Nem trinta dias disponíveis nas férias da pós-graduação. Decidi
aproveitar minhas milhas acumuladas em destinos familiares naquele começo de julho.
O despacho de bagagens da empresa aérea estava o caos no
aeroporto de São Paulo. Filas imensas desembocavam em somente dois balcões de
atendimento, lentamente. Outros passageiros tentavam acessar outros balcões,
cruzando transversalmente as dezenas de filas, carregados de pesadas e
volumosas malas, por onde não havia espaço nem para um alfinete. Um mundaréu de
gente usando e abusando das acotoveladas, empurrões, pisadas, pressões,
agressões verbais. Tudo prestes a explodir diante da primeira faísca ou
descarga nervosa de alguém mais irritado.
E ali estava a elite privilegiada que conseguia viajar de
avião. Não era o povão tão discriminado por essa mesma elite. Eu jamais
presenciara tais cenas de barbárie em nenhuma estação rodoviária pelo país ou em
portos fluviais da Amazônia.
Durante o voo aproveitei para usar e abusar das leituras, desde
que um indivíduo ao meu lado exagerava na cerveja e na inconveniência. Falava
aos berros, cuspia e incomodava até não poder mais. Dei-lhe a prensa e ele passou
a cochilar pesadamente entre goles de álcool.
Minha amiga me esperava no saguão do aeroporto de Belém, me
levando ao único hotel com vagas disponíveis em função de um prestigiado evento
científico na cidade. A espelunca era ponto de encontro de casais, com preços
por hora, pagamento adiantado e demais finezas. Consegui quarto no final do
corredor do segundo andar, menos barulhento, mas com luz queimada no banheiro,
sem cabides ou armário, janela que não fechava, permitindo a livre entrada de
carapanãs.
À noite, esperei a amiga e outros convidados em frente ao
teatro da Paz, ao qual adquiriram ingressos para apresentação de pianista
acompanhado de pequena orquestra de jovens. Emendamos em bar informalmente
instalado no quintal da casa do proprietário e músico que se juntava a amigos
para tocar choro.
O ridículo café da
manhã do motel, servido no quarto, mal deu para coçar o estômago. Apenas uma
fatia de mamão, oito bolachas, manteiga, café e leite.
Seguimos a um restaurante em Icoaraci, distrito a leste de
Belém, lugarejo pacato e simpático, de frente para a baía de Guajará. Optamos
pela caldeirada de filhote no tucupi, acompanhado de caipirinhas, suco de
cupuaçu e doce de bacuri.
No dia seguinte caminhei despreocupado pelo centro antigo
de Belém. Sentava-me em bancos sombreados e permanecia ali somente na
observação da paisagem e vaivém das pessoas. O calor, como não poderia deixar
de ser, marcava presença.
Almocei bem no bufê de comida paraense do restaurante na
Estação das Docas. Entrei de cabeça no pernil ao tucupi com jambu e arroz,
regado a caipirinhas. Duas tigelas de creme açaí fresco com farinha de goma de
tapioca fecharam com chave-de-ouro o lauto almoço.
De volta ao meu luxuoso motel. Enquanto aguardava a
entrega da chave do quarto, feita através de barreira de grade e vidro escuro, um
casal assanhado esquentava, ainda na portaria, para as tarefas a serem realizadas
no quarto.
Como o preço para os encontros furtivos era cobrado por
hora, o cliente recebia comanda na qual seriam marcados os itens eventualmente
consumidos durante o ato de amor. E o recepcionista inquiria o casal: “querem
camisinha?”. Se o cliente aceitasse a delicada sugestão, o recepcionista pedia
de volta a comanda e marcava o item consumido. Tudo em voz alta para todos
ouvirem. A mulher não sabia onde enfiar a cara. O homem demonstrava embaraço e
não via a hora se trancar no quarto com a parceira.
Encontrei as amigas em café instalado dentro de loja de
informática que fechava cedo. Rolava música ao vivo suave, em meio à frequência
ouriçada. O estabelecimento não cobrava couvert artístico, não cobrava taxa de
serviço, não cobrava café, não cobrava água mineral. No mínimo, curioso.
Já no quarto suntuoso do motel, enquanto escovava os
dentes, liguei a televisão de 14 polegadas suspensa na parede. O único canal
que exibia boa imagem era o com programação exclusiva de sexo explícito. Tenebroso.
Esse tipo de filme deve ter sido concebido de maneira maquiavélica por
conservadores e adeptos fanáticos da abstinência sexual. Não poderia haver
outra explicação para serem tão horríveis. Sob todos os aspectos possíveis.
Sobretudo aquele que deveria conduzir à excitação ou ao empurrão para casais mais
tímidos. Bastavam alguns minutos para as cenas provocarem exatamente o efeito
contrário, ou seja, a repulsa ao sexo ou qualquer atividade afim. Talvez
aqueles filmes incluídos nas programações da televisão durante a semana santa
excitassem mais que os tais rotulados de eróticos ou pornográficos.
O café da manhã servido no quarto do motel surgia do nada,
sem ser chamado ou esperado, sempre entre 7h e 8h.
Fui ao porto de onde partiam barcos rumo a Curralinho,
Breves, Melgaço, Portel. Nos pequenos ancoradouros próximos ao porto, voadeiras
e canoas traziam cestas entupidas de açaí fresco, cobertas de palha da palmeira
para proteger os frutos do sol escaldante. Compradores analisavam a qualidade,
negociavam os preços, pechinchavam, levavam o açaí para ser centrifugado e
vendido nas lojas da cidade.
Caminhei nas imediações pelas ruas estreitas, esburacadas
e sujas da chamada Estrada Nova, margeada por casebres de madeira sobre
igarapés fétidos. Mais à frente, após o quartel da Marinha, relaxei na sombra
ventilada do Mangal das Garças antes de retomar a caminhada.
Parei na portaria de segurança máxima do motel. Conversei
com o recepcionista e porteiro, enquanto, vez ou outra, entravam e saíam casais
de idades, tipos e sexos variados. O encanador que tentava solucionar problema
em um dos quartos mais usados pelos casais que pagam por hora veio perguntar na
recepção quando vagaria o quarto ao lado daquele em conserto, então ocupado. O
porteiro respondeu na lata: “Faz menos de meia hora que os clientes entraram e
não sei quando acabarão. Tu queres apressar os coitados, é?”.
Tomamos o mais famoso tacacá de Belém. E emendei com bolo
de macaxeira, seguido de saborosa torta de cupuaçu com chocolate.
Depois do café da manhã mixuruca, embarquei no ônibus com
destino a Vigia de Nazaré, no norte do Pará. A cidade era pequena, plana,
aconchegante, se estendendo na margem do braço de mar, junto a manguezais. As
ruas estreitas, com algumas construções históricas, abrigavam dezenas de milhares
de paraenses durante a semana de carnaval. No restante do ano vivia de pesca
artesanal, de rede, ou linhas extensas com até sessenta anzóis pequenos em cada
uma.
Perambulei bastante por ali. Deu meio-dia, a cidade fechou
o comércio e mergulhou no silêncio. Até a feira nas ruas, tão movimentada nas
proximidades do mercado de peixes, desapareceu por completo. Centenas de urubus
sobrevoavam e cobriam os telhados do mercado, os muros na beira da água, postes
de linhas de transmissão. Fugi do sol ardido em restaurante simples que servia
comida boa e barata em longas mesas coletivas.
Caiu forte pancada de chuva e tive que me proteger sob a marquise
do comércio ainda fechado. Caminhei de volta à rodoviária assim que estiou
temporariamente. Só foi me sentar nos bancos da estação que o aguaceiro
retornou com vontade.
Ao anoitecer eu estava de volta ao meu querido motel em
Belém.
Comemos, eu e a colega sempre presente nas noitadas,
deliciosa pizza coberta de jambu e camarão.
Pela manhã me sentei por bom tempo na bela e prestigiada
praça Batista Campos. Apreciei o verde, o bom gosto do desenho dos jardins e
coretos, as mulheres dando infinitas voltas ao redor a fim de perder os indesejados
quilinhos. Segui até o parque museu Emílio Goeldi, com zoológico, trilhas, árvores
seculares como a samaumeira e o mogno, muita sombra e verde exuberante.
Entrei no Parque da Residência para almoçar em restaurante
por quilo, frequentado por engravatados, executivos, representantes da fina
flor da sociedade belenense. Retomei o longo percurso pela rua Gentil
Bitencourt, sombreada de mangueiras, como as demais vias dos arredores. Nuvens
negras e pesadas se acumulavam no céu, ameaçando fortes chuvas para o final da
tarde.
Os lençóis e toalhas do motel eram trocados diariamente. E
eu recebera lençóis limpos da arrumadeira naquela tarde, lavados e cheirando a
limpo. Mas com manchas vermelhas, de sangue, e manchas claras, formando cascas,
de sêmen. Nada surpreendente para um hotel de encontros. As manchas se
concentravam em uma das extremidades do tecido. Arrumei então o lençol de tal
maneira a ficarem no lado oposto àquele que eu costumava dormir.
Fomos a pub no bairro de Batista Campos, em estilo
irlandês. Se enquadrando perfeitamente no ambiente, lá estava um individuo sentado,
sozinho, bebendo cerveja. Bebia muito. Ia constantemente ao banheiro, com
dificuldades para se equilibrar. Não deu outra. Horas e inúmeros copos depois
ele despencou no chão, levando consigo copos, cadeiras e mesa. Imediatamente,
mas com discrição, os garçons o levantaram e o transportaram dali. Para onde,
ninguém soube. O bêbado, de meia idade e com aparência de endinheirado, não
ofereceu resistência.
A recepção do motel me cobrou as diárias vencidas. À vista.
Aquele estabelecimento jamais aceitaria cheque ou cartão.
Belém se esvaziava com a aproximação do final de semana. Muitos
belenenses fugiriam para as praias, marítimas ou não. Linhas especiais de
barcos grandes partiam às tardes da sexta-feira com destino a Mosqueiro.
Novo almoço reforçado na base de muito tucupi, jambu e
creme de açaí fresco. Saí estufado, bem alimentado e feliz.
À noite comi cachorro quente paraense, que levava carne
moída no lugar da salsicha. Quando a salsicha era usada, o sanduíche recebia o
nome de hot-dog. Repetimos a noite na casa dos músicos de choro. Ouvimos
boas músicas. Bebemos caipirinhas coadas cujo sabor deixava a desejar.
Almocei com elas em restaurante caro, instalado no parque
novo e ainda com poucas árvores frondosas. Evitamos a área interna frequentada
pela elite e com o sempre indesejado ar condicionado. Optamos por mesa na
varanda, em contato com o vento, mais próximo da paisagem natural. Destaque
para a música ao vivo que brilhou com violonista e clarinetista em repertório
de choros e sambas antológicos.
Revi o ótimo filme Batismo
de Sangue ao lado delas. Depois sentamos na Estação das Docas, bebemos
caipirinhas e debatemos sobre o tema do filme, a história de resistência
popular à ditadura civil e militar, Frei Beto, o autor do livro que deu origem
ao filme e de quem uma delas era muito amiga. Prosseguimos a noite em outro
bar. Passavam das 4h da manhã quando me deixaram na porta do motel, trancado
pela grade de ferro, como sempre.
Almoço na Estação das Docas. Esticada ao pôr-do-sol em
frente à Casa das Onze Janelas. Imagem belíssima do sol mergulhando nas águas
da baía de Guajará.
À noite, reprise do divino e mais famoso tacacá de Belém. Os
efeitos da noitada anterior me endoideciam para dormir cedo.
continua...
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