O metrô e o ônibus comum me levaram ao Terminal 2 do
aeroporto internacional de Cumbica. Circulei pelos saguões sem consumir nada nos
comércios abusivamente caros. E passei batido pelas lojas do freeshop, inundado de inutilidades.
No início de março o avião apertado decolou quase lotado.
Desembarquei na Cidade do Panamá de manhãzinha. O segundo voo cruzou os céus da
América Central de sudeste a noroeste, do Atlântico ao Pacífico. Ilhas, praias,
oceanos, crateras de vulcões ativos e extintos, lagos, rios estreitos e
sinuosos, serrotes, cidades e vilarejos cintilando ao sol.
O avião pousou na Cidade da Guatemala no final da manhã. Enquanto
a aeronave rodava acima da cidade aguardando autorização para descer, a visão
de três vulcões. O De Fuego, em plena atividade, expelia fumaça cinzenta e
espessa, atingindo centenas de metros acima da cratera. À noite, a lava
incandescente, avermelhada, brilhante, iluminada, escorria da cratera pelas
encostas do cone.
Nos arredores das pistas do aeroporto, favelas e mais
favelas acima dos barrancos de um lado, prédios comerciais e residenciais do
outro.
Avancei por avenidas sem fim da capital, algumas
arborizadas na forma de charmosas alamedas sombreadas, até o bairro chamado de
Zona 10. Fui alertado sobre o risco de roubos e assaltos, em bairros e no
centro da cidade. Mas ali, conhecido como Zona Viva, cheio de prédios altos,
escritórios, hotéis, bares, restaurantes, comércios metidos a besta, não havia
perigo. Não por acaso, muito, mas muito mesmo, em todo canto, policiamento truculento,
segurança privada carrancuda, ostentando armamento pesado, de guerra.
Almocei em restaurante de comida guatemalteca. Comida
saborosa e barata. E atendimento simpático, sempre acompanhado de sorrisos, em
especial da baixinha que assava as tortillas.
A saída da capital se deu via rodovias duplicadas,
altiplano acima, em meio a curvas acentuadas, a sobes e desces. Depois do
subúrbio de Mixco, vilarejos agrícolas cujas mulheres vestiam trajes
tradicionais, coloridos, trabalhados detalhadamente.
A extensa e famosa rodovia pan-americana penetrou na
região de Chimaltenango, razoavelmente cultivada e intensamente viva no
comércio, nas ruas, nos transportes lotados e ariscos. De cara chamaram a
atenção os ônibus coloridos e vivamente decorados. Dotados de carrocerias
antiquíssimas, mas esbanjando charme, as camionetas
reinavam absolutas nas cidades, vilas, subúrbios, rodovias. Motos adaptadas,
com carroceria e cobertura, os tuc-tucs,
similares aos da Ásia, serviam de táxis para corridas mais curtas.
Nas proximidades de Tecpán, estrada vicinal rumo às ruínas
da antiga cidade maia de Iximché. A maquete em exposição na entrada do parque
exibia o que foi a cidade inteira, antes do abandono da população e da
consequente sujeição a intempéries, terremotos, desgastes naturais, à cobertura
de terra e vegetação.
Iximché englobava extensa área, entre pirâmides, praças, palácios, altares
de sacrifício, campos de jogos de bola, bases de oferendas. Mais adiante das
ruínas, após percorrer trilha larga na floresta, ao pé de morro escurecido pela
fuligem das sucessivas fogueiras no chão, duas famílias realizavam rituais para
alcançarem desejos, sonhos, vidas melhores. A fumaça ascendente, as posturas,
os olhares, as expressões, se imbuíam de concentração e fé.
Na beira da estrada almocei linguiça de porco com pasta de
feijão preto e guacamole, acompanhado
de várias tortillas, sobre as quais
apliquei molho e pimenta.
A rota se manteve no asfalto da pan-americana por horas,
até os altos de Sololá, mais precisamente Los Encuentros. Era entroncamento rodoviário
repleto de lotações, ônibus e tuc-tucs.
Meios de transporte populares, camionetas,
caminhonetes, tuc-tucs, lotações em
geral, desrespeitavam descaradamente as mínimas leis de segurança no trânsito.
Excesso de lotação e de velocidade, ultrapassagem nas curvas ou com faixa
contínua, tráfego pela contramão, direção suicida. Tudo para chegar mais rápido
que a concorrência e atender aos absurdos tempos de percurso impostos pelos
donos das frotas. Situação igualzinha à da crueldade imposta aos motoboys da
região metropolitana de São Paulo.
Subi em um daqueles ônibus coloridos, a legítima camioneta, ao lado de guatemaltecos do
altiplano. Vivenciei parte infinitesimal da rotina diária deles. Não chegou a
lotar, pelo menos não naquela rota, naquele dia, naquele horário. Passageiros
subiam e desciam no meio da estradinha estreita e sinuosa, serra abaixo.
Lá no fundo do vale, o centro da cidade de Sololá. Desembarquei
ao lado da suntuosa igreja, decorada internamente com motivos da quaresma e da
páscoa.
Daí rumo ao lago Atitlán. Parada na vibrante cidade de
Panajachel, ocupada por enxames de turistas, sobretudo de neomochileiros,
tentando a todo custo se sentirem naturais e à vontade em meio aos
guatemaltecos. Pelas ruas estreitas abundavam os sensacionais ônibus coloridos,
avermelhados, amarelados, esverdeados, brilhantes. Guardas com armas de guerra
se postavam na frente dos bancos, as instituições sagradas do capital.
O final da tarde corria solto através de sobes e desces
pelas estradas estreitas e sinuosas, margeando escarpas, até o vilarejo de
Santa Catarina Palopó, à margem do lago Atitlán, com direito a vista de três
vulcões que se erguiam na margem oposta.
Amanheceu escandalosa e deliciosamente com o canto dos
pássaros, galos, latidos de cachorros. Circulei pela beira das águas, pelo
ancoradouro cheio de barquinhos esperando os condutores. Mulheres coloridamente
vestidas à maneira autêntica da etnia local começavam a estender tecidos também
coloridos ao longo do beco que dava acesso ao centrinho do vilarejo. Ao final
do beco, caminhei lentamente ao redor da pracinha em cujo centro se erguia
discreta igreja. Caminhões descarregavam lenha que era imediatamente recolhida,
em blocos amarrados e transportados às costas, sobretudo por mulheres vestidas a
caráter.
Em hotel que não oferecia o café da manhã no sistema de
bufê, escolhi a opção sololateca.
Além de café, leite, manteiga, suco, pão à vontade, geleia de morango em
pedaços, veio ovos mexidos com tomate, feijão preto, queijo branco, banana
frita.
O itinerário subiu novamente as escarpas dotadas de vistas
estupendas das águas do lago, vulcões, montanhas, vilas. Passou pela já
conhecida Sololá e pelo trevo em Los Encuentros. E o trajeto tomou estrada
incrivelmente sinuosa, cruzando serra íngreme coberta de vegetação de médio
porte, de um verde pálido pela seca do inverno tropical. Alguns trechos
cultivados, pequenas propriedades, indígenas na lavoura. Elas bem coloridas e
às vezes com turbante, carregando o filho enlaçado às costas. Eles com calças largas,
de tecidos estampados ou de listas verticais, geralmente curtas ou levemente
abaixo dos joelhos, tecidos enrolados na cintura, chapéus de abas largas e
curvas.
Em nenhum nível o ensino era obrigatório na Guatemala,
país com alto índice de analfabetismo. Havia sistema de saúde pública, mas em
colapso total. Faltavam medicamentos, soros, gazes, itens básicos e essenciais
para o mínimo funcionamento. A educação e a medicina privada, para poucos,
sorriam de felicidade diante do caminho livre para mais lucros.
E chegamos a Chichicastenango, cidade serrana abrigando a
tradicional feira ao ar livre das quintas-feiras. As ruas e becos se entupiam de
barracas, tendas, quiosques, oferecendo artesanato, real e industrializado,
produtos para todos os usos imagináveis, comida, sobretudo tortillas claras ou escuras, dependendo da cor do milho, batatas,
frituras em geral, doces, frutas, matérias primas. Vendedores avulsos,
principalmente crianças, circulavam por entre o conjunto, tentando sobreviver e
juntar algum para a família.
A todo instante, vindos das redondezas, carrocerias de
caminhonetes, ônibus coloridos, lotações, despejavam fregueses para a feira.
Era o dia da abundância, da felicidade, ainda que ilusória, do reencontro entre
conhecidos e familiares. As cenas me lembraram dos versos no poema Manhã, de Paulinho Pedra Azul e Marcelo
Drummond.
As igrejas da cidade, sobretudo a de Santo Tomás, de
arquitetura pesada, internamente escura, lúgubre, revelavam atmosfera triste,
soturna. Os fieis ocupavam os corredores com objetos fúnebres, de culto e
comunicação com os mortos. Conjuntos de velas acesas, também nas cercanias da
nave principal, serviam de pontos de orações, pedidos, lamentos, choros, de
familiares dos mortos. Verdadeira neblina cobria os interiores da igreja, entre
murmúrios desesperados, orações cheias de dor, lamúrias sentidas. Era a fé do sincretismo
entre o cristianismo e a crença tradicional maia-quiché, esta registrada no
livro sagrado do Popol-Vuh.
Ambulantes vendiam flores, velas, demais utensílios para
os rituais, nas portas e escadarias das igrejas. No interior de uma delas,
fieis consultavam videntes, adivinhos, místicos, que liam a sorte, previam o
futuro, atendiam pedidos dos mais variados. Os homens sagrados se muniam de
pedras e pequenos objetos coloridos que fizeram lembrar os búzios das também
sincréticas religiões afro-brasileiras.
Assim como os
demais avistados na região, o cemitério da periferia de Chichicastenango usava
e abusava de cores vivas e alegres nos mausoléus, tumbas, lápides. Também ali,
familiares dos mortos acendiam fogueiras para se comunicarem com os que se
foram. Entoavam orações, ora em espanhol, ora em uma das línguas maias.
Almocei em
restaurante simples e, como de praxe entre os guatemaltecos, bem atendido. Fui
de sopa de milho e legumes, tortillas,
muitas tortillas, molhos apimentados
na mesa, carne de porco, arroz, guacamole,
rabanetes.
O comércio das empresas evangélicas florescia em meio à
pobreza da Guatemala. O fundamentalismo lucrava horrores em cima da ignorância,
da falta de escolaridade, despolitização, ausência de democracia e de liberdade
de imprensa, da miséria material e política dos guatemaltecos. Proliferavam
nomes dos mais esdrúxulos e hipócritas nas portas dos cultos farsescos das
corporações evangélicas.
Da cidade de Panajachel, eu tomei lancha matinal. A
embarcação cruzou as águas do lago Atitlán, permitindo a contemplação de
montanhas que cercavam as águas, dos vulcões, vilarejos, eventuais barcos de
pesca.
Atracando na vila de Santiago Atitlán, logo chamou
atenção as roupas tradicionais da etnia Zutuhil. Os homens vestiam calças
listadas, coloridas e curtas, camisas sociais, novas, limpíssimas, passadíssimas,
sem vincos Os chapéus imensos, de abas largas e curvadas para cima. Elas, além das
roupas sempre coloridas e trabalhadas, decoradas de panos nas costas e nos braços,
cobriam a cabeça com tiras de tecido vermelho, quilométricas, enroladas em
dezenas de voltas concêntricas em cujas últimas e externas vinham tiras
coloridas.
continua...
Gosto do seu tipo de relato. Diferente do tradicional "de manhã tomei café, de tarde fiz um passeio pelo centro e voltei cansado para o hotel"
ResponderExcluirOlá Felipe,
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
Blogs têm que ser sinceros e pessoais. Caso contrário não são blogs.
Tento emitir o meu olhar de viajante ao lado de impressões, sensações e reflexões sobre o local explorado.
Mas tem muitos relatos publicados no blog, referentes a diversas viagens que realizei pelo Brasil e por outros países. Confira...
Leia, analise, divulgue e comente sempre.
Abraços!
Muito Boa a explanação, e triste saber da pobreza tanto intelectual quanto na saúde, conforme lua seus relatos me vi transportada à era passada,grata por dividir sua experiência abraços
ResponderExcluirOi Margareth,
ResponderExcluirObrigado pela atenção e pelos comentários.
Nossa América Latina padece desses males há mais de quinhentos anos. E sabemos bem as causas e as possíveis soluções. Quando aparecem governos dispostos a enfrentar e resolver a situação sob a ótica da maioria, logos as elites locais e estrangeiras os derrubam para voltar tudo como era antes, ou seja, mais miséria e mais injustiça social.
Ainda bem que o mundo e as viagens não se resumem a isso.
Espero sua visita em breve.
Comente sempre,
Abraços!
Sua viagem me fez recordar quando cruzei do sul do México até Honduras, apreciando o que nos restou da Civilização Maia.
ResponderExcluirOlá Marcia,
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
Adoraria saber mais de suas experiências na região. Você precisa compartilhar.
Além dos relatos dessa viagem, publiquei outros referentes a inúmeras viagens realizadas pelos interiores do Brasil e de outros países. Leia, comente, divulgue...
Conto com você!
ok, viajante. Escrevo um pouco quando viajo. Mas nem de longe se compara a tua técnica na escrita.
ExcluirBom se quiser pode dar uma olhada por la.
http://caminhosdeviajante.blogspot.com.br/2015/04/rota-maia-o-roteiro.html
Márcia, o importante é escrever o que vê e sente. Simples assim.
ExcluirComente sempre...
Primeira vez que entro no blog. To curtindo muito :)
ResponderExcluirOlá Robson,
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
Espero que leia e curta mais ainda, este e outros tantos relatos já publicados no blog referentes a inúmeras viagens que realizei pelos interiores do Brasil e de outros países da América, África, Ásia, Europa. Fique à vontade para ler, comentar, divulgar, pesquisar...
Comente sempre,
Abraços!
Muito legal!! Vou acompanhar sim o seu blog!
ResponderExcluirOi Heloisa, obrigado pela visita.
ResponderExcluirComente sempre, este e outros tantos relatos que você ler.
Abraços!
Adoro a forma como escreve, me remete a cidade e parece que estou vivenciando aquele momento. Muito bom mesmo.
ResponderExcluirOi Maria, obrigado pela visita e pelos comentários.
ResponderExcluirSempre escrevo o que vejo e sinto. Você irá adorar os demais relatos já publicados neste blog, dos interiores do Brasil e de outros países da América, África, Ásia, Europa. E comente sempre!
Abraços.
Amigo Augusto, super relato de viagem!!!.A comida ,como vc descreveu é super boa!!.E a America Central é forte a crença no sobrenatural...Parabéns 👏👏👏👏👏🌏🌏🌏🌏🙏🏼🙏🏼🙏🏼🙏🏼
ResponderExcluirOlá!
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
Que legal que leu as seis partes dos relatos dessa incrível viagem.
Na maioria dos relatos publicados, em viagens pelo Brasil ou pelo exterior, eu comento sobre a culinária local. Adoro comer e experimentar novos sabores. E a comida guatemalteca se destacou pela qualidade. Deliciosa!
Comente sempre!
Gosto da simplicidade que tu escreve.
ResponderExcluirOlá!
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
Espero que continue lendo os tantos relatos aqui publicados. Tem para todos os gostos e destinos.
Comente sempre!