sexta-feira, 24 de junho de 2016

Guatemala e Honduras (parte 5/6)

...continuação
Pouso sem sustos no aeroporto da Cidade da Guatemala enquanto a noite avançava. Por rodovias com tráfego intenso, sobretudo na saída da capital onde congestionou por vários quilômetros, o veículo tomou o rumo oeste. E logo entrou nas ruas calçadas de pedras irregulares da antiga cidade de Antigua.
Despenquei de sono na cama do hotel.
No salão do café da manhã, franceses não falavam e não entendiam, ou fingiam que não, outra língua que não a deles. E perguntavam de má vontade, sempre em francês, aos prestativos guatemaltecos se não falavam francês. Às respostas negativas, seguiam comendo com ares de enfado. A estupidez recorrente os afastava de todos, os empurrando a guetos, retroalimentando a própria segregação.
Saí pelas ruas de Antigua sem rumo, sem pressa, sem planos.
Embora bonita e razoavelmente bem conservada, a antiga capital da Guatemala, perdia feio para as similares cidades barrocas do Brasil. Construídas sobre terreno plano, as ruas e avenidas, normalmente largas e calçadas de pedra, contavam com traçado quadriculado, rigidamente no esquadro, respeitando os pontos cardeais. As avenidas no sentido norte sul e numeradas sequencialmente de leste para oeste. As ruas no sentido leste oeste e numeradas sequencialmente de sul para norte. Não emanava o charme irresistível dos becos, ladeiras, sinuosidades, traçado irregular, de, por exemplo, Ouro Preto, Tiradentes, Diamantina, Olinda, apenas para citar algumas das mais famosas no Brasil.
Mas Antigua reservava belezas próprias a cada quarteirão. As maiores construções, especificamente as igrejas, se encontravam parcialmente desmoronadas, em ruínas, em escombros, às vezes apenas com a frente em pé, como a Catedral. Reflexos diretos do terremoto de 1976 e dos tremores anteriores. As tais instituições internacionais, que tanto discorrem sobre reconstruções e restaurações, pouco ou nada faziam de concreto. A Catedral exibia, além da frente, pedaços de paredes internas, restos da cúpula e do teto, além de colunas, altos-relevos, imagens, peças em geral, espalhadas pelo chão, largadas ao sol ou sob as lonas plásticas improvisadas. E tudo isso décadas depois do sismo de alta intensidade.
Além da pobreza e miséria da maioria da população, a Guatemala sofria com o abandono da riqueza arquitetônica, histórica, artística, em uma das cidades mais visitadas do país.
Eu já sentia saudades dos ônibus coloridos, as camionetas, ausentes em Petén e na região do mar do Caribe. Para tanto, circulei pelo terminal de ônibus, urbano e interurbano de Antigua, situado atrás dos mercados municipais, me deliciando com o colorido dos veículos, entre o grito dos cobradores sobre os destinos de cada um deles aos potenciais clientes.
Caminhei muito. Apreciei portas, janelas, arcadas da praça Central, minúsculos sótãos acima dos telhados, tecidos brancos e violetas nas janelas indicando a quaresma, eventuais flagrantes de mulheres vestidas ao estilo tradicional de alguma etnia da cultura maia-quiché.
Ao redor da cidade, quilômetros adiante, a visão impressionante dos vulcões Acatenango, De Água e De Fuego, este em erupção explícita, soltando gases e cinzas atmosfera acima.
Na manhã seguinte, o veículo deixou as ruas de calçamento de pedra de Antigua e pegou rodovia rumo ao vulcão Pacaya. Ignorou o trevo de Escuintla e de várias cidadezinhas, como Amatitlán. Após a estradinha acentuadamente sinuosa subir bastante o relevo, se distanciando dos vales e povoados abaixo, atingiu o povoado de San Francisco de Sales.
A caminhada começou por trilha sobre terra escura, coberta de cinza e lava vulcânica pulverizada, oriunda das últimas erupções, em 2010 e 2014. Desde a reativação o vulcão Pacaya já contava com vinte e cinco erupções.
O solo vulcânico, escurecido, favorecia o cultivo de milho e abacate, entre outros itens. Uma usina geotérmica que extraía vapor quente de profundidades de até dois mil metros abastecia a energia de diversos povoados das imediações.
À medida que subia o relevo, o solo se tornava mais escuro e aumentava a granulação do terreno. Vegetação posterior às últimas erupções cresciam ao lado de árvores de médio porte que resistiram aos vulcanismos anteriores, entre elas o carvalho e a árvore de seiva avermelhada chamada localmente de chora sangre.
A vegetação rareava mais acima até desaparecer quase completamente, antes mesmo da subida final à cratera situada a dois mil e quinhentos metros de altitude e inacessível por óbvias questões de segurança. O vulcão Pacaya estava em atividade, soltando gases sulfurosos da extremidade da cratera.
Na base do cone da cratera tudo era cinza-escuro ou preto, proveniente do material basáltico, entre rochas, seixos, encostas, cavidades, matacões. Em uma faixa da encosta se via claramente a zona de contato entre duas lavas solidificadas, a cinza-escuro da erupção de 2010 e a castanho-avermelhada da erupção de 2014. Blocos soltos reservavam orifícios e porosidade, às vezes corpos pequenas cristalizações de quartzo. Nuvens e névoa surgiam do nada e cobriam o cone da cratera e as encostas mais altas. De algumas cavidades no piso da base soprava ar quente a partir de vapores provenientes das camadas mais profundas.
De volta a Antigua, eu desejava comer em local legitimamente guatemalteco e usado no dia a dia pela população trabalhadora. Encontrei autêntico comedor, pequeno, barato, acolhedor, tocado por casal maia-quiché e a filha adolescente. A dona, e também cozinheira, apresentou as duas opções de almoço. Fui de carne, arroz com legumes, guacamole, tortillas. Me hidratei com refrigerante nacional avermelhado. Não saí dali estufado, mas suficientemente satisfeito. Sem falar no preço, irrisório se comparado com os demais restaurantes da cidade e do país.
Em frente à igreja cinzenta da graciosa praça Escuela de Cristo ocorriam os preparativos para uma procissão da quaresma, período ferrenhamente cultuado na Guatemala. Os integrantes, homens, mulheres, meninos, meninas, se vestiam inteiramente de preto, da cabeça aos pés, fornecendo ar grave e funesto ao evento. Fieis e curiosos se aglomeravam na pracinha e no adro da igreja pesadona. Padres, parecendo os chefes do pedaço, revelavam rostos de pele clara, puramente europeus. E usavam e abusavam de expressões duras e autoritárias dirigidas à massa dos membros da procissão em formação, todos indígenas ou mestiços. À frente do cortejo, homens carregavam estandartes, negros, com dizeres religiosos ou ramalhetes de folhas verdes.
Dos interiores escuros da igreja começaram a sair os setores da procissão que percorreria parte das ruas de Antigua. O primeiro bloco se compunha de dois andores robustos de madeira trabalhada pintada em roxo e preto. O primeiro pequeno, o segundo imenso, levando o Cristo morto. Ambos os andores carregados nos ombros por fileiras de meninos em ambos os lados maiores dos retângulos. Na frente do primeiro andor, um menino de braços abertos simulava suportar todo o peso nas costas. Atrás do segundo andor, os músicos, percussão e instrumentos de sopro, conduzidos por maestro, todos também de roupa acetinada e preta. Tocavam temas litúrgicos, extremamente lentos, tristes, pesados. Melodias e ritmos soturnos, fúnebres. Era para sofrer mesmo!
Mulheres vestidas de preto e com véus negros e dourados distribuíam folhetos aos interessados. Os padres ou de outros cargos superiores, chefões puramente europeus, coordenavam os movimentos de todos, sem deixar de lado o semblante carrancudo e impaciente.
Das trevas da igreja começou a sair o segundo bloco da procissão. Novamente dois andores pesados e trabalhados nas cores negra e roxa. Ambos carregavam imagem da santa, o primeiro pequeno, o segundo imenso. Fileiras de meninas com ares de nenhuma satisfação pelo esforço físico levavam os andores nos ombros. Uma criança se postava na frente do primeiro andor, o menor. De braços abertos e cenhos franzidos, ela parecia suportar aos próprios ombros, sozinha, o peso da dor. Atrás do segundo bloco de andores carregados por meninas, também uma banda de músicos com maestro, percussão e instrumentos de sopro, tocando temas fúnebres, percussivos, depressivos, sofridos.
O cortejo passou sobre o tapete de folhas tendo o crucifixo ao centro, deu a volta pela pracinha Escuela de Cristo, pegou a rua dos Passos, ou Primeira avenida, no sentido norte. Fieis e curiosos seguiram atrás.
E voltei para não fazer nada no hotel.
A programação da televisão na Guatemala, aberta ou por assinatura, primava pela mediocridade. Noticiários, telenovelas, inclusive algumas brasileiras, filmes, esportes, programas de auditório, programas femininos, propaganda de empresas evangélicas e católicas, todos, se assemelhavam muitíssimo com a deprimente programação dos canais brasileiros. Um país parecia cópia do outro. Lá como cá, o objetivo é alienar, moldar, conformar, deformar. Nenhuma novidade em países como Guatemala e Brasil onde não há democracia nos meios de comunicação. Em vez de liberdade de Imprensa, as elites impuseram a liberdade de Empresa. Meia dúzia de corporações da mídia controla tudo e todos.
E amanheceu domingo. As ruas estavam tomadas por fieis e curiosos vindos dos vilarejos e cidades da região. A presença de turistas estrangeiros já não se impunha na paisagem humana, tamanha era a quantidade de guatemaltecos circulando por todos os cantos.
continua...

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