Em carroceria de caminhonete, meio de transporte muito
comum no país, cruzei toda a vila de Santiago Atitlán, passando acima de
dezenas de lavadeiras esfregando e estendendo roupas sobre pedras na beira das
águas.
Desci para conhecer local de culto sincrético entre o
cristianismo e as tradições da cultura maia-quiché, em torno da divindade
chamada Maximón. Nos fundos de casa simples, com muito lixo na entrada e no
acesso à precária construção, uma estátua ou figura humana masculina coberta de
oferendas e panos, ao lado da imagem do Cristo morto. Na penumbra apenas
iluminada por velas esparsas ou filetes de luz natural, os fieis ofereciam
dinheiro, tabaco, álcool, orando para pedir sorte, felicidade, cura de doenças,
isso e aquilo.
A caminhonete me deixou nas imediações do mercado central.
Mais autêntico que o de Chichicastenango, e também ao ar livre, voltado para a
população local, o mercado de Santiago Atitlán vendia produtos espalhados principalmente
sobre tecidos estendidos no chão. Perambulei pelas estreitas e lotadas vias
entre as centenas de barracas, comidas sobre esteiras no meio das ruas e becos,
lojinhas nas calçadas.
Novamente a lancha para cruzar as águas do lago Atitlán,
no sentido da cidade de Panajachel. Depois, as já familiares estradas pelas montanhas
que rodeiam o lago Atitlán. Passou novamente por Sololá e o trevo de Los
Encuentros, de onde pegou a rodovia pan-americana, via com tráfego intenso de
automóveis, ônibus, caminhões.
Parada para almoçar em restaurante de beira de estrada. Nenhum
turista, apenas guatemaltecos em trânsito. Fui de pimentão recheado, arroz com
legumes, salada mista e, é claro, não poderia faltar, tortillas, muitas tortillas,
para dar sustância. E ainda acrescentei torta de frutas variadas.
E mais rodovia pan-americana antes do ramal rumo à
cidadezinha de San Andrés Xecul, em cujo centro se erguia igreja pitoresca e
destino de peregrinações. A construção, pesada como todas as de herança do
barroco espanhol, comportava frente pintada de amarelo vivo e chamativo,
repleta de imagens de santos católicos e divindades maias, expondo, novamente,
o sincretismo religioso tão comum na América. Os interiores da igreja guardavam
rachaduras significativas decorrentes dos diversos terremotos da história da
Guatemala.
Retomada da rodovia pan-americana, de pista simples após o
trevo de Quetzaltenango. Não faltaram buracos e trechos sem asfalto nas
imediações de Quatro Caminos e San Francisco El Alto, fatores agravados pelo
tráfego intenso, pelas curvas acentuadas, pelo sobes e desces do altiplano guatemalteco.
Impossível superar a velocidade média de 50 km/h.
E surgiam placas nas margens da rodovia, especialmente
junto a zonas residenciais, alertando que a vizinhança se encontrava treinada e
preparada contra a delinquência. Combater as causas sociais e primeiras da
delinquência, porém, não parecia ser a prioridade de ninguém por ali.
O relevo subia sem parar. Cruzamos a barreira dos três mil
metros de altitude. A neblina e as nuvens baixas cobriram tudo e complicaram a
visibilidade. E escureceu sob a chuva fina e intermitente.
No começo da noite, a feia cidade de Huehuetenango. Depois
de largar as tralhas no quarto, desci ao salão de jantar do hotel, demasiadamente
formal. No momento em que eu tocava no guardanapo, artisticamente dobrado sobre
o prato, o garçom apareceu voando, retirou o guardanapo da minha mão, executou
trejeitos no ar, soltando o nó do tecido, e o colocou feito dançarino clássico
sobre meu colo, como se fosse véu único e valioso.
Escolhi sopa típica daquela região, recheada de legumes,
queijo, frango, milho, temperos marcantes. As tortillas, sempre elas, não faltaram e me ajudaram a forrar o
estômago. O atendimento, exageradamente afetado dos garçons descendentes
diretos dos antigos maias, mas simpático, acolhedor, sorridente, perdurou por todo
o lauto jantar.
Nada do bom e velho bufê livre no café da manhã. Escolhi a
opção chapin, ou guatemalteca,
contando com ovos mexidos com tomate e cebola, pasta de feijão preto, queijo
branco, banana assada, manteiga, tortillas,
café com leite. Certamente me abasteceria mais e melhor do que as familiares e
mais leves.
Huehuetenango, cidade de importância econômica e
logística, mas sem belezas arquitetônicas, era base conveniente para explorar
os arredores. Nem bem acabaram as ruas da cidade, e passando por Chiantla, as
estradinhas asfaltadas, mas estreitas e extremamente íngremes, começaram a serpentear
a serra dos Cuchumatanes, subindo acentuadamente, em meio a cruéis sinuosidades.
Nos ziguezagues fechados, os veículos maiores precisavam invadir a pista
contrária a fim de conseguir completar o movimento. As lotações com passageiros
locais transitavam como loucos, ultrapassando nas curvas, em trechos sem
suficiente visibilidade, arriscando a vida de todos. Não por acaso se viam
cruzes afixadas nas beiradas da pista indicando vidas perdidas pela imprudência
deliberada. Precipícios se multiplicavam à medida que a estrada subia.
O tempo que amanhecera encoberto e ameaçador abriu,
liberando o sol para brilhar no céu incrivelmente azul. E o frio veio com tudo.
Comunidades esparsas cultivavam o mínimo essencial
naquelas altitudes. Solos rochosos com evidências vulcânicas. Espécies de sisal
de grande porte, pequenas hortas, rebanhos de ovelhas. População inteiramente
indígena.
O veículo alcançou o topo da serra dos Cuchumatanes, a 3.500
metros de altitude. Dali a vista estupenda, acima das nuvens, do vale a oeste,
dos ziguezagues da estrada, dos precipícios, encostas, vilarejos, partes da
cidade de Huehuetenango, vulcões distantes, inclusive o Tajumulco, o mais alto
da Guatemala, já extinto, com mais de 4.200 metros de altitude.
Crianças e uma senhora idosa logo rodearam implorando
ajuda pra enfrentar as carências da vida miserável. Pedintes e indigência seriam
regra naquela viagem. A situação de miséria e pobreza que vivia a maior parte
do povo da Guatemala decorria de sucessivas ditaduras, civis ou militares, com
ou sem eleições, a serviço das corporações estadunidenses. E esse longo ciclo
de opressão e exploração teve início com o golpe de Estado de 1954, organizado,
financiado e posto em prática pelo regime terrorista ao norte do México,
através de bombardeios aéreos, de apoios logísticos e de armas, de recrutamento
e treinamento de exércitos de mercenários junto a miseráveis dos países
vizinhos, de propaganda na mídia para semear o pânico, de apoio total e
escancarado à elite local e às corporações estadunidenses, em especial à infame
United Fruit, La Frutera. Os contos
do livro Week-End Na Guatemala, de
Miguel Ángel Asturias, tratam com rara lucidez e brilho literário aqueles
eventos criminosos.
Mais adiante dos altos da serra, o veículo percorreu o
altiplano das Cuchumatanes, pouco povoado e raramente cultivado. O frio e o
vento constante fustigavam a paisagem.
Entre mais ziguezagues e relevo acidentado, iniciamos a
descida do outro lado da serra, rumo ao vale onde se localiza a cidadezinha de
Todos Santos Cuchumatán. A descida por estradas estreitas cruzava pequenas
propriedades, construções recentes de dois ou mais pavimentos. Algumas delas exibiam
a bandeira do regime estadunidense, em razão do dinheiro ali empregado vir das
remessas dos guatemaltecos que eram obrigados a se sujeitar a subempregos naquele
país. País cujo regime, não por acaso, era o responsável pela miséria dos
guatemaltecos.
E continuou a descer cada vez mais, até a entrada da
pequena vila de Todos Santos Cuchumatán, encravada na encosta montanhosa. A
estrada principal prosseguia no sentido noroeste, rumo a uma das fronteiras com
o México.
Era o dia da feira semanal dos sábados, ao ar livre.
Destaque para os trajes tradicionais dos descendentes dos maias. Eles,
crianças, jovens e adultos, vestiam roupas impecavelmente novas, limpas,
passadas. Calças longas e largas, vermelhas com listas verticais brancas, camisões
brancos com detalhes e listas finas e verticais azuis, bolsa de tecido
estampado e colorido, chapéu de abas curtas com círculo decorado em tons
azulados. Compunham festival de cores vivas e alegres. Elas naquele festival de
cores e bordados, predominando os azuis, levando o filho enrolado às costas.
Embora de pequena extensão, o mercado a céu aberto vibrava
pelos produtos oferecidos, circulação do povo vestido a caráter para ocasião
tão nobre, sorrisos sempre presentes, pela transparência da manhã ensolarada,
pelo otimismo, ainda que passageiro, dos que se deslocaram de tantos vilarejos
das redondezas.
O veículo refez todo o trajeto da manhã, subindo e
descendo as encostas sinuosas e íngremes da serra dos Cuchumatanes. Passou
batido ao lado de Chiantla e Huehuetenango. Retomou a rodovia pan-americana,
ali ainda de pista simples e trânsito infernal.
Parada para experimentar os chicharrones, o popular torresmo de porco. Era barraca de beira de
estrada caindo aos pedaços, velha e encardida, atendida por casal idoso
vestindo roupas velhas e encardidas. Água corrente ou demais serviços
sanitários por ali, nem pensar. E provei aquela iguaria tão comum nos
interiores guatemaltecos, acompanhada de tortillas,
é claro, e rabanete picado. Tudo na beira da rodovia, estreita, entupida de
ônibus, lotações, caminhões e mais caminhões, com direito a poeira, fumaça de
escapamentos, poluição sonora.
A rodovia pan-americana retomou a pista dupla e melhores
condições do asfalto a partir do trevo de Quetzaltenango, em Quatro Caminos. O
tempo voltou a fechar com nuvens baixas e escuras. A temperatura que voltara a
subir caiu levemente.
Perto de Tecpán, almocei carne de porco e guacamole, acompanhada de, adivinhem, é
claro, tortillas, muitas delas, claras
e escuras.
Recomeçou a chover fino nas proximidades de Chimaltenango
e Mixco, acompanhado de congestionamento respeitável. Entrei na capital da
Guatemala antes de anoitecer.
Levantei com tempo suficiente para detonar no café da
manhã que consistia de farto e variado bufê, livre, à vontade. Ataquei sem dó
nem piedade.
O veículo cruzou avenidas planejadas e bem arborizadas do
centro expandido da Cidade da Guatemala. Margeou a periferia, assustadoramente
pobre, com barracos em vias de despencar dos altos paredões verticais. E pegou
a rodovia de pista dupla no sentido do vale do Motagua.
O sudeste da Guatemala era mais seco, de clima semiárido.
Vegetação rala, solo pedregoso, eventuais leitos de riachos sem um pingo de
água na superfície, pouca terra cultivada, esparsos rebanhos bovinos e ovinos. E
não havia o colorido das culturas indígenas do altiplano. Os tipos físicos
mantinham ainda traços dos descendentes dos maias, porém mais claros, mestiços,
vestindo roupas padrões do mundo ocidental. Em terrenos isolados das margens da
estrada, culturas irrigadas de melões, melancias, mamões. Banquinhas junto ao
asfalto ofereciam os produtos frescos aos viajantes. A pobreza, regra geral em
toda a Guatemala, ali se escancarava com mais evidência, nas moradias,
vestimentas, aspecto de tudo.
Veículos decorados com guirlandas coloridas, inclusive os
alegres e charmosíssimos ônibus antigos, as camionetas,
faziam o caminho de volta de romaria ao local onde se venerava um Cristo negro.
O veículo avançava pelas estradas. Passou ao lado de
Sanarate, Guastatoya, Teculután, Rio Hondo, Estanzuela, Zacapa, Chiquimula,
Jocotán, El Florido. Pertenciam geograficamente ao vale do Motagua, o que fez lembrar
o delirante conto Americanos, Todos!,
incluído no livro Week-End Na Guatemala,
de Miguel Ángel Asturias.
À medida que a fronteira hondurenha se aproximava, mais
miséria e desolação do povo guatemalteco. Numa parada nas imediações de El
Florido, os moradores, sobreviventes na verdade, das casas de taipa cobertas de
palha, apareceram e, assustados, me observaram entre sorrisos tímidos. Eletricidade,
água e esgotos, nem pensar. O Estado não existia por ali, talvez somente com a
costumeira repressão contra os pobres.
E surgiu a fronteira internacional. Os chapéus
gigantescos, de abas largas e curvadas para cima, invariavelmente brancos ou de
cores claras, na cabeça de praticamente todos os homens adultos, deram as
boas-vindas a Honduras. Automaticamente me lembrei da figura do ex-presidente
hondurenho Manoel Zelaya, deposto por golpe de Estado em 2009, financiado e
apoiado pelo regime terrorista daquele país ao norte do México, pelo simples
fato do governo dele ter se preocupado com os pobres.
continua...
Parabéns pelo blog e por esses relatos.
ResponderExcluirMuito interessante a maneira de vocês escreverem e descreverem o que passa. Não dá para parar de ler.
A Guatemala parece diferente a cada local visitado.
Vou continuar acompanhando e pesquisarei outros destinos que vocês exploraram.
Saudações.
Olá, obrigado pela visita e pelos comentários.
ResponderExcluirDurante esses relatos se surpreenderá com o quanto a Guatemala varia fisica e culturalmente em poucas distâncias. Publicarei com calma para todos saborearem lentamente.
Já publicados no blog, diversos relatos referentes a inúmeras viagens realizadas pelos interiores do Brasil e de outros países da América, Ásia, África, Europa.
Leia, comente, divulgue...
Abraços.
Conhecer o mundo através dos olhos de um viajante,tudo indica ,jovem e politicamente esclarecido e um previlégio.Gostei tanto que recorri ao mapa da Guatemala.Obrigado por me fazer companheiro de sua viagens.
ResponderExcluirOlá!
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
Procuro evitar incluir nos relatos apenas dicas e descrições dos locais visitados. De posse de conhecimentos históricos e literários, além da experiência adquirida em viagens anteriores, enfatizo as impressões e sensações vividas, aliadas a reflexões possíveis.
E que bom que você se identificou com essas características dos relatos.
Tem muita coisa já publicada nesse blog, referentes a outras viagens pelos interiores do Brasil e de países da América, África, Ásia, Europa.
Conto com seus comentários.
Abraços!
Que bom que podemos conhecer o mundo através dos olhos de um viajante...e a forma como escreve faz com que a gente se sinta lá...muito bom!
ResponderExcluirOlá,
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
É porque uso e abuso da espontaneidade. Registro em palavras o que vejo e sinto.
Conto com seus comentários nos inúmeros relatos já publicados neste blog.
Abraços!
A minha enorme admiração pelos relatos das suas preciosas viagens! Trabalho sublime! Abraço e felicidades. Ana Maria Oliveira
ResponderExcluirOi Maria!
ResponderExcluirObrigado pela visita e comentários.
Espero que continue lendo, se empolgando e...comentando.
Abraços!