sexta-feira, 17 de junho de 2016

Guatemala e Honduras (parte 4/6)

...continuação
A lancha avançava em águas do lago, sempre no sentido contrário à correnteza. Muita água e amplidão. As margens se distanciaram. As terras eram mais baixas. Casas isoladas. Pescadores tentavam a refeição do dia ou um excedente para vender ou trocar nos vilarejos por alimentos e mercadorias.
E logo surgiram algumas das causas de tanta pobreza, desmazelo e desserviços sociais na Guatemala. Tendo à frente imensos iates, suntuosas mansões de temporada, disfarçadas de rústicas e ecológicas, ocupadas pela elite guatemalteca e estrangeira. As mesmas elites que se beneficiaram pelos sucessivos regimes opressores desde o golpe Made in USA de 1954. E essas elites existem justamente porque as escolas e a assistência médica do país padecem pela falta de verbas, existem porque a maioria da população do país vive na pobreza ou na miséria, implorando “one dólar” aos turistas.
Mais à frente, o forte de São Felipe, construído pelos invasores espanhóis no século XVI.
E a lancha atracou no trapiche da vila de Rio Dulce. Embarquei em veículo que cruzou as ruas entupidas de ambulantes, comércio ruidoso, nervoso. Muita gente, a pé, de bicicletas, motos, veículos leves e pesados.
Mais adiante, rodovia de pista simples e cheia de caminhões, penetrando em região ocupada por chácaras, sítios, fazendas, em visual familiar, semelhante aos interiores do sudeste do Brasil. Cidades e vilas, tais como Modesto Méndez, San Luís, Poptún, Dolores, surgiam nas margens da estrada. Clima tropical, muito verde, calor, umidade. Era a região do Petén, norte da Guatemala. Montanhas a leste da estrada indicavam a proximidade com a fronteira internacional com Belize.
Monoculturas de palma africana, espécie exótica e importada irregularmente da África, envenenavam os solos da região com a seiva viscosa. Mas os lucros enriqueciam meia dúzia de grandes proprietários de terra, a gang do agronegócio. E fez lembrar os crimes sociais e ambientais das monoculturas de eucalipto e pinus pelos interiores do Brasil, os chamados desertos verdes. Catástrofes similares em dois países da América.
Mais estradas, aplainadas e bem distintas das do altiplano guatemalteco, sob o calor da tarde. E o veículo atravessou a ponte sobre as águas do lago Petén Itzá em Santa Elena, alcançando a ilha lacustre de Flores, onde se situava cidadezinha de mesmo nome, simpática, aconchegante, acolhedora.
Igreja no alto da colina, pesadona como as católicas construída pelos invasores espanhóis. Becos, ladeiras brandas, casario antigo, muitos com teto fortemente inclinado e coberto de chapas metálicas enrugadas. Na margem voltada para o poente, inúmeros bares, restaurantes, hotéis, pousadas, barracas de comes e bebes.
Jantei em restaurante de frente ao movimento da beira do lago. Fui de pimentão recheado, salada, acompanhados de muitas tortillas. E me hidratei com dois verdejantes mojitos.
Praticamente não vi indígenas nas ruas de Flores, elas ou eles, menos ainda de trajes tradicionais. A região de Petén concentrava população mestiça, mameluca, vestindo e se comportando de modo semelhante ao chamado mundo ocidental.
Depois do café da manhã, as estradas deixavam ao lado os vilarejos de Paxcaman, Ixlu, El Remate. E finalmente o Parque Arqueológico de Tikal, a atração turística mais internacionalmente famosa da Guatemala. E era para percorrer a pé a extensa área, explorando as principais evidências encontradas e pesquisadas até ali da civilização maia. Junto com Copán em Honduras e Palenque no México, Tikal foi a principal cidade maia daquela época.
Trilhas largas, bem marcadas e sinalizadas conduziam a diversos templos, praças, palácios, pirâmides, campos de jogos de bola, distribuídos pela floresta tropical rica em biodiversidade, entre árvores de grande porte, flores, macacos, aves, lagos, em relevo aplainado ou raros trechos levemente ondulados. O calor massacrava, sobretudo pela alta umidade, embora amenizado pelos caminhos naturalmente sombreados pela mata nativa.
As ruínas se encontravam em diferentes estados de conservação e de remoção da cobertura vegetal e de terra devido à antiguidade, ao abandono da área pelos moradores originais.
Além do templo Maior, fornecendo visão privilegiada de quase toda a área de Tikal desde o topo da pirâmide, dos templos 3, 5, do Mundo Perdido, do Observatório, da Praça dos Sete Templos, o destaque ficou por conta da Praça Principal, onde os templos 1 e 2, frente a frente, estrelavam. Os turistas compareciam em quantidade, sem, contudo, comprometer o silêncio e a tranquilidade para contemplar e apreciar o conjunto arquitetônico.
Na mesma Praça Principal, pequenas estelas, altares sagrados, alto relevo com inscrições, números, hieróglifos maias. Conforme a sinalização, alguns altares circulares ainda poderiam ser utilizados pelos habitantes atuais e herdeiros dos maias originais.
Depois de muito circular, observar, apreciar, estudar, aprender sobre a antiga cidade de Tikal, por mais de cinco horas a pé, a sede e a fome bateram em cheio. Longas mesas do refeitório interno do parque abrigavam grupos de turistas dos quatro cantos do mundo em ambiente arejado, sem paredes, ventilados naturalmente, sem o quase sempre supérfluo ar condicionado. Os simpáticos e descontraídos guatemaltecos serviam entre sorrisos.
Durante a refeição, o guia local emitiu opiniões fundamentadas sobre fatos da recente história da Guatemala, a dos últimos sessenta anos. O estopim veio das calúnias e difamações que a prêmio Nobel da Paz de 1992, a guatemalteca e maia-quiché Rigoberta Menchú, recebera dos meios de comunicação da classe dominante da Europa. Além de defendê-la das acusações, o guia se mostrou politizado e muito bem informado, se posicionando claramente sobre o caráter e as causas da exploração e opressão do povo guatemalteco, indicando que estratos defendiam quais interesses na luta de classes. Leitura simples, clara, direta, didática da situação social do país.
Entre os turistas em Tikal, se ouvia falantes de língua espanhola, japoneses, chineses, coreanos, italianos, franceses, alemães e, pela proximidade e pela dominação neocolonial, figuras provenientes daquele país ao norte do México. Desse último grupo, quatro trintões, embriagados, virando garrafas e garrafas de cerveja, gargalhavam e cantarolavam qualquer coisa, lançando olhares hostis e esbugalhados a quem se aproximasse.
No meio da tarde, de volta à ilha de Flores, dei mais voltas pelas ruas e becos, dessa vez escolhendo as vias internas. Casario interessante, balcões e sacadas de madeira pintada de cores fortes, outras cobertas com telhado de metal, alto e fortemente inclinado. Tuc-tucs avermelhados desfilavam a singeleza pelas ruazinhas em curva.
Jantei guisado de polvo e batatas em molho forte e picante, acompanhado de muito pão. Abri o apetite com uma dose de rum branco e desagradavelmente aromatizado. E encerrei a refeição com dose do mesmo rum, porém envelhecido em barril de carvalho e servido gelado. Sem encantar, desceu melhor que o anterior. Mas, porém, contudo, todavia, o rum, o rei dos destilados na América Central e Caribe e também destilado do caldo fermentado de cana-de-açúcar, perdia feio, em qualquer quesito, para a saborosa cachaça brasileira. E nem precisava ser das cachaças mais gabaritadas, brancas ou envelhecidas. Não era a primeira vez que experimentava e não me empolgava com o sabor do rum. Pela matéria prima empregada, a cana-de-açúcar, inevitável a comparação com a cachaça, esta sim imbatível entre as bebidas alcoólicas destiladas.
Na manhã seguinte, o veículo avançou próximo aos vilarejos de Paxcaman e Ixlu. Na beira do lago Sacnab, ao lado da aldeia de Macanche, lavadeiras se concentravam, cada uma delas em frente à respectiva pedra, para lavarem toneladas de roupas. E também para contar e ouvir as últimas novidades da vila. As crianças aproveitavam para se banhar e se refrescar do calor intenso, úmido e abafado.
O desvio à esquerda da estrada que seguia rumo à divisa internacional com Belize, por caminho encascalhado, levou à entrada do parque de Yaxhá, cujo portal se encontrava fortemente protegido por soldados do exército nacional, fardados e armados até os dentes. Nem em Tikal, a maior atração turística do país, e também a maior concentração de turistas estrangeiros, eu me deparei com tantas expressões carrancudas, uniformes camuflados, armas letais de última geração.
O parque de Yaxhá contava com trilhas largas e limpas rumo a praças principais e secundárias, pirâmides, templos, palácios reais, campos de jogos de bola, longas calçadas de comunicação, altares de sacrifícios e cerimônias, estelas ricamente trabalhadas em alto relevo, observatório astronômico, as torres gêmeas. Variavam o estado de conservação, assim como o estágio de escavação e pesquisa arqueológica. De qualquer maneira, ofereciam oportunidade única para tentar entender ou imaginar a vida e os costumes dos maias, seja por evidências explícitas, seja por inferências e suposições. O parque estava praticamente vazio, garantindo paz, silêncio, tranquilidade, necessárias para a exploração.
Subi as escadarias ao topo das pirâmides. Percorri trilhas pela floresta tropical. Ouvi gritos dos macacos nas proximidades. Observei pássaros variados e coloridos. Absorvi certa quantidade de informações.
O guia simpático e politizado, consciente das causas da catástrofe social que vivia a Guatemala, me deixou no final da tarde no pequeno aeroporto de Flores.
A aeronave de pequeno porte enfrentou zona de turbulência no meio do trajeto. Balançou, oscilou, subiu e desceu, em movimentos bruscos e assustadores. O pânico se alastrou entre os passageiros, que gritaram ou suspiraram alto. O avião se estabilizou em alguns minutos e todos voltaram ao normal, ou quase.
continua...

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