Em todos os lugares havia gente demais. Praças, corredores
das arcadas laterais, dentro da Catedral, bares, cafés, restaurantes, ruas
fechadas para veículos, calçadas. Muitos sentavam para descansar nas sarjetas
ou nos desníveis das praças. E aquilo era apenas aperitivo para a semana santa,
certamente impossível de se mover em meio a visitantes e romeiros da Guatemala
e de países vizinhos que baixariam na cidade especialmente para acompanhar ou
observar as manifestações de fé.
À noite, a praça e as ruas nas imediações da igreja La
Merced permaneciam cheias. O povo não arredava pé. As barracas de comidas e
bebidas fervilhavam de pedidos. Uns andavam, outros sentavam se encostando às
paredes das casas, nas guias da calçada ou no adro da igreja. Haveria missas mais
tarde.
No café da manhã fui de ovos mexidos, pasta de feijão
preto, molho de tomate com nachos,
queijo fresco, banana frita, uma fatia de pão, café com leite.
A lotação saiu de Antigua sob a visão privilegiada dos
vulcões De Água, Acatenango e De Fuego, este mais calmo, mas ainda soltando
fumaça pela cratera.
As estradas desceram o relevo em mais de mil e quinhentos
metros, até o nível do mar. Cortaram zonas industriais, poluídas e feias. E,
como regra na Guatemala, muito lixo jogado na beira das rodovias,
transformando-as em lixões a céu aberto. O trajeto passou por Alotenango,
Escuintla, Puerto Quetzal, Iztapa, antes de entrar na vila de Monterrico, na
beira do oceano Pacífico.
Assim que a estrada atingiu o litoral, o aspecto geral de
tudo lembrou demais trechos do litoral brasileiro. Construções mal feitas, pela
metade ou sem acabamento. Falta de capricho no urbanismo e na arquitetura. Indiferença
e descuido na aparência em geral. Os moradores, mestiços, usavam e abusavam da
boa e velha descontração no vestir, andar, se comunicar. Homens e mulheres,
jovens e adultos, me cumprimentavam sorrindo.
Balneário quase inteiramente voltado ao turismo, Monterrico
contava com mar agitado e batido contra extensa praia de areias escuras devido
aos vulcões próximos. Caminhei na praia inclinada próximo à linha d’água.
Alguns pescadores se sentavam na sombra costurando ou remendando redes de
pesca. Me sentei na sombra da murada lateral de um bar fechado. Descansei
observando as ondas fortes do Pacífico e o movimento quase nulo de banhistas.
As areias de coloração cinza-escura chamavam atenção, ainda mais em contraste
com o azul do mar. Silêncio, preguiça, sol abrasador, calor úmido.
Atingi a rua paralela à praia, atrás da primeira fileira
de construções, e voltei ao centrinho. Peguei a avenida transversal ao mar, ao
longo da qual havia uma infinidade de bares e restaurantes, abertos e
completamente vazios. Era hora do almoço e nada de clientes. Algumas lojinhas
se intercalavam aos restaurantes, vendendo artigos de praia. Vazias também.
Troquei de calçada e dei meia volta. Avistei o único
restaurante que acabara de se ocupar com trabalhadores a serviço na cidade. Entrei
no ambiente naturalmente ventilado, sem paredes, chão de cimento batido. Local
descontraído com atendimento para lá de informal.
Apesar do calor indecente, pedi caldo de peixe, camarão e
caranguejo. O caldo e o gosto de tudo animou o espírito. A cestinha cheia de tortillas quentinhas e feitas na hora
não poderia faltar. Fui com as mãos mesmo. Me lambuzei e não deixei nada sobre
nada. Filetes de suor desciam pelo peito, costas, barriga, coxas. As garçonetes
e a senhora gorda do caixa me assistiam disfarçando sorrisos. Me lavei na pia instalada
no meio das mesas.
Repeti a praia. Permaneci sob a sombra de uma barraca de
comes e bebes abandonada. Sol, calor, claridade intensa.
Ao final da tarde a lotação tomou o caminho de volta,
serra acima. Canaviais e bananais sem fim, zonas portuárias de mau aspecto,
pobreza às margens da rodovia.
Em determinado trecho de estrada passou enterro no sentido
contrário. O caixão era carregado nas mãos, enquanto os familiares e amigos
vinham caminhando logo atrás. Depois de todo o longo cortejo de pedestres, extensa
fileira de carros e motos também seguia o féretro.
E encerrei a noite em Antigua.
A indústria da segurança armada, na maioria das vezes
privada, se alimentava e lucrava com o pânico da criminalidade na Guatemala.
Além dos bancos, comércios maiores, caminhões transportadores, estacionamentos
comuns, qualquer local ou veículo que contivesse algo de valor ostentava
seguranças escandalosamente armados na porta, junto à calçada, internamente, ou
em movimento, ao carregar e descarregar. Muitos comércios se encontravam
fortemente gradeados, como jaulas de zoológico. Era comum na beira das estradas
placas com os dizeres “vizinhos organizados contra a delinquência”.
Mas não vi ou ouvi nada a respeito de ocorrências do tipo
nas imediações por onde circulei em todo o país.
Permaneci sentado sobre a calçada coberta pelos arcos da
praça Central. Observei o vaivém dos guatemaltecos e turistas. Os engravatados
e as vestidas austeramente dos escritórios do centro em horário de almoço
sentavam para pegar a fresca. Grupos de turistas passavam apressados com o guia
à frente. Estudantes estrangeiros da língua espanhola davam voltas. Indígenas invariavelmente
rechonchudas e com os filhos às costas tentavam vender bugigangas aos
estrangeiros. Crianças vendiam guloseimas e cigarros ou passavam com a caixa de
engraxate oferecendo serviços. Estudantes de uniforme, elas de camisa branca e
saia listada e bem cortada, eles de roupas escuras e gravata. Pedintes, muitos
pedintes. Gringos velhos, ora sentados, ora indo daqui para lá, fazendo ou
pretendendo sei lá o quê.
Assim como Tiradentes e Parati, Antigua oferecia dezenas daqueles
bares e restaurantes transadinhos, à
meia luz, com música ambiente ou ao vivo. Destoavam acintosamente da cidade e
do país. Na decoração, astral, música, cardápio, serviços, sobretudo nos preços.
Os turistas adoravam. Frequentavam tais lugares com roupas escolhidas a dedo, desfilando
poses ensaiadas e expressões de conteúdo. Nesses momentos não se sentiam e nem
gostariam de se sentir na Guatemala real.
As redes de comida rápida, provenientes daquele regime
terrorista ao norte do México, abundavam em Antigua. Estrangeiros, na maioria,
se envenenavam diariamente com o lixo industrial, enquanto a diversificada e
saborosa culinária guatemalteca era por eles ignorada.
Apesar de décadas da história recente da Guatemala terem
se caracterizado por tragédias sociais, genocídios patrocinados pelas elites, ditaduras
com ou sem eleições, invasões de exércitos estrangeiros, guerras civis,
opressão e exploração das classes dominantes locais e estadunidenses, discriminação
agressiva contra indígenas, entre tantas catástrofes sofridas, o povo
guatemalteco se destacava pela simpatia, acolhimento, educação, boa vontade, sempre
acompanhados de sorrisos. Essa docilidade talvez resvalasse na submissão a que
eles, sobretudo a maioria pobre e miserável, têm sido submetidos desde séculos.
A praça Central de Antigua centralizava a vida de toda a
cidade e, entre tantas características, concentrava fauna peculiar. Estadunidenses
sessentões ou setentões perambulavam a pé, ou se sentavam nos bancos, todos os
dias, durante praticamente o dia todo. Conversavam entre si em inglês. Adulavam,
em espanhol, as indígenas vendedoras de quinquilharias turísticas. Circulavam
para lá e para cá, sempre muito à vontade. Exageradamente à vontade. Aposentados
que decidiram viver em Antigua? Egressos de planos de pacificação e
domesticação do povo guatemalteco? Antigos soldados que participaram das
invasões e golpes de Estado contra o povo da Guatemala? Integrantes de
atividades comerciais duvidosas? Algo não combinava com uma suposta opção de
vida ingênua durante a aposentadoria.
Missões de corporações evangélicas estrangeiras, quase
sempre provenientes daquele regime estadunidense, circulavam impunemente pelas
ruas da cidade. Duplinhas de mórmons. Grupos de jovens em cujas camisetas
alardeavam programas odontológicos cristãos. Gringos disfarçados de ingênuos
turistas. Todos pregando o fundamentalismo religioso, uma das armas para dobrar
e abaixar ainda mais a cabeça do povo da Guatemala. Pelo jeito, o país
continuava sendo quintal de experiências e fonte de lucros abusivos das grandes
empresas estadunidenses, desde sempre, porém mais profundamente a partir da
invasão e golpe de Estado de 1954.
Andei pela zona do mercado, labirinto de bancas cobertas
vendendo de tudo um pouco. Placas alertando os delinquentes sobre o esquema de
segurança armada apareciam em pontos visíveis. Policiais de uniforme preto,
membros do exército carregando fuzis automáticos, entre outras delicadezas,
desfilavam em pontos estratégicos.
A Guatemala começava a se despedir de mim. E eu dela.
Deixaria saudades, certamente.
A lotação me pegou no início da manhã. Tudo correu bem nas
estradas acidentadas e sinuosas. Na chegado ao subúrbio de Mixco, o
congestionamento clássico da área metropolitana, entupida de carros, o infame
transporte individual que polui o mundo todo. O motorista ainda tentou vias
alternativas, virando aqui, dobrando ali, mas ganhou pouco. Cada avenida da
Cidade da Guatemala estava paradíssima.
Mas, finalmente, entrei no saguão do aeroporto
internacional La Aurora. Menos de quarenta e cinco quilômetros de percurso
desde Antigua demorou mais de uma hora e meia.
O avião decolou e sobrevoou rota similar ao da ida.
Destaque para vulcões em território provavelmente da Nicarágua. Um cuja cratera
se enchia de água mansa, espelhada e escura. Outro, mais cônico e com encostas
íngremes e raspadas pela descida de lavas, contava com a cratera expelindo
cinzas e fumaça. Ilhas do lado do oceano Pacífico. Terreno seco e acastanhado,
fartamente cultivado, nas ilhas e no continente.
Ao pousar no Panamá, áreas de manguezais, muitos navios no
oceano, linha de arranha-céus na Cidade do Panamá, revelando ostentação e mau
gosto, provavelmente imitação de congêneres daquele país ao norte do México, dono oficial do Panamá até o final do
século XX.
Durante o segundo voo, o céu aberto me permitiu avistar as
luzes de cidadezinhas e cidades do centro-oeste e sudeste brasileiro.
Desembarquei no meio da madrugada em São Paulo naquela segunda
quinzena de março. Recusei os assaltos para comer alguma coisa no próprio
aeroporto. E o metrô já começava a lotar de trabalhadores.
Depois do barato café da manhã na padaria do bairro,
me deitei em casa para adormecer. Seguramente sonharia com as diversas e
fascinantes facetas da Guatemala, todas elas ocupadas por povo sofrido, acolhedor,
educado, sorridente.
Ótimo texto, me perdi lendo como nas páginas de um livro bom! Sinto por esse povo ingênuo e explorado em um país com tantas riquezas, também acho que o Brasil está perto de se tornar escravo, não por ingenuidade, mas por corrupção e ganância!
ResponderExcluirOi Giovana, obrigado pela visita e pelos comentários.
ResponderExcluirMuitas analogias entre os dois países, apesar das evidentes diferenças. Mas não vamos assistir a isso passivos, não é mesmo?
Além dessa viagem, relatei dezenas de outras viagens aqui no blog, do Brasil e de outros países da América, África, Ásia, Europa. Fique à vontade para pesquisar e compartilhar.
Comente sempre!
Abraços.
Nossa! Lindo texto, lindo seu olhar para o povo guatemalteco, senti vontade de começar rápido minha viagem dos sonhos: Viajar por toda a América Latina. Vou passear no seu blog muitas vezes. Obrigada!
ResponderExcluirOi, Obrigado pela visita e pelos comentários.
ResponderExcluirFico motivado a escrever mais ao receber tais elogios.
Espero que leia e comente bastante, este e outros tantos relatos publicados no blog.
Abraços e felicidades.
Obrigada por compartilhar suas viagens, viajar é tudo de bom na vida.
ResponderExcluirOi Olga, obrigado pela atenção e pelos comentários.
ResponderExcluirAo viajar aprendo muito. Aprendo me divertindo e me divirto aprendendo. Muitas vezes, valem mais que cursos de conteúdo e didática duvidosas.
Abraços e comente sempre, esse e tantos outros relatos já publicados no blog, de viagens pelo Brasil e exterior!
Que lugar lindo
ResponderExcluirFotos lindas
ResponderExcluirOi Renan,
ResponderExcluirObrigado pela visita e comentários.
A Guatemala me encantou muito a despeito de tantas mazelas sociais.
É linda mesma. Vale a pena...
Comente sempre!
Tudo muito lindo muita natureza amei,
ResponderExcluirbom dia!!!!!!!!!!!!!
Obrigado pelos comentários. Leia mais e comente mais...
ResponderExcluirshow de bola.....
ResponderExcluirOi Favero,
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
Abraços!
Estou Armando conhecer histórias desse site!
ResponderExcluirObrigada por dar essa oportunidade!
Oi Elza,
ResponderExcluirDestinos dos mais variados, pelo Brasil e pelo exterior, para todos os gostos, não vão faltar...
Se delicie e depois diga o que achou...
Comente sempre!
Me senti como se estivesse na Guatemala na cidade de Antigua, vivendo e presenciando a todos os detalhes descritos desde os hábitos, costumes e comportamento de uma população sofrida, ao contraste de uma linda paisagem de areia cinza à um mar aberto.
ResponderExcluirParabéns por descrever e oportunizar às pessoas mais conhecimentos.
Obrigada!
Me senti como se estivesse na Guatemala na cidade de Antigua, vivendo e presenciando a todos os detalhes descritos desde os hábitos, costumes e comportamento de uma população sofrida ao contraste de uma linda paisagem de areia cinza à um mar aberto.
ResponderExcluirParabéns por descrever e oportunizar às pessoas mais conhecimentos.
Obrigada!
Oi Nádia, obrigado pela visita e pelos comentários.
ResponderExcluirQue bom que se identificou com meu estilo de escrever privilegiando o que vejo e sinto.
Tem muitas viagens publicados aqui no blog, para todos os gostos, pelos interiores do Brasil e de outros países da América, África, Ásia, Europa.
Comente sempre!
Muito bom!!!!
ResponderExcluirObrigado, Conceição. Comente sempre!
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