segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Espírito Santo (parte 1/4)

Eis que ela, movida por um saboroso impulso de curiosidade, cismou de viajar ao Espírito Santo.
Adoro impulsos. Então lá fomos para Vitória em meados de julho.
Embarcamos em voo ligeiro que nem deu para esquentar o assento apertado e desconfortável da aeronave. Adiante do relevo montanhoso do interior do Espírito Santo, avistei a serra do Caparaó, na divisa com Minas Gerais, o pico do Cristal e o Pico da Bandeira, aos quais subira, e sob o mais alto acampara doze anos antes, em belíssima caminhada pelo lado mineiro.
Em frente ao aeroporto pegamos ônibus urbano até o hotel localizado na avenida da praia de Camburi.
Chamar de avenida a via que corria entre os prédios e a praia de Camburi seria pura benevolência. Dotada de seis pistas, três indo, três vindo, aquilo mais parecia rodovia, tal o tráfego intenso, a alta velocidade dos veículos e, sobretudo, pela indescritível poluição sonora. O constante e ensurdecedor barulho apenas dava tréguas quando os semáforos se fechavam e a sensação de alívio, ainda que por menos de trinta segundos, nos fazia crer que não enlouqueceríamos.
Caminhamos pelo calçadão da praia de Camburi, com pouco movimento em plena manhã de domingo ensolarado. De frente à praia, mais para esquerda, imagens apocalípticas do porto de Tubarão, por onde a maior parte do minério de ferro extraído em Minas Gerais ia embora a preço de banana para países que em seguida nos venderiam caro produtos manufaturados com o ferro brasileiro. Qualquer semelhança com o Brasil colonial não seria mera coincidência. O povo brasileiro pagou caro, está pagando, e pagará ainda mais por essa prática primária e submissa da economia brasileira.
O mar, a praia e a urbanização do calçadão, incompleta até aquela data, no entanto, agradavam, tinham beleza e eram prestigiados por capixabas e forasteiros, a despeito da barreira de prédios escondendo o sol ao entardecer.
Caminhamos até o início da praia de Camburi, pela ponta com a estátua de Iemanjá, ao redor da qual os pescadores esperavam pacientemente pelas fisgadas, e barquinhos de pesca encostavam ao longo do remanso, entre garças e outras aves em busca de alimentos.
Cruzamos a ponte e entramos na praia do Canto, ao longo dos muitos aterros promovidos na ilha décadas antes no intuito de criar espaços entre os morros e o mar. Espaços principalmente para os automóveis, infelizmente, através de avenidas de muitas pistas.
Ainda mais que Camburi, a praia do Canto se entupia de prédios altíssimos, provocando o sombreamento da praia. Uma ponte dava acesso à ilha do Frade, aproximada da praia pelos aterros. Na entrada da ilha, seguranças, barreiras e câmeras garantiam a tranquilidade dos privilegiados da elite capixaba que residiam nas mansões construídas ao arrepio das leis ambientais. Mais à frente, pelo calçadão da praia, entre parquinhos, gramados, galpões de pranchas e barcos, a ilha do Boi, que deixou de ser uma ilha, conectada à praia por ampla avenida.
Mas o conjunto visual, natural ou artificial, fazia bem aos olhos, particularmente em tarde ensolarada e luminosa. Talvez por estarmos em domingo de julho, nada de multidões ou tumultos. A calma garantia o prazer. Os discretos capixabas, sem alarde, simpatizavam e nos acolhiam na cidade. E a caminhada inspirava, nos impelindo para adiante.
Entre os rostos, muitos loiros e de peles claras. Negros e mulatos eram verdadeiras moscas brancas, raríssimos.
De volta ao quarto do hotel, mais uma vez sentimos a dinamite sonora vinda da “autoestrada” em frente, antes do calçadão da praia do Camburi. Vez ou outra a porta de vidro para a sacada tremia decorrente dos veículos, leves e pesados, voando no asfalto.
Durante o café da manhã seguinte, hóspedes a trabalho ou a passeio. A maioria, apesar de brasileiros, era de loiros ou muito claros. Um casal idoso chamava a atenção. Ambos loiríssimos, altos, carrancudos, feições germânicas, não olhavam para ninguém e trocavam esparsas falas em língua gutural. Ela, de blusa e vestido ultraconservadores, cabelo preso em coque medieval, lembrava as beatas do norte da Europa. E os cenhos franzidos dos dois jamais se abriam. Dias depois, ao subirmos as serras capixabas, veríamos mais desses tipos pouco afeitos a miscigenação, oriundos das fechadas comunidades de pomeranos, alemães, austríacos e afins.
Quase a totalidade dos hóspedes durante o café da manhã se sentava de frente para o televisor do fundo da sala, de costas para mesa dos comes e bebes, deitando os olhares bovinos de sempre, se imbecilizando diante da programação embrutecedora da telinha. Propositalmente de costas para a praga televisiva, eu permanecia de frente para as frutas, sucos, pães, queijos, bolos.
Pegamos ônibus urbano rumo à vizinha cidade Vila Velha, já no continente e ligada a Vitória pela imensa, monstruosa e horrenda Terceira Ponte, um verdadeiro escândalo visual, construída sabe-se lá em que condições de superfaturamento e paga pelo povo capixaba.
Voltada para atender a ditadura do transporte rodoviário, o elefante branco se configurava em crime urbanístico sob qualquer ponto de vista. Para completar o massacre contra a população, instalaram pedágio sobre a ponte. E pedágio caro. Entre as reivindicações que mobilizaram milhões de brasileiros no mês de junho de 2013, os capixabas protestaram contra o valor cobrado nas catracas do pedágio, e também contra o pedágio em si. Arrancaram a primeira vitória, forçando a redução dos preços nos bloqueios. A luta popular continuaria para eliminação sumária daquele absurdo.
No terminal urbano de Vila Velha, outro ônibus até a Prainha, acima da qual ficava o morro e convento da Penha, datado de meados do século XVI.
Subimos a pé o caminho calçado de pedras até a construção branca erguida sobre o rochedo. Nos interiores do convento, capelas e altares foliados a ouro, obras de arte, sala dos ex-votos, mas especialmente a panorâmica e estupenda vista de Vila Velha e da baía de Vitória, a horrorosa Terceira Ponte, as praias de ambas as cidades, os morros, mais montanhas de pedra a se perderem no vasto horizonte azulado.
Lá de cima do morro do convento notei mais claramente a capital capixaba, espremida entre o mar e as montanhas, sobretudo na região do centro velho, uma versão reduzida da cidade do Rio de Janeiro, além dos trechos aplainados surgidos dos inúmeros aterros realizados na década de 1970, invadindo o mar, emendando ilhas.
A segunda capital menos populosa do Brasil, perdendo apenas para Boa Vista em Roraima, Vitória era também menor que as três cidades que se somavam à área metropolitana do centro capixaba, Vila Velha, Serra e Cariacica, compondo um mosaico de alta densidade populacional.
Descemos o morro e relaxamos na Prainha, trecho calmo com casas simples, uma casa de cultura, área da marinha, praça carente de atenção, pequena praia com barcos de pescadores. Mais visões privilegiadas da ilha de Vitória, do convento da Penha, da tenebrosa Terceira Ponte.
Pegamos outro ônibus até a praia da Costa, a principal de Vila Velha. Mais extensa e vistosa que a praia de Camburi, a praia da Costa também era de tombo e contava com a barreira de prédios altos que a privava do sol na parte da tarde.
Famintos pelo adiantado da hora, caímos de cabeça na incomparável moqueca capixaba. Deliciosa, saborosa, seriam adjetivos pobres para qualificar aquela maravilha da culinária brasileira. Além dos tradicionais acompanhamentos, arroz e pirão, a moqueca de dourado nos presenteou com a moquequinha de banana-da-terra, preparada no próprio molho da moqueca. As quatro partes cozidas e servidas nas panelas de barro feitas pelas famosas paneleiras capixabas. O banquete baixou na mesa no momento em que eu me hidratava com a segunda caipirinha, de cachaça branquinha obviamente.
Nem precisaria dizer que detonamos tudo em minutos. E que sabor! Se antes eu tinha dúvidas, agora não mais. A moqueca capixaba humilha a também saborosa moqueca baiana. Não pela ausência do dendê ou leite de coco que aprecio a valer. Talvez pelo uso do tomate, pelo coentro providencial que realça os sabores, pela banana-da-terra como acompanhamento. O certo é que, ao terminarmos de comer, eu já pensava em quando e onde nos enlevaríamos com a próxima moqueca capixaba.
Na volta a Vitória, batemos de frente a enorme congestionamento no alto da tal Terceira Ponte. Cidadãos capixabas iam assistir das galerias da assembleia legislativa à votação que tratava do cancelamento do pedágio na ponte. Mas foram brutalmente impedidos pela polícia militar. Seguiram-se cenas de violência desmedida contra o povo que protestava pacificamente, justamente o maior interessado pela eliminação do pedágio. O trânsito foi desviado e asfixiado no centro de Vitória. Já na descida da ponte assisti à cena deplorável, de pura barbárie. Seis policiais da Tropa de Choque da polícia militar, armados até os dentes, em uniforme de guerra, de capacetes e altos escudos de aço, apontavam modernas armas letais contra três jovens manifestantes postados a vinte metros de distância, os três desarmados, aterrorizados, não sabendo se andavam, sentavam, deitavam ou o quê.
Horror dos horrores de um sistema que defende os interesses de uma minoria de capitalistas contra a maioria do povo. E de uma polícia que jamais poderia ser militar e treinada somente para matar pobres.
Pela manhã e à noite, os capixabas ocupavam o calçadão e a areia da praia de Camburi para praticar exercícios físicos variados. Individualmente ou em grupos, nas atividades organizadas por grupos privados ou públicos. Alegravam a cena noturna da autoestrada da praia, enquanto outros encostavam o esqueleto em bares e restaurantes instalados preferencialmente nas transversais.
De manhã, fizemos longa caminhada até a final da praia de Camburi, já se aproximando da área do porto de Tubarão. No meio do caminho margeamos extensa mata e manguezal pertencente à Infraero que se estendia da praia até o aeroporto. Após o descanso desse verde providencial, nova barreira de prédios altos na avenida, escondendo as montanhas e o sol na parte da tarde.
Pegamos ônibus até o centro velho de Vitória. Circulamos pelas ruas estreitas, ladeiras, escadarias estilizadas, avenidas movimentadas, comércio popular. Entramos em capelas históricas, apreciamos construções imponentes como o palácio Anchieta, o teatro Carlos Gomes, a pesada catedral, a igreja Franciscana. Vitória literalmente se espremia entre o mar e as montanhas de pedra.
Os capixabas, a despeito da discrição e reserva inicial, se mostravam prestativos, acolhedores, atenciosos. Não por acaso a identificação cultural com os vizinhos mineiros que transformaram o Espírito Santo num autêntico litoral de Minas Gerais. E durante o ano todo, conforme os sotaques ouvidos e as placas dos veículos nas ruas.
Engolimos lanche mixuruca em padaria desajeitada. Valeu pelas duas peruas que se sentaram ao nosso lado. Bem coroas, apesar dos cumulativos serviços de funilaria, se produziram tais quais os carros alegóricos da Marques de Sapucaí. Não paravam de falar em compras, preços, pechinchas, promoções, liquidações. As roupas da dupla possuíam cores discretas tais como verde limão, laranja, vermelho, azul celeste. E de todas as partes dos corpos delas balançavam penduricalhos reluzentes. Espetáculo digno de se ver.
O ônibus da volta passou nas imediações da assembleia legislativa, desta vez sem o ataque feroz da polícia militar, mas totalmente cercada por altas grades de aço. Tudo para o povo não se inteirar das ações e conchavos dos nobres deputados estaduais capixabas.
Repetimos a ida a Vila Velha, desta vez nos estendendo às praias de Itaparica e Itapuã, sempre por ônibus conectados em terminais urbanos. Caminhamos bastante sobre as areias fofas das praias. O sol e a claridade de inverno coloriam a paisagem, embora a barreira de prédios altíssimos, por toda a avenida das praias de Vila Velha, cometesse o crime de esconder as montanhas e o tão bem-vindo sol na parte da tarde.
O tombo da praia, a onda violenta estourando diretamente na areia e as águas frias não permitiram que eu permanecesse por mais tempo dentro da água, mas me deliciei a valer. Raríssimos banhistas na areia, menos ainda dentro d’água.
Pela manhã, esperamos a entrega do carro básico da locadora que acertáramos no dia anterior. Subiríamos as montanhas capixabas evitando ao máximo o tráfego infernal das BR’s, passeando sem pressa, apreciando, contemplando, percorrendo rodovias locais.
continua...


5 comentários:

  1. Espírito Santo não foge à regra dos demais estados relatados por você, todos com suas características culturais, problemas sócios econômicos, urbanização, poluição, turismo, deslumbrantes belezas naturais, monumentos históricos, elefante branco, culinária apetitosa, dirigentes cegos, nossas riquezas exportadas à preço de banana...adorei ler cada pedacinho percorrido e não imaginava que este estado possuísse tantas praias belíssimas. Pena que são agredidas por construções à beira mar, é a especulação imobiliária que avança em prol de um turismo lucrativo. Brasil é Brasil, torço para que haja mudanças urgentes. Continuo caroneira virtual. Ah! espero que quando eu chegar ao final da viagem ainda exista alguma moqueca. rsrsrs Até. Abraços.

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  2. Obrigado pelos comentários, Ivete!
    Embora seja um estado e uma cultura pouco comentados, o estado e os capixabas reservam agradáveis surpresas, a despeito dos desmandos da classe dominante local. Mas as moqueca, ah essa moqueca capixaba.....é de matar!!!

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  3. Vitória: capital do Espírito Santo é conhecida como "Ilha do Mel", pela sua beleza geográfica e amenidade de seu clima. É a terceira capital mais antiga do Brasil. Possui casarões coloniais, escadarias, pontes, monumentos arquitetônicos e históricos... Seus parques, praças e praias encantam os moradores e visitantes.

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  4. Vila Velha: Esse municipio é o berço da colonização espiritossantense. Situado na região da Grande Vitória, apresenta praias urbanizadas e também balneários bucólicos, contando ainda, com ótima infra-estrutura turística. Tem no setor de comércio e serviços, suas principais atividades economicas, seguidas pela industria, com destaque para os gêneros de alimentação: Chocolates Garoto, Salibrás e Biscoito Alcobaça; construção civil e confecções, contando com o Pólo de Confecções da Glória, o maior do Estado.

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  5. Olá, Rosilene, obrigado pela participação.
    Comente sempre!
    Abraços!

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