segunda-feira, 17 de setembro de 2012

do Pará ao Piauí (parte 3/4)

...continuação
A voadeira pelas águas e vilas do rio Preguiças partiu no início da manhã com passageiros de várias partes do Brasil. Paramos no povoado de Vassouras, onde caminhamos pelas dunas do chamado Pequenos Lençóis. Descemos mais à frente na vila de Mandacaru, local do farol da Marinha e do qual se tem visão de 360 graus de toda a região após subir os cento e sessenta degraus em espiral. Ventava fresco no topo e ninguém queria deixar aquela vista refrescante e privilegiada.
Seguimos rio abaixo e em poucos minutos desembarcamos no povoado de Caburé, onde eu me hospedara cinco anos antes. Permanecemos ali mais de três horas, tempo suficiente para beber umas e outras, almoçar bem, apreciar a vista do rio e das dunas, conversar bastante com um casal, ela maranhense, ele mineiro. Doutorados, bem formados e informados, exibiam pontos de vista progressistas sobre diversos assuntos nacionais.
A volta foi brindada com céu completamente azul e sol forte na cabeça. O manguezal das margens do rio guardava vegetação variada, inclusive árvores de grande porte cujas raízes se lançavam feito tentáculos ao solo.
A caminhonete me pegou na tarde seguinte rumo ao passeio na região da Lagoa Bonita, em meio às dunas do parque nacional dos Lençóis Maranhenses. Era caminho mais distante, e bem mais vazio também, que a rota usual da Lagoa Azul. Perfeito.
Foi mais de uma hora na carroceria coberta da caminhonete por trilhas de areia fofa. Não faltaram chacoalhadas, solavancos, buracos, curvas acentuadas, passagens de rios e lagoas. Tremendamente empolgante, a despeito do desgaste físico, dor nos braços, costas e bunda.
O veículo nos deixou no limite da duna de vinte e cinco metros de altura, por onde subimos e começamos a explorar livremente os Lençóis. A paisagem revelava um deserto sem fim, enriquecido com lagoas esverdeadas nas maiores depressões, fruto de acumulação de água das chuvas do primeiro semestre. O impacto visual imediatamente deslumbrou a todos. Plena sensação de liberdade diante daquela imensidão de areias e água doce.
Paramos primeiro na Lagoa do Clone, antes de seguir até Lagoa Bonita, uma das maiores da região. Reconfortante nadar nas águas límpidas e transparentes, recepcionados por peixes minúsculos, depois subir a duna, descer acelerado e mergulhar novamente. Ventava constantemente e a sensação térmica não podia ser mais agradável.
Andei livremente pelo entorno da lagoa, subi e desci outras dunas, mergulhei em mais lagoas, flutuei, nadei. Repetia tudo em diversos pontos daquele infinito, um mais encantador que o outro. Conversei, contemplei, relaxei.
Então nos dirigimos a mais alta das dunas a fim de contemplar o pôr-do-sol. O céu estava azul, quase sem nuvens. O sol se pôs avermelhado, enquanto a cor da areia evoluía de creme a cinza claro. O vento deslocava finas camadas de areia junto ao chão e desenhava véus esbranquiçados que acariciavam as dunas.
Encaramos novamente as trilhas de areia esburacada na carroceria da caminhonete, desta vez no escuro, mais lentamente.
À noite, me sentei na cadeira da calçada, jogando conversa fora com o dono da pousada. Logo aterrissaram dois espertinhos que transportavam turistas desavisados de Barreirinhas a Jericoacoara, cobrando uma fortuna. Alegavam isso e aquilo contra os veículos de linha e a favor das maravilhas do esquema deles. Eu, que não nascera ontem e sabia dos preços e condições, inclusive já percorrera o caminho anteriormente, questionei-os e recusei aquela generosa oferta. Nem pensar. Que fossem esfolar os gringos!
Eu me entristecia em ver a população local de Barreirinhas, ou de outros pontos do Maranhão, alijada pelos turistas. Os visitantes não viam com bons olhos os moradores locais frequentando os mesmos bares, restaurantes, os trechos por onde andavam na orla do rio Preguiças. Discriminação aceita com naturalidade pela maioria dos turistas. Repugnante. Revoltante.
Preferi seguir o caminho inverso do rebanho geral e comi em quiosque utilizado apenas pelos maranhenses, que servia espetinho misto, acompanhado de salada, baião-de-dois e farinha. Os turistas, claro, preferiam se amontoar junto a outros turistas. Comi bem, bastante, barato, sem falar no atendimento descontraído.
Logo cedo eu estava de prontidão na caminhonete de linha. Ao se aproximar o horário da saída, a caminhonete lotou e tratei de ocupar um assento. Era curto para as pernas, me obrigando a abri-las e pressioná-las contra a pessoa do lado e contra a madeira da frente da carroceria. Precisei me afastar um pouco e me sustentar sobre as coxas.  Pelo menos não faltavam locais para me segurar com as mãos, sobretudo nas alças do bagageiro sobre a cabine bem à minha frente, durante os buracos, curvas, solavancos.
E lá fomos nós, sempre entrando mais um e esmagando os passageiros um pouquinho mais. Mais três passageiros subiram após o posto da fiscalização e sentaram sobre a própria cabine da caminhonete, em frente das bagagens. Apreciei a paisagem e o movimento dos passageiros. Atravessamos o final dos Pequenos Lençóis, cruzamos dunas e lagoas.
Antes do meio-dia eu desembarcava em Rio Novo (Paulino Neves), em frente à casa do proprietário da segunda caminhonete que me levaria até Tutóia. Era casebre sem as mínimas condições de vida humana, banheiro sem descarga, sem água corrente. Achei uma sombra com cadeira e me sentei na varanda da casa. Minutos depois a moradora me comunicou que a caminhonete não iria mais a Tutóia naquela tarde. Sugeriu que eu aguardasse outra que passaria na esquina acima, no mesmo horário. Permaneci naquela esquina deserta, tórrida, sem sombra e com rajadas de areia. Tudo fechado na cidade, sol abrasador. Embarquei e me sentei numa das ripas de madeira da carroceria coberta de pedaços de papelão.
No meio da tarde desci em Tutóia e me hospedei no hotel de sempre. Optei pelo quarto sem ar condicionado, sem forro, facilitando a ventilação natural.
Comi alguma coisa ali mesmo e me dirigi ao porto da cidade. Más notícias. O barco que percorria o trecho até Parnaíba, via o Delta, já não navegava mais. Ninguém informava com precisão o que realmente acontecera. Restava a opção de seguir de ônibus.
Caminhei pela longa rua até a praia da cidade. O hotel que me salvou durante o carnaval de cinco anos antes, o único com vagas naquela ocasião, ainda estava lá, assim como o navio encalhado e enferrujado no mar em frente. Sentei-me na mesinha sob o guarda-sol de palha de buriti e tomei uma. Som, apenas do vento, das ondas do mar e do farfalhar das palhas acima da minha cabeça. Sensação de paz em contato direto com a natureza. Não durou muito. Um mentecapto estacionou o carro ao lado das mesas e ligou a poluição sonora. Abafava os sons suaves e naturais da praia com o lixo estrangeiro dos bailes de mela-cueca da década de 1970. Foram quinze eternos minutos de tortura até a múmia paralítica perceber que não agradava e se mandar sabe lá para onde. A natureza voltou a reinar e os seres humanos agradeceram.
Tutóia melhorou na região central com calçadões, jardins, praças e bancos para descansar. Os adolescentes prestigiavam os novos locais. A cidade, livre das festas chatas e poluídas, se revelava tranquila e ideal para não fazer nada.
Segundo a dona do hotel, o barco da linha Tutóia/Parnaíba afundara no porto da cidade piauiense durante a noite, sem ninguém a bordo. Ainda conforme a descrição dela, o vigia noturno notou a entrada de água, nada fez e assistiu passivamente o dito cujo ir a pique. Versão para lá de obscura.
O trajeto rodoviário de três horas correu tranquilo em ônibus praticamente vazio. Saí do Maranhão e desembarquei no ponto final, centro de Parnaíba, Piauí. Peguei a mochila e em vinte minutos de caminhada pelo centro comercial da cidade eu entrava na pousada.
Encontrei restaurante na ponta da bela e tranquila praça de Santo Antônio. Instalado em antigo casarão, o estabelecimento oferecia pratos da culinária regional. Comi peixe ensopado com muitas espinhas, após arrombar o apetite já aberto com duas caipirinhas preparadas com cachaça piauiense, e antes de encerrar com a famosa e saborosa cajuína do Piauí.
A área central da cidade de Parnaíba, mais precisamente nas imediações da avenida Getúlio Vargas e da praça de Santo Antonio, permanecia limpa, bem urbanizada e aconchegante. O vento soprava sempre e garantia temperaturas agradáveis no final da tarde e à noite.
Depois de jantarmos, emendamos na avenida Beira Rio, ponto tradicional da noite parnaibana. Poucos bares e restaurantes animados, músicas ao vivo no estilo voz e violão, repertório padrão. Poucos metros adiante, adolescentes endinheirados disputavam qual o som do carro mais potente. Exageravam no volume com aquele lixo comercial de sempre. O chão chegava a tremer pela poluição sonora, interferindo agressivamente na música suave dos restaurantes. Encerramos a noite pela madrugada.
Me incluí no passeio de barco pelo Delta do Parnaíba. Me pegaram na porta do hotel e seguimos ao porto dos Tatus, margem direita do rio Parnaíba e de onde partiria o barco. Cerca de cinquenta passageiros, cearenses na maioria, preenchiam as cadeiras do piso inferior e superior.
Percorremos canais do rio Parnaíba até a foz propriamente dita. Frutas variadas foram servidas para alegria geral. O barco atracou na ilha dos Poldros, pertencente a empresários espanhóis que a utilizavam para extração de produto primário local a ser transportado integralmente para a Espanha. Horror! A conquista e a pilhagem dos invasores europeus mantinham-se inalterada desde 1500.
Desembarcamos em praia fluvial da ilha invadida pelos espanhóis e caminhamos até a praia de mar aberto mais à frente. Desatracamos, contornamos, acessamos o igarapé dos Periquitos. O barco desligou o motor e a tripulação serviu o almoço.
Seguimos às dunas. Desembarcamos e circulamos pelas dunas do local, nos banhando nas águas do rio, nos empanturrando de caranguejo servido em mesinhas de plástico dispostas especialmente sobre a areia da praia fluvial.
Defeito catastrófico do barco eram as caixas de som que vomitavam o lixo comercial. Meu colega de conversas tomou a iniciativa de desconectar os cabos das caixas e, imediatamente, foi apoiado por outros passageiros. O mundo tem salvação!
No fim da tarde encerrávamos o passeio e voltávamos à região do Porto das Barcas. O sorvete no beco antigo daquele bairro, berço de fundação de Parnaíba, encerrou o dia.
Aproveitei a noite numa lenta caminhada pela avenida Getúlio Vargas, pelas paralelas, pelas transversais. Tudo vazio, silencioso, arborizado, limpo, bonito. Na volta, sentei na calçada da pousada e me refresquei ao vento sempre presente, diante da lua cheia.
Pela manhã caminhei mais pelas ruas da região central da cidade e arredores. Andava colado às paredes e muros das calçadas na busca desesperada por sombra. O sol literalmente torrava a cabeça, embora o ar seco impedisse a sensação de desconforto extremo do calor. Desemboquei na avenida Beira Rio, entrando em restaurante ainda vazio e silencioso. Não por muito tempo, infelizmente. Um casal estacionou em frente ao restaurante a caminhonete absurdamente grande. Manteve a porta aberta, da qual borbulhava a barulheira costumeira. E se instalou com o filho pequeno em mesa próxima à minha. Fim da tranquila contemplação à bucólica margem do rio Igaraçu. A poluição sonora dos carros particulares voltava a atacar sem pedir licença. Terminei o que já estava no final e fugi a fim de preservar meus ouvidos.
Parecia impossível encontrar paz na tarde de domingo. Me sentia cercado e acuado pela barulheira dos carros. Muitos brasileiros, desgraçadamente, sentiam pavor do silêncio, dos sons suaves da natureza, de ouvir música em volume humano. A cada ano eu sentia o fundo do poço afundar mais e mais, muito abaixo do limite inferior da mediocridade.
Não saí naquela noite. Resolvi me entregar à preguiça que me envolveu. Li bastante. Consultei mapas, cochilei, belisquei as castanhas. Adormeci cedo e nada mais. 
continua...

4 comentários:

  1. Comer a comida local de Barreirinhas foi a melhor coisa que você poderia ter feito! Comi em um restaurante em frente ao rio, às moscas, uma comida terrível. No outro dia comi o famoso p.f.- prato feito por uma quantia baixíssima e foi tão bom quanto qualquer p.f. deveria ser.

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  2. Marcela, que bom ouvir isso de você e saber que nem tudo está perdido nessa massificação do turismo.
    Abraços!

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  3. Parabéns pelo site, conteúdo bom e muito bem descrito e escrito. estou me interessando mais pelo ramo, pois também sempre estou viajando por causa do trabalho, mas turismo está mais crescente agora. Uai, antes de estar aqui cai na página http://www.onibuspassagens.com.br/ que achei muito boas as dicas dadas sobre passagens de ônibus. Abração

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  4. Olá, bom dia.
    Obrigado pela visita e pelo comentário.
    Publiquei relatos de várias viagens pelos interiores do Brasil e países da América, Europa, Ásia.
    Boas leituras e reflexões. Comente sempre.
    Abraços!

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