A voadeira pelas águas e vilas do rio Preguiças partiu no
início da manhã com passageiros de várias partes do Brasil. Paramos no povoado
de Vassouras, onde caminhamos pelas dunas do chamado Pequenos Lençóis. Descemos
mais à frente na vila de Mandacaru, local do farol da Marinha e do qual se tem
visão de 360 graus de toda a região após subir os cento e sessenta degraus em
espiral. Ventava fresco no topo e ninguém queria deixar aquela vista refrescante
e privilegiada.
Seguimos rio abaixo e em poucos minutos desembarcamos no
povoado de Caburé, onde eu me hospedara cinco anos antes. Permanecemos ali mais
de três horas, tempo suficiente para beber umas e outras, almoçar bem, apreciar
a vista do rio e das dunas, conversar bastante com um casal, ela maranhense,
ele mineiro. Doutorados, bem formados e informados, exibiam pontos de vista
progressistas sobre diversos assuntos nacionais.
A volta foi brindada com céu completamente azul e sol
forte na cabeça. O manguezal das margens do rio guardava vegetação variada,
inclusive árvores de grande porte cujas raízes se lançavam feito tentáculos ao
solo.
A caminhonete me pegou na tarde seguinte rumo ao passeio
na região da Lagoa Bonita, em meio às dunas do parque nacional dos Lençóis
Maranhenses. Era caminho mais distante, e bem mais vazio também, que a rota
usual da Lagoa Azul. Perfeito.
Foi mais de uma hora na carroceria coberta da caminhonete
por trilhas de areia fofa. Não faltaram chacoalhadas, solavancos, buracos,
curvas acentuadas, passagens de rios e lagoas. Tremendamente empolgante, a
despeito do desgaste físico, dor nos braços, costas e bunda.
O veículo nos deixou no limite da duna de vinte e cinco metros
de altura, por onde subimos e começamos a explorar livremente os Lençóis. A
paisagem revelava um deserto sem fim, enriquecido com lagoas esverdeadas nas
maiores depressões, fruto de acumulação de água das chuvas do primeiro
semestre. O impacto visual imediatamente deslumbrou a todos. Plena sensação de
liberdade diante daquela imensidão de areias e água doce.
Paramos primeiro na Lagoa do Clone, antes de seguir até
Lagoa Bonita, uma das maiores da região. Reconfortante nadar nas águas límpidas
e transparentes, recepcionados por peixes minúsculos, depois subir a duna,
descer acelerado e mergulhar novamente. Ventava constantemente e a sensação
térmica não podia ser mais agradável.
Andei livremente pelo entorno da lagoa, subi e desci
outras dunas, mergulhei em mais lagoas, flutuei, nadei. Repetia tudo em
diversos pontos daquele infinito, um mais encantador que o outro. Conversei,
contemplei, relaxei.
Então nos dirigimos a mais alta das dunas a fim de
contemplar o pôr-do-sol. O céu estava azul, quase sem nuvens. O sol se pôs
avermelhado, enquanto a cor da areia evoluía de creme a cinza claro. O vento
deslocava finas camadas de areia junto ao chão e desenhava véus esbranquiçados
que acariciavam as dunas.
Encaramos novamente as trilhas de areia esburacada na
carroceria da caminhonete, desta vez no escuro, mais lentamente.
À noite, me sentei na cadeira da calçada, jogando conversa
fora com o dono da pousada. Logo aterrissaram dois espertinhos que
transportavam turistas desavisados de Barreirinhas a Jericoacoara, cobrando uma
fortuna. Alegavam isso e aquilo contra os veículos de linha e a favor das
maravilhas do esquema deles. Eu, que não nascera ontem e sabia dos preços e
condições, inclusive já percorrera o caminho anteriormente, questionei-os e
recusei aquela generosa oferta. Nem pensar. Que fossem esfolar os gringos!
Eu me entristecia em ver a população local de
Barreirinhas, ou de outros pontos do Maranhão, alijada pelos turistas. Os visitantes
não viam com bons olhos os moradores locais frequentando os mesmos bares,
restaurantes, os trechos por onde andavam na orla do rio Preguiças. Discriminação
aceita com naturalidade pela maioria dos turistas. Repugnante. Revoltante.
Preferi seguir o caminho inverso do rebanho geral e comi
em quiosque utilizado apenas pelos maranhenses, que servia espetinho misto,
acompanhado de salada, baião-de-dois e farinha. Os turistas, claro, preferiam
se amontoar junto a outros turistas. Comi bem, bastante, barato, sem falar no
atendimento descontraído.
Logo cedo eu estava de prontidão na caminhonete de linha. Ao
se aproximar o horário da saída, a caminhonete lotou e tratei de ocupar um
assento. Era curto para as pernas, me obrigando a abri-las e pressioná-las
contra a pessoa do lado e contra a madeira da frente da carroceria. Precisei me
afastar um pouco e me sustentar sobre as coxas.
Pelo menos não faltavam locais para me segurar com as mãos, sobretudo
nas alças do bagageiro sobre a cabine bem à minha frente, durante os buracos,
curvas, solavancos.
E lá fomos nós, sempre entrando mais um e esmagando os
passageiros um pouquinho mais. Mais três passageiros subiram após o posto da
fiscalização e sentaram sobre a própria cabine da caminhonete, em frente das
bagagens. Apreciei a paisagem e o movimento dos passageiros. Atravessamos o
final dos Pequenos Lençóis, cruzamos dunas e lagoas.
Antes do meio-dia eu desembarcava em Rio Novo (Paulino
Neves), em frente à casa do proprietário da segunda caminhonete que me levaria
até Tutóia. Era casebre sem as mínimas condições de vida humana, banheiro sem
descarga, sem água corrente. Achei uma sombra com cadeira e me sentei na
varanda da casa. Minutos depois a moradora me comunicou que a caminhonete não
iria mais a Tutóia naquela tarde. Sugeriu que eu aguardasse outra que passaria
na esquina acima, no mesmo horário. Permaneci naquela esquina deserta, tórrida,
sem sombra e com rajadas de areia. Tudo fechado na cidade, sol abrasador.
Embarquei e me sentei numa das ripas de madeira da carroceria coberta de
pedaços de papelão.
No meio da tarde desci em Tutóia e me hospedei no hotel de
sempre. Optei pelo quarto sem ar condicionado, sem forro, facilitando a
ventilação natural.
Comi alguma coisa ali mesmo e me dirigi ao porto da
cidade. Más notícias. O barco que percorria o trecho até Parnaíba, via o Delta,
já não navegava mais. Ninguém informava com precisão o que realmente
acontecera. Restava a opção de seguir de ônibus.
Caminhei pela longa rua até a praia da cidade. O hotel que
me salvou durante o carnaval de cinco anos antes, o único com vagas naquela
ocasião, ainda estava lá, assim como o navio encalhado e enferrujado no mar em
frente. Sentei-me na mesinha sob o guarda-sol de palha de buriti e tomei uma.
Som, apenas do vento, das ondas do mar e do farfalhar das palhas acima da minha
cabeça. Sensação de paz em contato direto com a natureza. Não durou muito. Um
mentecapto estacionou o carro ao lado das mesas e ligou a poluição sonora.
Abafava os sons suaves e naturais da praia com o lixo estrangeiro dos bailes de
mela-cueca da década de 1970. Foram quinze eternos minutos de tortura até a
múmia paralítica perceber que não agradava e se mandar sabe lá para onde. A
natureza voltou a reinar e os seres humanos agradeceram.
Tutóia melhorou na região central com calçadões, jardins,
praças e bancos para descansar. Os adolescentes prestigiavam os novos locais. A
cidade, livre das festas chatas e poluídas, se revelava tranquila e ideal para
não fazer nada.
Segundo a dona do hotel, o barco da linha Tutóia/Parnaíba
afundara no porto da cidade piauiense durante a noite, sem ninguém a bordo.
Ainda conforme a descrição dela, o vigia noturno notou a entrada de água, nada
fez e assistiu passivamente o dito cujo ir a pique. Versão para lá de obscura.
O trajeto rodoviário de três horas correu tranquilo em
ônibus praticamente vazio. Saí do Maranhão e desembarquei no ponto final, centro
de Parnaíba, Piauí. Peguei a mochila e em vinte minutos de caminhada pelo
centro comercial da cidade eu entrava na pousada.
Encontrei restaurante na ponta da bela e tranquila praça
de Santo Antônio. Instalado em antigo casarão, o estabelecimento oferecia
pratos da culinária regional. Comi peixe ensopado com muitas espinhas, após
arrombar o apetite já aberto com duas caipirinhas preparadas com cachaça
piauiense, e antes de encerrar com a famosa e saborosa cajuína do Piauí.
A área central da cidade de Parnaíba, mais precisamente
nas imediações da avenida Getúlio Vargas e da praça de Santo Antonio,
permanecia limpa, bem urbanizada e aconchegante. O vento soprava sempre e
garantia temperaturas agradáveis no final da tarde e à noite.
Depois de jantarmos, emendamos na avenida Beira Rio, ponto
tradicional da noite parnaibana. Poucos bares e restaurantes animados, músicas
ao vivo no estilo voz e violão, repertório padrão. Poucos metros adiante,
adolescentes endinheirados disputavam qual o som do carro mais potente.
Exageravam no volume com aquele lixo comercial de sempre. O chão chegava a
tremer pela poluição sonora, interferindo agressivamente na música suave dos
restaurantes. Encerramos a noite pela madrugada.
Me incluí no passeio de barco pelo Delta do Parnaíba. Me
pegaram na porta do hotel e seguimos ao porto dos Tatus, margem direita do rio
Parnaíba e de onde partiria o barco. Cerca de cinquenta passageiros, cearenses
na maioria, preenchiam as cadeiras do piso inferior e superior.
Percorremos canais do rio Parnaíba até a foz propriamente
dita. Frutas variadas foram servidas para alegria geral. O barco atracou na
ilha dos Poldros, pertencente a empresários espanhóis que a utilizavam para
extração de produto primário local a ser transportado integralmente para a
Espanha. Horror! A conquista e a pilhagem dos invasores europeus mantinham-se inalterada
desde 1500.
Desembarcamos em praia fluvial da ilha invadida pelos
espanhóis e caminhamos até a praia de mar aberto mais à frente. Desatracamos, contornamos,
acessamos o igarapé dos Periquitos. O barco desligou o motor e a tripulação
serviu o almoço.
Seguimos às dunas. Desembarcamos e circulamos pelas dunas
do local, nos banhando nas águas do rio, nos empanturrando de caranguejo
servido em mesinhas de plástico dispostas especialmente sobre a areia da praia
fluvial.
Defeito catastrófico do barco eram as caixas de som que
vomitavam o lixo comercial. Meu colega de conversas tomou a iniciativa de
desconectar os cabos das caixas e, imediatamente, foi apoiado por outros
passageiros. O mundo tem salvação!
No fim da tarde encerrávamos o passeio e voltávamos à
região do Porto das Barcas. O sorvete no beco antigo daquele bairro, berço de
fundação de Parnaíba, encerrou o dia.
Aproveitei a noite numa lenta caminhada pela avenida
Getúlio Vargas, pelas paralelas, pelas transversais. Tudo vazio, silencioso,
arborizado, limpo, bonito. Na volta, sentei na calçada da pousada e me
refresquei ao vento sempre presente, diante da lua cheia.
Pela manhã caminhei mais pelas ruas da região central da
cidade e arredores. Andava colado às paredes e muros das calçadas na busca
desesperada por sombra. O sol literalmente torrava a cabeça, embora o ar seco
impedisse a sensação de desconforto extremo do calor. Desemboquei na avenida
Beira Rio, entrando em restaurante ainda vazio e silencioso. Não por muito
tempo, infelizmente. Um casal estacionou em frente ao restaurante a caminhonete
absurdamente grande. Manteve a porta aberta, da qual borbulhava a barulheira
costumeira. E se instalou com o filho pequeno em mesa próxima à minha. Fim da
tranquila contemplação à bucólica margem do rio Igaraçu. A poluição sonora dos
carros particulares voltava a atacar sem pedir licença. Terminei o que já
estava no final e fugi a fim de preservar meus ouvidos.
Parecia impossível encontrar paz na tarde de domingo. Me
sentia cercado e acuado pela barulheira dos carros. Muitos brasileiros,
desgraçadamente, sentiam pavor do silêncio, dos sons suaves da natureza, de
ouvir música em volume humano. A cada ano eu sentia o fundo do poço afundar
mais e mais, muito abaixo do limite inferior da mediocridade.
Não saí naquela noite. Resolvi me entregar à preguiça que
me envolveu. Li bastante. Consultei mapas, cochilei, belisquei as castanhas.
Adormeci cedo e nada mais.
continua...
Comer a comida local de Barreirinhas foi a melhor coisa que você poderia ter feito! Comi em um restaurante em frente ao rio, às moscas, uma comida terrível. No outro dia comi o famoso p.f.- prato feito por uma quantia baixíssima e foi tão bom quanto qualquer p.f. deveria ser.
ResponderExcluirMarcela, que bom ouvir isso de você e saber que nem tudo está perdido nessa massificação do turismo.
ResponderExcluirAbraços!
Parabéns pelo site, conteúdo bom e muito bem descrito e escrito. estou me interessando mais pelo ramo, pois também sempre estou viajando por causa do trabalho, mas turismo está mais crescente agora. Uai, antes de estar aqui cai na página http://www.onibuspassagens.com.br/ que achei muito boas as dicas dadas sobre passagens de ônibus. Abração
ResponderExcluirOlá, bom dia.
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelo comentário.
Publiquei relatos de várias viagens pelos interiores do Brasil e países da América, Europa, Ásia.
Boas leituras e reflexões. Comente sempre.
Abraços!