagu, personalidade marcante do Brasil do século XX, muito citada, mas pouquíssimo lida e estudada.

Retirei o lençol do beliche superior para servir de lençol de cima no beliche inferior, onde eu dormiria aquelas noites. Era de elástico e ficou perfeito, me protegendo feito saco de dormir. Nem saí da suíte para assistir a chegada e a partida na cidade de Monte Alegre. Tampouco acompanhei a parada antes do amanhecer em Prainha.

No café da manhã, pago à parte, sanduíche de presunto e queijo, café com leite, canjica ou mungunzá, maçã.

Sob o céu nublado e chuvoso, bandos de andorinhas faziam a festa ao redor do navio, entre acrobacias, voos rasantes, curvas fechadas, às vezes quase parando no ar, entre tantas brincadeiras ao som dos cantos de todas elas. Alegria total e exibição gratuita aos passageiros, pelo menos para aqueles que levantavam o focinho dos celulares para apreciar o espetáculo da natureza.

No meio da manhã os passageiros tiveram que suportar longa parada abaixo da cidade de Almeirim, em porto particular, para carregar itens de interesse do proprietário da embarcação. Aproveitei para comprar queijo coalho dos vendedores locais que subiam nos pisos do navio.

Logo a jusante de Almeirim ocorria a bifurcação, em meio a ilhas gigantescas, entre as rotas das embarcações que se dirigem ao sul da ilha de Marajó e a Belém e aquelas que seguem para o Amapá.

Parada noturna em Gurupá.

O dia clareou num dos inúmeros estreitos pertencentes ao labirinto de ilhas ao sul do arquipélago de Marajó. Chamava a atenção a maior quantidade de açaizeiros e aningas na beira das águas, embelezando ainda mais a paisagem com casinhas de madeira sobre as palafitas. O que sempre estragava as imagens e, sobretudo, a vida dos ribeirinhos, era a praga das empresas comerciais evangélicas, traficando com a fé do povo, o esmagando na miséria e na ignorância, fatores de manutenção do poder das classes dominantes.

Parada em Breves pela manhã.

Encerrei o essencial livro Pagu – Vida e Obra, de Augusto de Campos. Depois de virar a última página me aproximei mais da vida artística, militante e combativa de Patrícia Galvão, nome tão importante, mas injustamente desprezado e ignorado, na história política e cultural do Brasil. Emendei com a leitura de Autobiografia Precoce, de Pagu. Eu acessaria na fonte as ideias e as ações, as certezas e as inseguranças, além de mais obras e criações dela, Patrícia Galvão.

Durante longas horas permaneci sentado do lado da sombra no piso de Lazer. A largura e a amplidão inacreditável do rio espantavam os olhos, ao mesmo tempo em que provocavam sonolência. A modorra, a preguiça e o calor daquele horário da tarde, no entanto, foram quebrados por vendedores de creme de açaí, camarão e outros quitutes. Provenientes das margens, eles se aproximavam do navio em voadeiras. Laçavam os pneus de amortecimento lateral e embarcavam para vender as mercadorias, ou vendiam do barco mesmo, esticando os braços para entregar os produtos e receber o pagamento. Raramente voltavam às moradias ribeirinhas com mercadorias não vendidas.


Mais a jusante, em trecho estreito e curto, mulheres, somente mulheres, se aproximavam a bordo de canoas motorizadas ou a remo esperando doações dos passageiros, da mesma forma que no famigerado estreito de Breves. Do navio poucas doações foram lançadas nas águas dentro de sacos plásticos ou, com muita sorte, dentro das próprias canoas. Nesses trechos havia também casos de prostituição, embora, dessa vez, não notei mulher ou menina embarcar e desembarcar mais tarde. Várias igrejas evangélicas, aquelas empresas que traficam com a fé do povo, erguidas nos vilarejos de onde as mulheres vinham, provavelmente iriam embolsar parte ou tudo do que foi doado pelos bem intencionados passageiros dos navios em circulação. Assim, a alienação fundamentalista religiosa se fundia com a indústria da caridade na maior cara de pau.

Anoiteceu. O navio passou ao lado da iluminada cidade de Barcarena, atraindo os olhares de todos para tanta luz e tanto brilho.

Com muitas horas de atraso deliberado, o navio atracou em Belém tarde da noite.

Pela manhã, caminhei do bairro de Nazaré à beira da baía de Guajará para perambular pela zona do mercado Ver-O-Peso. Obras em andamento por ali, de melhorias e ampliação da Estação das Docas. Tapumes metálicos cobriam áreas consideráveis. Quiosques temporários foram improvisados para que o comércio se mantivesse vivo.

Encurtei a estadia em cidade grande que tanto explorara e que tanto me fascinara em viagens anteriores.

O ônibus saiu lotado ao anoitecer.

O trajeto atravessou de oeste e leste o norte do estado do Maranhão, possibilitando ver das janelas do ônibus as festas juninas a todo vapor nas cidadezinhas, como Santa Luzia do Paruá, Zé Doca, Araguanã. As administrações públicas não se cansavam de mutilar criminosamente as árvores em figuras geométricas ou temáticas, matando a vegetação e a as tão necessárias sombras.

Entre os passageiros do ônibus, a mulata clara, trintona, vinha acompanhada de gringo da mesma faixa etária. Embarcaram em Belém e conversavam em inglês. Ela, brasileira do norte ou nordeste. Ele, de país do hemisfério norte cuja língua nativa não era o inglês. Reparei que outros passageiros repararam neles e comentavam sei lá o quê. Parecendo se sentir culpada de algo, ela evitava o olhar de todos. Minhas suspeitas sem provas para explicar aquilo não eram das melhores.

Do lado de fora, a paisagem aplainada reservava babaçuais, cerrado, carnaubais, e trechos tristes de monocultura extensiva de capim ou algo similar. Nesse último caso, ao lado de silos enormes e de lojas de produtos agropecuários importados daquele regime terrorista ao norte do México.


No meio da tarde o ônibus embicou na estação rodoviária da piauiense Parnaíba, cidade também bastante explorada em viagens passadas.

Jantei no canteiro central da avenida São Sebastião. Mergulhei de cabeça em trezentos gramas de picanha fatiada, baião-de-dois, o cearense por ser mais cremoso, salada, farofa e vinagrete. E coroei o lauto jantar com jarra de suco de limão.

Li mais capítulos de Autobiografia Precoce, de Pagu. A cada linha mais eu me impressionava com a vida e, sobretudo, a qualidade da obra dessa brasileira única.

Caminhei quilômetros por vias entre a avenida São Sebastião e a margem esquerda do rio Igaraçu. Trecho silencioso da cidade que surpreendia pelo urbanismo eficaz e ausência de gente nas ruas e calçadas. Em construção, outra ponte sobre o rio Igaraçu, ligando, como a já existente, o centro de Parnaíba à Ilha Grande de Santa Izabel, à praia da Pedra do Sal, ao município de Ilha Grande, ao vilarejo de Tatus. Aquela grande volta me conduziu ao Porto das Barcas, centro histórico de Parnaíba, vazio, silencioso, tranquilo, na beira do rio.

Pela manhã, tomei o ônibus à praia do Coqueiro, no município de Luís Correia.

Já na praia caminhei bastante, avancei a ponta de pedras e atingi praia completamente vazia, em dia de maré baixa. Delícia das delícias. Eu, a areia, o mar, o farol da marinha mais atrás. E mais ninguém. Entrei no mar de águas límpidas, sob o céu azul e sem nuvens. A maré baixa garantia ondas inofensivas. Mergulhei, flutuei, nadei, fiquei de pé, deitei, sentei. Em varredura de trezentos e sessenta graus não se via mais nenhum ser humano. Aproveitei e fiquei como vim ao mundo, largando a sunga na areia seca. Entrei mais vezes naquelas águas mornas.

De volta à praia do Coqueiro entrei na barraca mais vistosa e relaxei o esqueleto. Tomei duas caipirinhas razoáveis preparada com cachaça piauiense. Para enganar bem o estômago, pedi espeto generosamente servido de camarões grandes, gratinados e empanados. Numa mesa próxima, três gerações se faziam presentes. Até aí nada de anormal. O degradante, inaceitável, repugnante, era a presença da empregada, explicitamente vestida de empregada. A única negra em mesa de branquelos, quase aloirados, cuidava de duas crianças mimadas, animalescas e mal encaradas. As duas gerações de adultos, dos pais e dos avós, desrespeitavam e humilhavam abertamente a empregada e babá. A mãe das crianças, trintona a quarentona, loira natural ou tingida, com o marido ao lado, me olhou interessada mais de uma vez, escancarando a hipocrisia e a falência da família burguesa tradicional. Jamais me envolveria com quem se comportava como senhora de escravas.


Acabei a leitura do ótimo Autobiografia Precoce, de Pagu, a Patrícia Galvão, livro que precisaria ser lido pelos interessados em artes e na história do Brasil.

Comecei a reler contos variados do mestre Lima Barreto e me deslumbrar com a realidade e a análises incrivelmente atuais do autor.

Na manhã seguinte tomei dois ônibus à praia da Pedra do Sal. Pelo trajeto, ao longo da ilha Grande de Santa Izabel, carnaubais belíssimos, sobre alagados, de ambos os lados da estrada. No ponto final, a ponta de pedras com o farol, a baía de águas mansas à esquerda, a baía de águas bravas à direita. Esta, visualmente prejudicada pela profusão de imensos coletores de energia eólica a perder de vista. Como de praxe, pouca gente, raras e esbagaçadas barracas de comes e bebes. E vento, muito vento, vento forte e constante.

Permaneci sentado durante horas sobre ripa de madeira disposta dentro de restos de barraca rústica e parcialmente coberta de folhas de palmeiras. Ninguém por ali. À minha frente, a paisagem da areia e do mar, sem fim. Vez ou outra eu avistava jangadas mar adentro. Os pensamentos vaguearam sem rumos e provocaram deliciosa sensação de liberdade.

Andei bastante pela zona norte de Parnaíba, próximo à margem do rio Igaraçu, à estação ferroviária de bairro. A estação e a ferrovia foram criminosamente desativadas pela ditadura do transporte rodoviário. Triste calamidade em todo o Brasil, porém mais dramática no nordeste do país, região que foi servida por dezenas de linhas férreas atravessando os interiores dos estados. Por toda a região, ao lado dos trilhos soterrados pelo asfalto que multiplica o calor e a impermeabilidade do solo, ainda se encontram antigas estações ferroviárias, muitas delas utilizadas por órgãos públicos, ou simplesmente abandonadas, em ruínas, servindo de abrigo de dependentes químicos.

Continuava mergulhando nas preciosidades literárias de Lima Barreto, relendo a infinidade de contos agrupados em edição caprichada. Destaques, entre tantos, para os contos Um Músico Extraordinário e Como o Homem Chegou.

Embarquei em ônibus leito à noite.

Não desci nas paradas das cidades cearenses de Camocim e Sobral. Desembarquei ao amanhecer no terminal rodoviário de Fortaleza e logo me dirigi ao aeroporto.

Em voo lotado, durante o trajeto aéreo de quase três horas, me salvaram as crônicas de Rubem Braga, me transportando para os fatos e as fantasias do autor capixaba, que merece com folga a fama que a história lhe deu.

Entrei em casa no final da tarde daquele mês de julho, sob o frio suave e o céu nublado e feio, combinando perfeitamente com as características físicas da cidade de São Paulo.

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

da Bolívia ao Piauí (via Bolívia, Peru, AM, PA, MA, PI) parte (6/7)

 ...continuação

Pela manhã desci à estação hidroviária de Manaus. No navio me foi designada a suíte com duas camas de solteiro em beliche, banheiro privativo, ar condicionado.

Almocei os cinco pães de queijo e os dois sanduíches de queijo que preparara no café da manhã do hotel. E tracei também três das seis maçãs fresquinhas que comprei de ambulante em circulação pelo navio.

Três horas e dez minutos após o horário programado, o navio zarpou de Manaus. Uma hora depois atravessou o encontro das águas entre o rio Negro e o rio Amazonas. A ocupação de apenas um terço da capacidade do navio incluía bebuns que jogavam as latinhas de cerveja no piso do navio ou nas águas do rio, ignorando os enormes cestos de lixo por todos os pisos.

Em frente à lanchonete do terceiro piso, enormes caixas de som vomitavam o lixo da indústria cultural em alto volume, compondo trilha sonora para os bêbados e as bêbadas em estados animalescos.

No refeitório jantei o jantar por quilo, mas pago à parte como em todas as embarcações de bandeira paraense.

Insisti e subi novamente ao bar e lanchonete e também ao último piso, descoberto, sob as estrelas e a lua quarto crescente. Mas não deu para permanecer ali. Além do lixo comercial vindo das caixas de som da lanchonete, uns passageiros, não contentes com a poluição sonora logo abaixo, trouxeram e ligaram aquelas monstruosidades portáteis que vomitam luzes e som. Mais lixo descartável da indústria cultural. Mais latas e garrafas pelos pisos, escadas, mesas, cadeiras, em todos os lugares, menos nos cestos de lixo disponíveis por todos os cantos do navio.


Li bastante na suíte e adormeci cedo, bem cedo.

Nem levantei durante a parada em Itacoatiara. Apenas ouvi a movimentação interna e externa, a oscilação do ronco dos motores, o apito, para imediatamente voltar a adormecer.

O café da manhã, também pago à parte, oferecia fatia de melancia, mungunzá quentinho no copo, sanduíche grande de queijo e presunto, pedaço de bolo, copo de café com leite.

E me liberei para apreciar a paisagem fluvial. Li bastante ao lado da cabine de comando, de frente para a imensidão de água do rio Amazonas. Poucas embarcações subindo ou descendo o rio.

No meio da manhã, bem no fundo do horizonte, avistei as antenas e a torre da igreja matriz de Parintins. Mas somente uma hora e vinte minutos depois o navio atracou no porto da cidade. No mesmo instante os microfones internos convocavam os passageiros para o almoço. Se já vinha com poucos passageiros, o navio esvaziou ainda mais após Parintins. E, ufa, todos os bebuns e as caixas de poluição sonora desembarcaram ali. Todos se esbaldariam desenfreadamente no festival de Parintins que começaria em poucos dias.

Pouco depois o navio singrava as águas do rio Amazonas em terras paraenses. E o fuso horário passava a ser o de Brasília.

Encerrei Vida ao Vivo, de Ivan Ângelo. O livro disseca, de maneira envolvente, curiosa e ácida, a vida e as ações de magnata dos meios de comunicação. Qualquer semelhança com pessoas reais e contemporâneas não seria mera coincidência.

A parada em Juruti não ocorreu no porto da cidade, mas a jusante da zona urbana, em barranco improvisado sobre o qual passava estradinha de terra. O navio baixou a rampa da proa e um caminhão desembarcou direto rumo às ruas da cidade. Os vendedores de comes e bebes, normalmente posicionados no porto, na espera das embarcações, se desembestaram para aquele local inusitado para tentar vender as mercadorias. Parada irregular, em barranco irregular, apenas para satisfazer os interesses monetários do proprietário do navio.

Para surpresa de muitos passageiros o navio não parou em Óbidos, cidade incluída em todas as rotas fluviais das embarcações entre Manaus e Belém. O atraso deliberado pela sede de lucros do proprietário do navio, porém, se mantinha o mesmo.

O navio atracou no porto das balsas, e não na estação hidroviária, em Santarém, no começo da madrugada. As carretas, caminhões e veículos começaram a desembarcar pela rampa frontal da embarcação, provocando barulhos incríveis que reverberavam pelas estruturas metálicas. Aquela fora viagem de transporte de cargas, especialmente caminhões e carretas, pouco importando a sorte ou o horário dos passageiros.

Nem me levantei. Continuei na cama de baixo do beliche e, à medida que os ruídos diminuíam, adormeci novamente. Despertei ao amanhecer. Silêncio total do motor, nos pisos internos e nas áreas externas ao navio. Fechei as bagagens e desembarquei. Mais adiante, em frente ao ponto de embarque da balsa que cruzava o rio Amazonas rumo à vila de Tapará, eu consegui quem me levasse ao hotel.


Eu esquecera o quão deserto e silencioso era um domingo santareno. Dava para ouvir o som do silêncio. Ao caminhar para o restaurante do almoço eu me sentia atravessando cidade abandonada depois de uma hecatombe qualquer. Um ou outro veículo circulava de vidros fechados e ar condicionado ligado. Fazia calor ardido no meio do dia. Alcancei restaurante simplório e aconchegante. Ao fundo da paisagem o rio Tapajós fluía lentamente para o norte.

Enfrentei o sol de rachar a cuca do começo da tarde a fim de circular pela orla do rio. Parava vez ou outra em banco sob a sombra das palmeiras, mas que geravam sombras tímidas. Prosseguia para, mais adiante me sentar sob as mangueiras, estas sim de sombras amplas e refrescantes. Raros gatos pingados por ali naquele horário. Paz e tranquilidade para contemplar o Tapajós, o encontro das águas, mais visível na luz da tarde, e o Amazonas mais ao fundo. Detonei duas bolas de sorvete, açaí e cupuaçu, diante das águas esverdeadas a azuladas do rio.

Escureceu em Santarém. Era noite alta e a temperatura batia nos trinta graus. Quente, abafado, úmido. O largo e extenso calçadão da orla do Tapajós fervia de gente de todos os tipos e idades. Animação e alegria em espaço público e democrático. O calçadão fora estendido até praticamente o fim da zona urbana. O porto da praça Tiradentes, de onde embarquei tantas vezes para Macapá anos antes, foi corretamente transferido para a estação hidroviária, mais a jusante. No calçadão ainda havia balsas flutuantes, bem instaladas, limpas e funcionais, mas apenas para embarcações menores com destino às comunidades próximas, rio acima, e para as lanchas rumo a destinos mais afastados como Itaituba, Alenquer, Óbidos, Juruti. Com essas mudanças ganharam tanto os passageiros dos barcos e lanchas, como os moradores e visitantes que desfrutavam do extenso calçadão, dotado de quiosques de comes e bebes, sobretudo dos de batatas fritas, petisco típico das noites dos interiores paraenses, sem falar em aluguel de bicicletas, patins e brinquedos para crianças. Pescadores avulsos, com varas ou apenas utilizando as linhas se espaçavam na murada metálica. Noite tórrida muito bem aproveitada pela população, ao ar livre, socialmente, coletivamente.


Iniciei a leitura de Vasto Mundo, de Maria Valéria Resende.

Pela manhã caminhei por todo o calçadão da orla do Tapajós, bem depois da Feira do Pescado e do Mercadão 2000. O chapéu e o protetor solar amenizaram parcialmente os efeitos do sol implacável. O calçadão largo, extenso, alto para conter eventuais cheias do rio, percorria quase toda a margem fluvial urbana, enfeitando a maior parte de Santarém. As águas do Tapajós, esverdeadas, batiam na murada.

Almocei mistura insólita de maniçoba, arroz de pato, pedaços de filé mignon, banana frita e o invariavelmente soberbo suco de cupuaçu. Encerrei com duas balas de cupuaçu.

À tardinha pude contemplar estupendo por do sol nas águas do Tapajós. As cores evoluíam do alaranjado ao avermelhado, entre outros tantos tons vivos e incandescentes. Barquinhos e navios maiores navegavam no horizonte. Belíssimas imagens para apreciar e registrar.

Para uma ideia do campo político a que pertencem os sujeitos que têm coragem de defender a criação de estado próprio, separado do Pará, com capital em Santarém, e assim mandar e desmandar na população, como em um feudo particular, bastava ler a faixa estendida por tais indivíduos na orla da cidade: “estado do Tapajós, agora vai, em nome de Jesus”. Não precisa ser muito informado ou ter raciocínio privilegiado para saber que aquilo vem das trevas do fundamentalismo, dos traficantes da fé do povo, das empresas evangélicas, do comércio ilegal travestido de religião, que querem a todo custo explorar e oprimir ainda mais os povos do sudoeste do Pará.

Na orla fluvial da cidade não resisti e caí de cabeça em tigela de creme de açaí fresco, centrifugada provavelmente pela manhã, com farinha de tapioca e açúcar.

Encerrei a leitura de Vasto Mundo, de Maria Valéria Resende, excelente livro que narra diversas estórias ocorridas em torno de vilarejo do sertão paraibano.

À noite, o calçadão da orla do Tapajós em Santarém se mantinha prestigiado.

No dia seguinte, na Feira do Pescado, as garças brancas perambulavam ousadamente pelas bancadas cheias de peixes. Parecia que até pediam para serem fotografadas, de pertinho, em planos bem fechados. Botos, dos cinzentos ou dos rosas, davam voltas nas águas bem próximas na esperança de ganhar restos de peixes frescos.

Depois de entrar no Mercadão 2000 parei na balsa das lanchas para Itaituba. Durante a espera da próxima embarcação conversei com itaitubense que voltava pra casa após as sessões de quimioterapia trimestral. O câncer na próstata, já extraída, ainda exigia tratamento intensivo. Segundo o próprio, bem humorado e levando tudo na esportiva, faltava pouco para morrer, pois na família dele poucos ultrapassavam setenta anos de vida. Falante e engraçado alegrava a fila de embarque para o percurso previsto de oito horas ao destino final.

Andei lentamente ao outro lado da cidade, mais precisamente ao restaurante onde costumava almoçar anos antes, muitos anos antes. Abri com caipirinha coada, como regra por ali, caipirinha feia, mas saborosa. Prossegui com caldeirada de tucunaré, pirão engrossado, quase duro, com farinha d’água, arroz branco. Encerrei com jarra de suco de graviola, pois não havia o invariavelmente divino suco de cupuaçu.

E fugi do caldeirão das ruas de Santarém para o fresco quatro do hotel.

À noite, duas caipirinhas honestas, apesar de coadas, e uma generosa porção de calabresa, batatas, farinha e rodelas de cebola frita, no calçadão da orla do Tapajós. Pouca gente. Tranquilidade. Silêncio apenas cortado pelo marulhar das águas na murada de proteção. Delícia das delícias em noite do meio da semana, noite comum, sempre mais agradável que as noites de fins de semana, feriados, períodos festivos. Eu contemplava o vazio, a escuridão das águas, raramente interrompida por voadeiras em deslocamento. A brisa, o frescor do ar noturno, a imensidão e o brilho fugidio das águas do Tapajós, o movimento quase nulo de pessoas, lembrava que valia e muito a pena estar em Santarém.

Subi em ônibus urbano ao distrito de Alter do Chão, dentro do município de Santarém. O percurso de uma hora pela PA-457 atravessou trechos de floresta razoavelmente preservada e partes de povoados como Cucurumã, São Braz, São Pedro, entre tantos outros.


Já na vilazinha embarquei em catraia a remo para a curtíssima travessia à ponta de areia, a imagem símbolo do lugar. Ziguezagueei ao longo da ainda estreita faixa de areia, que cresceria, em extensão e principalmente largura, com a baixa das águas do Tapajós. Avancei bem depois de muitas outras barracas então fechadas, pisando ora numa margem ora na outra da faixa, chapinhando os pés nas águas mornas. Quase ao final, com praias dos dois lados, entre vegetação de pequeno porte, avistei a boca da trilha. Era a mesma trilha que percorrera vinte e um anos antes e que levava ao topo do morro da Piroca, de onde se tinha visão privilegiada do entorno.

E lá fui eu, no impróprio horário das 12:30h, ciente do esforço físico que faria debaixo do sol amazônico brilhando no pico do céu. A maior parte do percurso seguia terreno aplainado e arenoso. Cerca de quinze minutos antes de completar uma hora de caminhada a trilha iniciou a subida em terreno pedregoso, a subir bem, exigindo pernas, pulmões, enquanto o corpo todo se ensopava de suor.

Atingi o topo, vazio de gente, para minha felicidade. Nele, um banco de jardim, um mastro contendo dezenas de flechas com as direções e distâncias de vários pontos do Brasil e do exterior. E me deparei com a visão de trezentos e sessenta graus de toda a região. Avistei a vila de Alter do Chão, a faixa estreita de areia, zonas de floresta nativa, baías ainda submersas e, mais adiante, o curso principal do rio Tapajós. Minha pele e as roupas do corpo estavam encharcadas de suor. Nada de brisa. Somente o sol a pino, o calor, o mormaço. E a visão estupenda ao redor. Relaxei, contemplei, registrei imagens do cume e dos entornos.

De volta à praia, encostei o esqueleto na barraca mais vazia e tranquila. Entrei nas águas da praia de Alter do Chão, braço afastado do leito principal do Tapajós. Mergulhei, me refresquei, nadei, flutuei na água doce. Tracei pirarucu com arroz, baião, farinha e vinagrete e duas garrafas grandes de água. Um lagarto gordo, cinza esverdeado, de um metro de comprimento, apareceu nas areias da praia. Eu já acabara de comer. Não sei o que ele buscava. Não incomodou ninguém. De repente não estava mais lá.

No meio da tarde, atravessei as águas e peguei o ônibus no terminal local.

Em Santarém fui me deliciar com a tigela de creme fresco de açaí, farinha de tapioca e açúcar. Que maravilha o creme de açaí fresco, provavelmente colhido durante a madrugada anterior e centrifugado, ou batido, na manhã daquele mesmo dia! Manjar dos deuses estratosféricos!

Comecei a ler O Boto, de Tadeu Sarmento, livro que me atraiu pelo enredo ambientado em comunidades ribeirinhas do rio Negro, mas com pegada explicitamente sobrenatural.

A noite de domingo em Santarém, como de regra em praticamente todos os interiores onde vivem pessoas que vivem e não apenas vegetam, era a noite mais prestigiada nas ruas, calçadas e praças. Famílias, casais, grupos, todos, desentocavam e saíam para circular e encontrar conhecidos. Alegria em locais públicos, democráticos, a maior parte gratuitos.

continua...

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

da Bolívia ao Piauí (via Bolívia, Peru, AM, PA, MA, PI) parte (5/7)

 ...continuação

Na parada em Santo Antônio do Içá, os passageiros foram recebidos com gritarias histéricas do fundamentalismo evangélico, vindas dos alto-falantes do porto flutuante. Em local público, aos berros, o energúmeno vomitava textos mal decorados da bíblia, livro de ficção, escrito por seres humanos, portanto falível e de verdades questionáveis como qualquer outro livro. Dentro do navio, membros daquele grupo de missionários jovens embarcados em Tabatinga se maquiaram de palhaço e se dirigiam aos passageiros das redes para convertê-los ao fundamentalismo. Os traficantes da fé do povo, os comerciantes evangélicos, atuavam intensamente, sem freios ou legislação que garantisse o sossego e a liberdade de pensar e agir da população. Onde estavam os setores da sociedade que discordavam dessas práticas criminosas e defendiam o país laico e socialmente justo?

O bufê do almoço cedo veio de arroz, macarrão, frango assado, carne no molho, farinha, salada variada, goiabada com creme de leite, servida em copinhos minúsculos, suco artificial. Era paradoxal, mas servir peixes nas embarcações amazônicas virou raridade, para não dizer impossibilidade, na maioria dos percursos por mim realizados.

Parada na pequena Tonantins. Repetindo as paradas anteriores, soldados da polícia militar amazonense entraram e circularam por toda a embarcação, olhando tudo e todos, mas sem revistar bagagens pessoais.

Ao anoitecer pude ver indícios do encontro das águas escuras do rio Jutaí com as águas barrentas do Solimões. Em seguida o navio atracou na cidade de Jutaí, numa manobra apertada, sem espaço suficiente para o desembarque e o embarque.


Durante a madrugada a última parada prevista naquele trajeto fluvial, a cidade de Fonte Boa.

Amanheceu com belos efeitos arroxeados, avermelhados, alaranjados, amarelados, para o lado leste.

Durante o serviço de café da manhã, a copeira cinquentona acompanhava as canções evangélicas vindas dos alto-falantes do refeitório, programadas por ela mesma, provavelmente. Desrespeito total aos passageiros e a outros tripulantes que não compactuavam com o fundamentalismo religioso da distinta senhora. No entanto, menos mal, não notei alusões a fundamentalismos religiosos nas partes internas e externas do navio, diferentemente da quase regra revoltante em embarcações na Amazônia, inclusive nos próprios nomes de registro delas.

Devorava com avidez Literatura da Floresta: textos amazônicos e cultura latino-americana, de Lúcia Sá. A autora tratava da cosmogonia de quatro grandes grupos indígenas brasileiros e do aproveitamento dela na literatura e teatro latino-americanos. Destacou e analisou Macunaíma, de Mário de Andrade, I Juca Pirama, de Gonçalves Dias, Maíra, de Darcy Ribeiro e Meu Tio o Iauaretê, de Guimarães Rosa, Quarup, de Antônio Callado e Cobra Norato, de Raul Bopp, os espetáculos teatrais em Manaus nos anos 1970, pelo grupo liderado por Márcio Souza, o questionável O Falador, de Mario Vargas Llosa. Além de empolgante e instrutivo, o livro de Lucia Sá caía como luva naquele percurso pelo rio Solimões abaixo. Na sacada da suíte, de frente para o rio, lia o livro entre contempladas naquela paisagem tantas vezes percorrida em anos anteriores.

O navio atravessou furo ou canal estreito, entre ilhas no meio do rio. As margens muito próximas, a vegetação exuberante, aves cantando sinfonias estridentes, a natureza abraçando a embarcação e os passageiros, extasiaram a todos. Mesmo tendo presenciado cenas semelhantes tantas vezes, não pude deixar de me emocionar com aquele deslumbrante flagrante amazônico.

A embarcação passou ao lado de comunidade de cerca de trinta moradias, de madeira e sem acabamento. Ao redor de dez canoas a remo, pilotadas por crianças, se soltaram das casinhas e se aproximaram do navio na esperança de receber esmolas, comidas, presentes, lançadas pelos passageiros. Era versão resumida das cenas comuns no estreito de Breves, Pará.


Comecei a ler Na Corda Bamba – Memórias Ficcionais, de Daniel Aarão Reis. Ao longo da autobiografia, o texto mostra a importância de relembrar sempre os males causados pela ditadura militar implantada no Brasil a partir do golpe de Estado de 1964, sobretudo contra o povo brasileiro que se insurgiu contra ela.

Avistei, subindo o Solimões, a lancha Soberana, que deveria perfazer o trecho entre Manaus e Tabatinga em cerca de trinta e seis horas. Muito menos tempo que as embarcações lentas, como a em que eu navegava. Porém, muito, mas muito mesmo, mais desconfortável permanecer sentado em assentos nada anatômicos, sem a liberdade de circular à vontade, apreciar a paisagem com calma e de vários ângulos, dormir em cama ou rede, contar com refeitório em vez de comer naquelas minúsculas mesinhas de frente aos assentos, entre tantas desvantagens da lancha em comparação aos navios e barcos convencionais e lentos.

No começo da noite, parada no posto de fiscalização da polícia federal. Expectativas e suspense geral. As redes foram levantadas e assim amarradas. Os passageiros, encostados na grade de proteção, longe das bagagens. Os das suítes permaneceram de pé, ao lado das respectivas portas de entrada. Seis policiais, mais um mascarado e fortemente armado, circularam pelos quatro pisos da embarcação. Olharam, abriram bagagens aleatoriamente. No meu caso, um entrou, verificou a sacada e o banheiro e, em menos de um minuto, se deu por satisfeito. Três policiais, entretanto, entraram e saíram várias vezes na suíte ao lado da minha. Perguntaram coisas para os ocupantes, inspecionaram novamente e seguiram em frente. Quarenta minutos depois do início das operações agradeceram a todos, desejaram boa viagem e desembarcaram de volta ao posto policial flutuante.

Levantei cedo para o último café da manhã a bordo. Dois pães com margarina, fatias secas de banana, banana frita seca, macaxeira seca. Era a raspa do tacho no estoque de alimentos para os passageiros. O café com leite hidratou e, principalmente, ajudou a empurrar tanta secura para o estômago.

Acabei Na Corda Bamba – Memórias Ficcionais, de Daniel Aarão Reis, comovente libelo contra os horrores da ditadura militar brasileira.

Tive longa conversa no piso de Lazer com o passageiro tagarela embarcado em Benjamin Constant. Na verdade só ele falou sobre tudo o que lhe vinha à mente, como, por exemplo, planos de criar gado ou construir novas casas para herdar aos quatro filhos. A despeito da tagarelice, o trintão era laico, lúcido e sabia o que estava falando e fazendo, e por quê. Acusou a maioria do comércio em Benjamin Constant de lavagem de dinheiro obtido pelo tráfico de drogas, situação que, segundo ele, se repetia em Tabatinga. Questionava os fundamentalismos religiosos, em especial a facção que atuava principalmente no Peru, cujos membros vestiam roupas supostamente da época de Jesus Cristo, não tomavam banho, sonhando ser e viver, nas roupas e comportamentos, como os fundadores do cristianismo. Mesmo assim, os membros dessa seita, ainda segundo meu interlocutor, se imiscuíam no tráfico de drogas e lucravam com isso. E ele trocava de tema e não parava de falar. Astronomia, estilo de vida, trabalho, família, lazer, ciências, geografia, vulcões, terremotos, contato com etnias indígenas do vale do Javari, onde, como engenheiro, ele construiu posto de saúde e outras benfeitorias públicas, caça de animais silvestres, estórias de onças, antas, queixadas, sobre cultura de açaí, pupunha. E falava, falava, falava. Não era desagradável, mas meus ouvidos e minha capacidade de captação tinham limites.


A chamada para o último almoço daquele trajeto fluvial me salvou. No bufê do refeitório, além dos itens de sempre, pedaços empanados de pirarucu, bem comíveis. Milagre dos milagres servirem peixe nas refeições. E justamente na última daquele trajeto.

Nem bem o almoço terminara e o navio passava perto da cidade de Manacapuru.

No começo da tarde, o famoso encontro das águas barrentas do rio Solimões com as escuras do rio Negro. Ao fundo, a cinzenta cidade de Manaus. Nos pisos, passageiros fotografando ou filmando as cenas, na ansiosa expectativa da chegada.

Logo depois o navio atracou na estação hidroviária de Manaus. Retirei as bagagens da suíte, desci as escadas ao piso principal e desembarquei. Atravessei o longo percurso dentro da estação até a calçada da rua.

Me hospedei no hotel onde ficara inúmeras vezes.

O ar noturno do largo de São Sebastião queimava de tão quente. Dei voltas por ali. Apreciei o movimento dos bares antigos, boêmios, inclusive o mais afastado e frequentado por coroas e bebuns em geral, além de putas que trabalham na rua transversal.

Iniciei a comilança do café da manhã do hotel com duas tigelas cheias de granola, salada de frutas e iogurte. Intercalei com três copos de creme fresco de açaí. Segui com meia bengala recheada de manteiga e queijo. Finalizei com xícara de café preto, puro, sem leite, sem açúcar. Saí do salão em estado de graça, estufado, estupidamente feliz. Nas demais mesas, hóspedes principalmente a trabalho na cidade.

Caminhei o longo e familiar trajeto pela rua Joaquim Nabuco até a margem do rio Negro, na faixa entre o porto da Escadaria, ou Manaus Moderna e a estação hidroviária. Era, de longe, a região mais interessante e a mais amazônica da Manaus de concreto e asfalto. E saí de lá com o bilhete confirmado da passagem antecipada de navio para Santarém.

O sol no meio da manhã já massacrava a cabeça e o corpo.

Subi as escadas do centro da cidade para almoçar. Era restaurante simples, no segundo andar de construção velha e mal conservada, quase em frente ao prédio histórico da Alfândega e perto dos diversos portos fluviais. Me sentei em mesa alta, diante da vista parcial do rio Negro.

A caipirinha veio batida e coada, mas saborosa, bem temperada. Optei por caldeirada de tucunaré, acompanhada de arroz e pirão. Encerrei o almoço com o infalível suco de cupuaçu, impecavelmente delicioso.

Depois de circular para lá e para cá, por quase todo o centro velho de Manaus, percorrendo por dentro os infinitos corredores de comidas frescas e processadas do mercado da Manaus Moderna, o mercado da Banana, o mercado turístico Adolpho Lisboa, ainda encontrei forças para explorar a última balsa flutuante do porto da Escadaria, na beira do rio Negro, onde atracavam as embarcações que faziam a linha do rio Juruá, e satisfazer curiosidades.


À noite, os restaurantes do largo de São Sebastião, com mesinhas ao ar livre, próximos entre si, ofereciam música, e até danças, ao vivo, todos ao mesmo tempo, provocando geleia sonora incômoda. Como na noite anterior, verifiquei o movimento nos antológicos bares do próprio largo e da esquina com a rua das putas.

No dia seguinte desci lentamente a rua Lobo D’Almada, a que ferve de putas e puteiros à noite, mas que dormia profundamente naquela hora da manhã. Lá embaixo dobrei à direita, até o inicio da avenida 7 de Setembro, rumo ao mirante São Vicente, inaugurado havia dois meses. Antes, atravessei praça e ruazinhas estreitas, tranquilas e bucólicas, levemente arborizadas, ladeadas por casario e edifícios públicos da virada do século XIX para o XX. O mirante era construção de três andares, contendo bares, restaurantes, cafés, sorveterias, lanchonetes, bancos, plataforma para sentar, relaxar e apreciar a vista das águas escuras do rio Negro e de ambas as margens. Permaneci horas ali contemplando as águas negras do rio, parte da estação hidroviária à esquerda, a extensa ponte sobre o rio que liga Manaus às estradas rumo a Manacapuru, Iranduba e Novo Airão, as colinas do bairro de São Raimundo à direita.

Lentamente, buscando as calçadas sombreadas e menos tórridas, retornei ao largo de São Sebastião para almoçar. Passei em frente ao teatro Amazonas e me sentei em mesa externa do restaurante tão frequentado em viagens anteriores. Saboreei duas caipirinhas pequenas e bem temperadas, costela de tambaqui assado com baião, farofa e vinagrete. Encerrei mantendo o nível com o inatacável suco de cupuaçu.

À noite, seria extremamente difícil arranjar mesa em restaurantes por conta da data comercial, nada mais que comercial, do dia dos namorados. Sem fome fui de sorvete perto do centro comercial, região da cidade vazia de almas naquele começo de noite. Nem putas eu notei circulando por ali. A sorveteria estava aberta e funcionando, mas também às moscas. Tristeza total.

Almocei com casal amigo em restaurante típico amazonense no bairro de São Raimundo, nos altos e de frente para o rio Negro. Duas caipirinhas abriram o apetite para costela assada de tambaqui, sardinha frita, baião, vinagrete, farinha, banana seca, banana em calda. Coroei a lauta refeição com doce de abacaxi com queijo.

Comecei a ler o instigante Vida ao Vivo, livro mais recente de Ivan Ângelo.

continua...

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

da Bolívia ao Piauí (via Bolívia, Peru, AM, PA, MA, PI) parte (4/7)

 ...continuação

Andei horrores pelo traçado quadriculado da cidade de Iquitos, sempre atento aos moto-táxis cobertos e naturalmente ventilados, mas também aos chamativos ônibus de Iquitos, construídos a partir de chassis de velhos caminhões e cobertos por carroceria de madeira, a fim de evitar o calor excessivo que os metais provocariam.

Alguns jovens me abordavam em inglês para vender pacotes turísticos na selva, daqueles pacotes xoxos e previsíveis aos turistas do hemisfério norte. Ao informá-los que eu era brasileiro e que já tinha explorado os meandros da floresta amazônica no Brasil eles retiravam a fantasia de vendedor e passavam a conversar despreocupadamente em castelhano, como se eu fosse amigo e não cliente em potencial.

Longe da orla turística, e principalmente dos turistas que sempre repetem os mesmos lugares recomendados na internet, almocei em cevicheria típica peruana, frequentado por casais, amigos e famílias locais. No cardápio reduzido e bem específico fui de ceviche de peixes com arroz de mariscos. Muito bom, na quantidade e na qualidade, além do serviço eficiente e simpático.

Nos ambientes autenticamente peruanos de Iquitos, e frequentados basicamente por peruanos, predominava música mestiça, com forte influência caribenha. Era fruto provavelmente da herança africana presente no Peru, de modo não tão marcante como no Brasil, mas evidente pela alegria, ritmo contagiante e dançante. Bem diferente das canções andinas ouvidas no altiplano, caracterizadas pelos dramalhões e tragédias amorosas.

Domingo à noite, ainda mais gente pelas ruas e praças que na noite de sábado. Gente andando, comendo, beliscando, conversando, usando e abusando dos espaços públicos e gratuitos, se relacionando com outros moradores e visitantes.


Não me cansava de observar o trânsito de Iquitos. Mesmo à noite, impressionante a ciranda de centenas de moto-táxis cobertos e para dois passageiros circulando pelas ruas. Eram batalhões deles, uns atrás e ao lado dos outros, causando ruídos insanos.

Pela manhã, caminhei no sentido do bairro de Belén, na zona sul de Iquitos, região erguida, na maior parte, sobre a várzea fluvial. Antes, o imenso mercado, ou feira livre, a céu aberto e em lojas e mercados, abrangendo várias quadras, em todas as direções. Nas barracas, tendas, armazéns, se vendiam de tudo, inclusive milho preto, cigarros enrolados na frente dos fregueses a partir de fumo fresco, garrafadas e demais produtos para saúde, simpatias, oferendas, rituais. E, claro, produtos frescos, como frutas, verduras, legumes, grãos, carnes de peixe, de boi, de porco, de frango, entre outros tantos animais.

Avançando nos setores da feira, ou quebrando a leste, entrei no bairro propriamente dito de Belén, guardando moradias modestas, pobres, miseráveis, muitas sobre palafitas e interligadas por passarelas suspensas, a fim de conviver com as oscilações das águas fluviais. Muitas caindo aos pedaços, entre muita sujeira, moscas, mosquitos, lixo, esgotos fétidos a céu aberto. Na beira da água saíam embarcações de diferentes formas e tamanhos para as moradias flutuantes ou que contavam com acesso exclusivo pelas águas do lago em frente a Iquitos. Por ali, muito lixo e mau cheiro, em terra e nas águas, embora se afirmasse que a situação sanitária do município tenha melhorado muito nas últimas décadas.

Belén se tornava bairro perigoso fora dos horários das feiras. Policiais marcavam presença, em rondas, em postos fixos ou circulando a pé. Nas paredes e muros, clamores pela diminuição da violência, da criminalidade, da gravidez precoce. Enfim, bairro típico de país capitalista dependente, nada muito diferente das grandes, e algumas médias, cidades da América. No caso das palafitas e das passarelas suspensas que as interligam, eram similares às demais cidades nas margens fluviais da Amazônia brasileira, cujos níveis das águas oscilam intensamente conforme as estações do ano.

Ao retornar ao centro de Iquitos, repeti o bom restaurante do dia anterior. Dessa vez escolhi arroz temperado com pedaços de pato. Saborosíssimo. A travessa na qual vinha servida a refeição era oval e apertada. Foi uma luta para me equilibrar naquele espaço reduzido e não esparramar o arroz e o pato na mesa.

Principal cidade da Amazônia peruana, acessada somente por barcos ou aviões, apesar de contar com mais de quinhentos mil habitantes, Iquitos não tinha edifícios altos, espigões ou outras aberrações. Os seres humanos, moradores e visitantes, com cérebro e sangue nas veias, agradeciam de coração.

Entre os estrangeiros presentes na cidade, predominavam de maneira absoluta os estadunidenses. A maioria deles, vintões ou trintões. Seriam inocentes turistas ou teriam relação com as bases militares em território peruano? Ao pousar no aeroporto de Iquitos, reparei em aeronaves militares vindos daquele regime.


Voltei a ler O Século das Luzes, de Alejo Carpentier, livro deixado de lado na maior parte do tempo durante a intensa e fascinante viagem à Bolívia e ao Peru.

Naquela manhã, os estudantes das universidades próximas ao hotel desfilavam, marchavam, cantavam, gritavam. A movimentação fazia parte dos sessenta e dois anos da Universidade Nacional da Amazônia Peruana. Cada turma, cada departamento, caracterizado de acordo com a área de estudos, desfilava nas ruas. Durante uma semana as festas prosseguiriam, nas ruas e nos interiores da universidade.

Iquitos, pelo menos no centro e arredores, contava com calçadas ininterruptas, conservadas e seguras para andar. Era tremenda humilhação para as cidades amazônicas brasileiras. As raras calçadas existentes no Brasil apresentavam buracos fétidos, remendos, descontinuidades, tralhas mil, todas as dificuldades e perigos para seres humanos circularem. Por outro lado, em Iquitos abundavam cassinos e máquinas caça-níqueis. Não eram duas ou três casas, mas dezenas delas em cidade de porte médio. Casas ávidas pelos trouxas e estúpidos a jogarem o dinheiro e a vida fora.

Era dia de deixar a cidade. Tomei um daqueles interessantes, curiosos e eficazes moto-táxis, cobertos e para dois passageiros, ao porto da Enapu. Em ambiente limpo e funcional revistaram por alto minhas bagagens. Aguardei o embarque na lancha de dois andares. O de cima, mais caro e mais gelado, era reservado a estrangeiros.

A lancha partiu à tardinha. Na fileira de assentos à minha frente sentou casal de setentões amazonenses residente em São Paulo. A conversa engrenou e perdemos a noção do tempo em troca de informações de viagens pelos interiores do Brasil e o mundo afora.

No início da noite desci ao piso inferior para comprar o jantar, na base de arroz, feijão, perna de frango assado, água mineral e picolé de sobremesa.

Anoiteceu de vez e o ar condicionado agiu para gelar os ambientes, sobretudo o piso superior. Vesti a camiseta térmica de mangas longas e a jaqueta justa e impermeável. Me sentei no assento para relaxar e tentar dormir durante o trajeto que ocuparia toda a noite e a madrugada. O corpo ainda sentia frio. Apelei ao gorro, meu derradeiro item contra baixas temperaturas trazido na mochila de ataque. Enfiei na cabeça e cobri as orelhas. Meu corpo estava gelado pela estupidez do ar condicionado regulado de maneira despropositada.

O frio durante a noite e a madrugada foi indecente. A estupidez da temperatura do ar condicionado atingiu a insanidade. Outros passageiros apelaram a sacos plásticos, nas pernas, braços, cabeça.


Dormi, acordei, cochilei, troquei mil vezes de posição no assento com encosto reclinável.

Acordei de vez ao amanhecer, antes da penúltima parada da lancha, em Caballococha. Tomei chá gratuito bem quente para relaxar a musculatura contraída pelos efeitos do frio vindo do ar condicionado criminoso. À medida que clareava do lado do fora a situação trágica do frio interno se amenizava, mas muito lentamente. Foi servido diretamente nos assentos o café da manhã gratuito, na base de sanduíche de queijo e presunto e copo grande de café preto.

No meio da manhã a lancha atracou no porto da ilha de Santa Rosa. Eu e o casal amazonense nos esprememos no banco traseiro do moto-táxi coberto rumo ao centrinho da cidade a fim de dar baixa no passaporte no escritório da migração peruana. A chuva que começou fina pela manhã aumentou de volume. Embarcamos em canoa alongada e coberta, com motor de popa, para atravessar o rio Amazonas, como chamado no Peru, ou Solimões, como chamado no Brasil, com destino à cidade brasileira de Tabatinga. Chovia forte durante a travessia fluvial e ao desembarcar no porto do mercado.

Permanecemos um tempão no pequeno flutuante na espera de estiar. Mas eu estava em território brasileiro. Viva!

A chuva enfraqueceu levemente. Caminhei pelas passarelas de madeira ensopada e escorregadia em direção à terra firme, e finalmente ao hotel. Estendi no quarto os itens molhados pela chuva e fui ao porto da cidade para comprar a passagem do navio para Manaus.

O tempo estiara e pude caminhar pela cidade. Poucas mudanças desde minha última visita sete anos antes. Tabatinga continuava feia, largada às traças pelas sucessivas administrações municipais e estaduais. As calçadas, onde existiam, se encontravam arrebentadas, com buracos fundos às dezenas, mato crescido em toda parte, bares podres cheios de bêbados ameaçadores. Perambulando pelo centro da cidade almocei em restaurante por quilo de qualidade medíocre e frequência entristecida.

Mas que contraste abissal no atendimento entre os simpáticos, educados e prestativos bolivianos e peruanos, de um lado, e os frios, desinteressados e até bruscos brasileiros de outro! O país parecia em ruínas e o povo indiferente e apático em relação ao presente e com o que estava por vir no curto prazo.

Encerrei o interessante O Século das Luzes, de Alejo Carpentier. E comecei Literatura da Floresta: textos amazônicos e cultura latino-americana, livro de Lúcia Sá.

Saí cedo para jantar. Impressionante a poluição sonora em Tabatinga vinda dos bares, dezenas deles, ao longo das principais ruas, mas principalmente na longa e larga avenida da Amizade que leva, mais adiante, à cidade de Letícia, já na Colômbia. Parecia concurso de quem tinha o som mais alto e de repertório mais repugnante. Mas não era somente isso. A frequência decrépita, em grau etílico avançado, com vozes empapadas, no início de noite em dia útil de semana, berrava para as meninas que passavam na rua, na base de “vem cá”, “vamos se divertir”, “ei isso, ei aquilo”. Desanimador. Essa era Tabatinga, no Brasil, tão diferente das cidades bolivianas e peruanas visitadas, com praças cheias de gente diversificada e orgulhosa da própria cultura. Nem havia praça decente em Tabatinga. A que fora construída em frente à igreja matriz estava em ruínas, com mato crescido, bancos estraçalhados, lixo por toda parte, vazia de seres humanos. Horror dos horrores. Tabatinga era administrada por animais irracionais que, na maioria dos casos, nem sequer moravam na cidade, péssimo exemplo de descaso urbano que se refletia na imensa maioria dos moradores.

Levantei e me empanturrei no saboroso, variado e abundante café da manhã do simplório hotel brasileiro. Fui ao porto de Tabatinga caminhando sobre os restos de calçadas.

Pouca gente na fila do navio. Lentamente os passageiros foram cumprindo as etapas para o embarque. Cadastramento na polícia federal, etiquetagem das bagagens e dos passageiros na base de pulseira impermeável, vistoria praticamente nula das bagagens, apenas da passagem e do documento e, finalmente, o embarque no meio da manhã.


Fui designado à suíte ampla, com cama de casal, ar condicionado, televisor que se manteve desligado durante todo o trajeto fluvial, banheiro privativo espaçoso e sacada coberta, com janelona de vidro de correr, de frente para a paisagem em evolução e para o vento refrescante.

No mesmo piso os passageiros escolhiam os melhores pontos para armar as redes. No piso superior, também reservado às redes, e à cabine de comando, mais espaço e menos procura entre os passageiros embarcados em Tabatinga.

Entre os passageiros brasileiros, grupo de jovens pertencentes à organização de missionários religiosos, não ligados oficialmente, segundo o integrante carioca, a nenhuma denominação específica, ou seja, a nenhuma corporação evangélica em particular, mas todos representantes do cristianismo. Ele garantiu que no trabalho do grupo nada tinha de forçado ou impositivo. Sei. Me engana que eu gosto. Na prática mais uma frente de ataque das empresas do fundamentalismo religioso a traficar com a fé do povo, urbano, rural, indígena.

No começo da tarde o navio zarpou com cerca de um terço da capacidade de passageiros. Inicialmente deixou o rio Solimões para subir parte do rio Javari, rumo à cidade de Benjamin Constant, a primeira parada para desembarque e embarque, de mercadorias e passageiros.

No jantar servido antes de escurecer tomei bastante sopa de macarrão, carne, batata, acrescida na mesa com farinha de mandioca para engrossar. Suco artificial à vontade para hidratar e lavar o organismo.

O navio já deixara para trás o rio Javari e retomara o curso no Solimões, de baixada, a favor da correnteza. Parada em São Paulo de Olivença à meia noite.

Levantei com chuva antes de clarear. Amaturá, a cidade bonitinha da visita anterior, se aproximava. Três apitos da buzina foram acionados pelo comando da embarcação. Observando a altura da escadaria da orla da cidadezinha, o Solimões se encontrava mais cheio que sete anos antes.

O bufê do café da manhã ofereceu mamão, macaxeira cozida, copinho com salsicha picada e temperada, suco artificial, pão com margarina, que peguei dois, café com leite. Empurrei tudo goela abaixo, com dificuldades na macaxeira seca e na salsicha.

Em viagens de baixada como aquela, a favor da corrente fluvial, as embarcações buscam a correnteza, o canal principal do rio, para economizar motores e combustível, se posicionando, na maior parte do tempo, distante das margens. Daí pouco ou nada para ver em rio tão largo como o Solimões, a não ser nas paradas intermediárias.

continua...