Os hondurenhos e as hondurenhas da região mostravam peles
mais claras, miscigenadas, menos indígenas. Da mesma forma, as roupas seguiam o
padrão ocidental. Os sorrisos, a timidez, a submissão a estrangeiros, no
entanto, se mantinham a mesma desde a Guatemala.
Não demorou a entrada ao parque das ruínas de Copán. Junto
com Tikal na Guatemala e Palenque no México, compunham as três principais
cidades da antiga civilização maia, antes e depois da era cristã.
O estado de conservação variava desde blocos rochosos
desmoronados, construções parcialmente soterradas por terra e vegetação, a
pirâmides e muros restaurados ou reconstruídos. As peças valiosas se
encontravam protegidas no museu arqueológico da cidade de Copán.
Envolto pela floresta tropical, dotada de fauna variada,
entre araras e cotias, as construções maias permitiam a visitação por baixo ou
por cima, subindo as escadarias das pirâmides, templos, etc. Estelas, os monolitos
verticais e intensamente trabalhados, revelavam detalhes da vida da época,
contando com inscrições e hieróglifos que funcionavam como crônicas e relatos
históricos.
O tempo claro e ensolarado, o frescor do final da tarde,
sobretudo a ausência de turistas, permitiram a observação e apreciação de todo
o conjunto, no geral e no particular, com calma e tranquilidade.
No finalzinho da tarde, a pequena Copán, cidade hondurenha
colonial com calçamento de pedra, casario antigo, atmosfera de cidadezinha do
interior. Grupos e famílias na praça da Matriz, missa programada para o começo
da noite, restaurantes, barraquinhas de comes e bebes, os habitantes vestindo roupas de domingo.
Mais à noite, a praça da Matriz se animou em frequência
diversificada e alegre. Em restaurante despojado, com muita madeira rústica e
decoração entupida de objetos de todos os estilos imagináveis, chamou atenção a
placa que proibia a entrada portando armas de fogo. Já avistara essa intrigante
placa na portaria do hotel no centro de Panajachel, Guatemala.
Embora fosse proibida a venda e consumo de bebidas
alcoólicas aos domingos depois das 17h, o restaurante liberava alguns
coquetéis. E a proibição não era sem motivo. Ao entardecer, dezenas de bêbados,
alguns de boa aparência e bem vestidos, cambaleavam pelas ruas e calçadas. Dois
borrachos cismaram com duas turistas,
tentando desajeitadamente ajudá-las naquilo que elas nem precisavam. Mais
babavam e tropeçavam nos próprios beiços do que falavam ou explicavam. Apesar
de tudo, os inofensivos bebuns com os chapelões na cabeça mais divertiam do que
assustavam.
Detonei dois mojitos
permitidos e bem preparados antes de cair de cabeça em carne grelhada com
batatas, picles de legumes, nachos,
pasta de feijão preto.
A praça da Matriz era prestigiada pelos simpáticos cidadãos.
As ruas das imediações, estreitas, escuras e vazias, mas sem amedrontar em
local onde parecia reinar a paz e a segurança. Atmosfera diferente e instigante.
Não muito depois da partida matinal da acolhedora Copán, a
fronteira de volta à Guatemala, pegando o rumo nordeste, passando ao lado de
Chiquimula, Zacapa, Rio Hondo, Los Amates.
As estradas de pistas simples e em asfalto irregular
percorriam vale margeado pela muralha do altiplano guatemalteco a oeste. Cruzavam
terrenos aplainados, tropicais, exibindo paisagens familiares do sudeste
brasileiro. A pobreza se mantinha escancarada. Casas, casebres, barracos, em
péssimas condições. Pontos de educação e saúde caindo aos pedaços,
semiabandonados. Transportes coletivos que tratavam a população como gado,
amontoando gente nas carrocerias. Vestimentas no estilo ocidental, puídas. Nada
de trajes tradicionais indígenas. Mestiçagem acentuada em que homens e mulheres
não apresentavam traços característicos marcantes de nenhuma origem. Algumas
terras cultivadas de frutas. Algum rebanho de animais. Rios encascalhados com
pouco volume de água em razão do inverno costumeiramente seco. Rostos sofridos
e precocemente envelhecidos, deles e delas. Gente explorada, oprimida, largada à
própria sorte.
Parada no sítio arqueológico de Quiriguá. Em meio à
floresta tropical, com árvores seculares de grande porte, evidenciando clima
quente e úmido, o pequeno e atraente conjunto de ruínas maias, guardava estelas
finamente trabalhadas e informativas, altares em alto relevo, pirâmides
cobertas de terra e vegetação ou reconstruídas, praças, campos de jogos de
bola.
Ainda restavam pela frente as cidades de La Ruidosa e
Entre Rios. Depois, a estrada desembocou na cidade portuária de Puerto Barrios,
feia, decrépita, suja, desleixada, bagunçada. Caminhões, cargas, construções de
péssimo aspecto, poluição, congestionamentos, poeira.
Embarquei em lancha simples, à beira das águas do mar do
Caribe, oceano Atlântico. Negros e negras, inexistentes em outras regiões da Guatemala,
começavam a se fazer notar. Travessia agradável até a foz do rio Dulce,
passando por discretas praias ao norte da baía marítima. Milhares de pelicanos
acinzentados pousavam nos trapiches de madeira.
Após acessar a boca do rio Dulce, a lancha ancorou no
trapiche de Livingston. A vila abrigava população negra, indígenas da etnia garifuna, mestiços, brancos, turistas
convencionais, neomochileiros, todos comprimidos em pequeno triângulo de terra
entre a margem esquerda da foz do rio Dulce, o mar do Caribe no oceano
Atlântico, e a não muito distante fronteira internacional com Belize.
Na ruazinha principal da vila, transversal ao rio e ao
mar, repleta de comércio simples e variado, onde pedestres disputavam espaço
com produtos à venda, bicicletas, motos e raros carros, um sujeito que se dizia
panamenho me abordou em inglês e, carregado daquela falsa simpatia profissional,
queria me guiar sei lá aonde. Primeiro adverti que ele se comunicasse em
espanhol, a língua oficial da Guatemala. Ao saber de onde eu era, soltou as balelas
decoradas que adorava o país, que tinha parentes lá, que se encantava com os
brasileiros. E solicitou que o acompanhasse pela vila para que pudesse me
indicar “o melhor restaurante da cidade”. Ignorei, sorri e fui andando. Ele
ainda teve tempo de me oferecer maconha, haxixe e sei lá mais o quê, garantindo
ser “a melhor mercadoria da cidade”.
Ao final da rua cheguei ao mar do Caribe. Praia de mar
aberto, em que as ondas ameaçavam invadir o concreto do passeio. Mal se via a
areia. Bares e restaurantes, velhos e abandonados, casas velhas e abandonadas,
lixo, muito lixo em todos os cantos, desolação, abandono. Apesar do dia claro,
ensolarado, com céu azul e livre de nuvens, praticamente ninguém por ali. No
mar, sobre um recife, imagem de santa pintada de branco.
Circulei pelas ruas paralelas e transversais à rua
principal. Muito reggae vibrando nas casas de madeira ou alvenaria e habitadas por
população negra. Atmosfera geral de desmazelo, indolência, indiferença ao
presente e ao futuro, mas também de descontração, tranquilidade, paz,
segurança, ausência de riscos.
Desci ao porto da cidade, justamente onde começava a rua
principal, e do qual saíam linhas regulares de barco para Puerto Barrios.
Movimento de porto, comércio de beira de porto, sujeira de porto, frequência de
arredores de porto.
Era uma Guatemala impressionantemente distinta da do
altiplano indígena, da capital e de outras regiões, com paisagem, clima, ocupação
humana, cultura em geral, tão oposta.
Encostei o esqueleto em bar bem de frente ao movimento da
rua principal naquele fim de tarde. Um cheiro delicioso de pão quentinho vinha
da padaria do outro lado da rua. De posse do diário, bebericando o daiquiri
aguado e insosso, escrevi minhas impressões e reflexões do dia. Eu parecia um escritor
maldito diante do papel, caneta, o copo, a bebida, frases inspiradas.
Depois de dormir maravilhosamente bem, ouvindo o barulho
do rio sob os efeitos da maré batendo nas muradas do trapiche e os primeiros
motores de barcos cruzando as águas do rio ao amanhecer, saltei da cama para
mais um dia na incrível e diversificada Guatemala.
A lancha partiu cedo, rio Dulce acima. Após margear a vila
de Livingston, na margem esquerda do rio, com casinhas, palafitas, trapiches,
ancoradouros, hotéis, restaurantes, oficinas de embarcações, a lancha entrou
pela garganta estreita e profunda do rio, cercada de altos paredões rochosos esbranquiçados,
lindamente cobertos pela vegetação espessa da floresta tropical. Era um verde
vivo, intenso, proporcionando um bem danado aos olhos, à alma. Nenhuma
construção, lavoura, animais, ao longo das escarpas íngremes e da garganta. As
águas esverdeavam pelo reflexo da floresta desenvolvida nos paredões.
Mais à frente, em cujas margens havia condições
topográficas para construções, se erguiam casas e cabanas esparsas, cobertas de
palha, muitas sem as paredes externas. Canoas levavam pescadores, de anzol,
rede ou tarrafa.
Em seguida à curva acentuada, a lancha encostou à
plataforma onde funcionava escola de ensino fundamental, ao lado de pequena
concentração de cabanas de madeira. Precariedade total, nas carteiras, paredes,
instalações sanitárias, condições de trabalho e materiais à disposição dos
professores. As crianças de uma das duas salas de aula saudaram os visitantes.
A aula foi interrompida. Todos levantaram e cumprimentarem efusivamente.
Sorridentes, os alunos e alunas olhavam curiosos e assustados. A professora pediu
às crianças para cantar uma conhecida canção infantil. Cantaram em várias
línguas, regionais e internacionais. Tanto descaso na qualidade do ensino e as
crianças decoravam canções em línguas diferentes!
Uns turistas da lancha doaram canetas para os alunos mais
próximos. E, intencionalmente ou não, atiçavam a mendicância. Tanto que três
das crianças, pré-adolescentes talvez, abordaram pedindo dinheiro, “one dólar”, ou simplesmente “dinheiro”. Outra
turista, realimentando a mendicância, entregou dinheiro ao mais ousado deles, junto
à recomendação para que dividissem entre si. Ingenuidade, má fé, alienação, não
sei. Mas tais atos, na Guatemala ou em qualquer lugar do mundo, sempre
incentivarão e alimentarão a mendicância. A passageira sensação de consciência
tranquila, de “ajudar de alguma forma”, impedia que percebessem o mal que
cometiam. Mesmo porque, próximo ao ponto final da travessia fluvial, bateríamos
de frente com as causas e os responsáveis pelo descalabro da educação e pela penúria
em que vivia tanta gente pelos interiores do país.
Nova parada à montante em canal da margem do rio Dulce, ao
lado de piscina de águas naturalmente termais, quentes e sulfurosas. Morro
acima, as bocas de duas cavernas com centenas de metros de profundidade no
sentido das nascentes das águas termais. Avistei na trilha dois escorpiões
marrons fugindo em disparada dos meus passos.
Mais acima, em afluente, casas e cabanas de madeira. Entre
as construções, hotel no estilo rústico e sofisticado, voltado para clientes
estrangeiros, endinheirados e bem nutridos, em busca do “verdadeiro contato com
a natureza”.
Ainda no rio Dulce, o início do lago Izabal, em cujas
águas esverdeadas brotavam pequenas e graciosas flores aquáticas de pétalas brancas,
ao lado de vegetação flutuante circular e verde, remetendo à vitória-régia da
Amazônia. Canoas a remo logo se aproximaram, vindas das cabanas das margens, trazendo
mulheres e crianças, vendendo bugigangas de sementes, conchas, madeira,
adornos, colares, brincos, pulseiras.
continua...
Relato bem detalhado e interessante, que dá vontade de percorrer o percurso antes acabar de ler o post. Adorei!
ResponderExcluirwww.sramaia.blogspot.com
Oi Beatriz,
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
Costumo escrever de maneira espontânea, priorizando o que vejo e sinto. Daí, talvez, essa fluidez agradável das leituras.
Além dos relatos em partes que estou publicando dessa viagem, já publiquei no blog diversos relatos de minhas explorações pelos interiores do Brasil e de outros países da América, África, Ásia, Europa. Fique à vontade para ler, pesquisar, comentar, divulgar...
Comente sempre.
Abraços.
Lindas narrativas! Do começo ao fim o leitor se vê como um verdadeiro viandante! Fiquei refletindo como seria interessante se, antes de aventuramos rumo a algum lugar desconhecido, tivéssemos a sorte de encontrarmos uma literatura como esta, completamente fidedigna e isenta! Que Deus o abençoe concedendo-lhe inúmeras viagens como estas porque, no final, somos nós viajamos quem viajamos juntos com também!
ResponderExcluirSara Batelli
Oi Sara,
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
Que bom que gostou e se identificou.
Certamente vai gostar dos demais relatos publicados no blog.
Comente sempre...
Abraços!
Excelente relato. Faz a gente viajar pela Guatemala...
ResponderExcluirApenas um ponto de vista... Em países com acentuado grau de pobreza, geralmente governados por pessoas que viram as costas para as classes menos favorecidas, ou as pessoas dessas classes tornam-se mendigos ou partem para a violência.
Oi Rubenildo,
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
Concordo com seu ponto de vista. Dificilmente alguém parte para a mendicância ou criminalidade por opção, e sim por falta de opção.
No país onde moramos e em nossos vizinhos, para não falar em praticamente em todo o mundo, a injustiça social, aliada à falta de espaços para atuar politicamente, lançam os miseráveis ao desespero.
Comente sempre, esses e outros tantos relatos publicados neste blog.
Abraços!