Dormi maravilhosamente bem no quarto silencioso da pousada silenciosa em cidade silenciosa. Nem precisei conferir o horário de acordar ao ouvir as seis badaladas da igreja matriz.
Comi bem no café da manhã servido na própria cozinha da pousada. A copeira cursava o último ano do magistério, pretendendo seguir pedagogia na universidade, embora sonhasse estudar artes cênicas, carreira mal vista pela família dela.
Circulei por entre becos e ruelas fascinantes, algumas ladeiras, o ribeirão do Inferno fluindo com pouca água pelas pedras. As colinas e montanhas ao redor, as casas de pedra mineira, o casario antigo e a igreja de Santo Antônio, maciçamente de pedra.
Segui pela rua lateral à igreja que mais à frente se transformou na trilha do Vau, em descida no meio da serra pedregosa. O ribeirão do Inferno se mantinha à esquerda, agora em vale mais afastado, mais alargado, mais profundo. O amplo vale do rio Itacambiruçu aparecia adiante, a partir do qual as sequências de montanhas rochosas ascendiam a perder de vista. Caminhei sobre pedras soltas e trechos arenosos, ao lado de cerrado e agreste repletos de mandacarus, xiquexiques, macambiras, flores amarelas, as minúsculas flores brancas e concentradas em pontos isolados. Escavações esparsas com grandes placas rochosas removidas apontavam para extintos pontos de garimpos de diamante.
E bati de frente com o rio Itacambiruçu, de águas esverdeadas e praias de areias brancas, entre trechos de rochas acastanhadas. Somente eu, os pássaros, lagartos, a natureza em paz naquela manhã. O sol castigava sem dó nem piedade, queimando a pele, esquentando a cabeça mesmo com chapéu, me cegando em brilhos fortes.
A sede amargava a boca e a garganta ao pisar novamente nas ruas da cidade. Detonei garrafa grande de água, me sentei em restaurante e aguardei a fome dar sinal de vida. O ambiente oferecia sobre móveis antigos livros e textos sobre a região, fotos, pinturas. E trilha sonora embalava os clientes na base de música brasileira de qualidade, puxada por intérpretes das imediações, mais Elomar, Geraldo Azevedo, João Bosco, Vital Farias, entre outras feras do universo. E valeram as conversas sem fim com o proprietário sobre a história e situação atual da região. Ele chamou a atenção para os males sociais e ambientais causados pela monocultura de eucalipto, o deserto verde, a praga que beneficia meia dúzia de capitalistas da gang do agronegócio, enquanto a maioria sofre com a degradação ambiental, a falta de empregos, a diminuição do plantio e oferta de alimentos, antes cultivados naturalmente naquelas terras.
Saí aproveitando a luminosidade de fim de tarde, apreciando o contraste das ruas e construções com a serra pedregosa ao redor. A cada ladeira que subia e obtinha visão mais panorâmica desse cenário, mais me encantava com o local e mais me excitava com a possibilidade de ficar bastante por ali.
Jantei comida saborosa, sempre precedida de duas doses da cachaça curraleira e sucedida por cocada caseira. Dei voltas pelo centro iluminado de Grão Mogol, cujo resultado noturno encantava ainda mais.
Encontrei o início ascendente da trilha das Ruínas da Tropa. O caminho, largo, calçado de pedras, ou aberto naturalmente sobre as pedras originais, lembrava outras grandes rotas de tropeiros do Brasil. Passei sobre ponte de pedra, caprichosamente construída séculos antes para evitar o vale de ribeirão seco. Circundei ruínas de construções feitas de pedras superpostas com intuito de abrigar os antigos caminhantes nas noites de descanso. Contemplei o visual de Grão Mogol bem abaixo e das montanhas e demais cristas rochosas ao redor.
A vegetação do cerrado e do agreste abrigava bromélias, arbustos com flores amarelas, árvores retorcidas, mandacarus, xiquexiques, palmas. Reparei em enorme e assustadora casa de marimbondos, a poucos centímetros de mim, grudada sob a laje de pedra sobre a qual tinha me apoiado. As doces criaturas se acumulavam na boca estreita e circular, alertas, as mais afoitas já alçando voo, prontas a se defenderem de meus movimentos suspeitos.
Atingi quase o topo da serra, onde o olho d’água refrescante apontava para ponto de coleta de água dos caminhantes atuais e dos tropeiros séculos antes.
Após o jantar, Grão Mogol adormeceu deliciosamente cedo, sem alarde, sem neuras, tranquilamente.
No começo da manhã subi a trilha do Barão, calçada por escravos séculos antes, em áreas do parque estadual de Grão Mogol. O tempo encoberto mantinha tudo sob uma luminosidade uniforme, sem maiores contrastes ou realce de cores. Mas facilitou o esforço da caminhada, jamais cansando em excesso.
A subida gradual exibia blocos rochosos de formatos variados, alguns inusitados, configurando grutas, características físicas de animais, plantas, em meio ao cerrado de altitude, com poucas árvores de porte, muitos arbustos e vegetação rasteira. Pássaros, lagartos, abelhas, marimbondos, reinavam absolutos na fauna local. Após a primeira elevação atingi os campos de altitude, extensos areais, pontos de água, alagadiços, com flores minúsculas de formatos e cores variadas, entre vermelha, rosa, amarela, roxa, lilás, azul, branca. As abelhas faziam festa ao redor delas.
Ao final dos campos, nova elevação, vegetação arbustiva, rochas justapostas, visão a leste de colinas e vales bem abaixo se estendendo no horizonte. Quase cheguei ao ponto de descida da serra, do outro lado. Mas, satisfeito, resolvi dar meia volta.
A emissora FM de Grão Mogol exibia programação noturna de música brasileira variada e agradável de ouvir. O repertório transitava dos clássicos aos sucessos do momento, sem apelar para o lixo descartável, aquele que costumeiramente vomitava da televisão, bares, sobretudo carros, massacrando os ouvidos de quem estivesse próximo. E o curioso é que não havia locução ou comerciais na emissora. Somente vinhetas com a hora certa e a frase gravada “sequestraram o locutor!”. Parabéns!
O restaurante ao qual eu me dirigia todas as noites permanecia vazio de clientes. Era eu, somente eu, mais o casal e a cozinheira, os três do outro lado do balcão. E nessa calmaria tão bem-vinda eu me recolhia cedo, observava ligeiramente as ruas vazias, me deitava cedo rumo a mais uma noite silenciosa e bem dormida.
Perambulei pela discreta feira na praça da Biblioteca Municipal. Os ônibus caindo aos pedaços traziam os lavradores dos povoados vizinhos para vender produtos frescos na cidade. Dispunham as ofertas pelo chão, calçadas, sob a mangueira do centro da praça, à espera dos compradores urbanos. Em pouco tempo tudo se foi, o povo da roça recolheu as cestas, comprou o imprescindível e o supérfluo nas lojas do centro, embarcou nos ônibus velhos de volta para a zona rural. Além dos agricultores locais, paraibanos ofereciam mantas, redes, panelas, bugigangas em geral.
Circulei pela margem esquerda do ribeirão do Inferno, após passar pela pequena e simpática capela do Rosário. O esgoto escuro e fétido era despejado impunemente de ambas as margens, apodrecendo o ar local, turvando e escurecendo as águas a caminho da cachoeira do Inferno e da garganta profunda mais adiante. O que já foi o poço da cachoeira, ora ponto privilegiado para os moradores se banharem e se refrescarem, se transformou em água negra, podre, fedorenta, entupida de detritos de todos os tipos, todo o lixo de Grão Mogol, matando o charmoso ribeirão que corta a cidade.
Agressivos projetos de mineração envolvendo grandes empresas privadas brasileiras e estrangeiras prometiam profundas mudanças sociais, econômicas, políticas, ambientais, culturais naquela região de Minas Gerais. O que aconteceria com a paz, tranquilidade e o jeito mineiro de ser de cinco municípios envolvidos, incluindo a ainda charmosa cidade de Grão Mogol? E a produção de alimentos pela agricultura familiar que abastece as cidades nas feiras? E a quantidade e qualidade das águas que brotam e correm de todos os lados? A recém-inaugurada usina hidrelétrica de Irapé veio para abastecer o complexo mineral ou a população da região? A monocultura de eucalipto que envenena vastas áreas dos municípios tenderia a crescer, fornecendo lenha para os megaprojetos, diminuindo ainda mais a produção e oferta de alimentos saudáveis?
Outra dúvida que me vinha em tantas viagens pelos interiores do Brasil. Quem escolhia sintonizar na rede Globo os milhares de televisores espalhados por rodoviárias, hospitais, consultórios, órgãos públicos, salas de espera em geral, bares, restaurantes, salões de hotéis e pousadas, aeroportos, locais afins por todo o Brasil? Quem se deu a esse direito ou a essa arbitrariedade? Será que era daí que a tal rede obtinha os tão alardeados altos índices de audiência?
Doei os livros já lidos, Ladrão de Cadáveres, da Patrícia Melo, e um de coletâneas de pensamentos, do educador e mestre Paulo Freire, para a copeira da pousada, que os recebeu com muita felicidade.
À medida que eu subia o ribeirão do Inferno, a montante da cidade, o vale se estreitava ao longo do curso das águas douradas e ainda limpas, com paredões verticais na margem esquerda e encosta íngreme coberta de vegetação agreste na margem direita. No final, ao lado de pequena barragem, me sentei, liberando a mente às reflexões sobre aquela viagem que se aproximava do fim.
E o entardecer ensolarado fluiu sem alarde, na bem-vinda preguiça, com o comércio fechado naquele sábado e a cidade mais quieta que de costume.
À noite houve a festa de São Pedro em bairro situado nos altos de Grão Mogol, organizada pelos próprios moradores. Transferida da matriz, a missa foi rezada ao ar livre no mesmo trecho dos festejos. Depois a quadrilha de crianças se exibiu acompanhada de música ao vivo, fogos, rojões, fogueiras acesas. O público acompanhava com palmas, ameaças de danças e muita animação.
Porém, após a quadrilha, veio um tal de desfile “country”, também só de crianças. Pavoroso! As coitadas das crianças, algumas com menos de cinco anos de idade, desfilavam imitando passarelas da moda, ou tentavam a partir do que assistiram pela televisão, sob a trilha sonora de músicas estrangeiras, provavelmente daquele regime terrorista ao norte do México. O mau gosto das roupas, da coreografia, das músicas, dos trejeitos da gurizada, era ruim de fazer dó. Pisada de bola inexplicável em pleno norte de Minas Gerais. Tirando os familiares, fotografando as vítimas mirins, a maioria pareceu não se animar e virou as costas. E eu, diante de tamanha deturpação cultural de festejo tradicional do Brasil, fugi dali imediatamente, de volta ao centro da cidade.
O casal dono da pousada me ofereceu um almoço de despedida na base de estupenda galinha ao molho pardo. E acompanhada de arroz, farofa de andu, salada verde com jiló cru, suco de laranja pera e lima da pérsia. Tudo precedido da divina curraleira, cachaça purinha, branquinha, artesanal. Detonei três pratos substanciosos. Saciei minha fome com comida saborosa em companhia para lá de acolhedora.
Acordei cedo para pegar o ônibus madrugador no único e bizarro horário. Embarquei no momento em que o sol despontava por trás das montanhas. Os pés das serras e baixadas se cobriam de cerração, produzindo efeito luminoso belíssimo com o sol do começo da manhã. Parada no deprimente distrito de Barrocão e na cidade de Francisco Sá, no pé da borda oeste da Serra Geral.
Travei instrutivas conversas com o colega de assento, agricultor e batalhador diante da falta de apoio governamental e do boicote do agronegócio. Avistamos o acampamento Santa Marta de trabalhadores rurais sem terra, na beira da rodovia, próximo a Francisco Sá. O colega ressaltou que nas imediações do vale do São Francisco os assentamentos do MST abasteciam as populações com alimentos variados, de qualidade, sem agrotóxicos, a preços convidativos. E que esses assentamentos davam o exemplo aos demais lavradores da região do cultivo na forma de agricultura familiar, cooperativada, sem envenenar os solos, sustentável social e ambientalmente.
Desembarquei no terminal rodoviário de Montes Claros. Não deixava de ser interessante estar em cidade grande, hospedado próximo ao movimentado terminal rodoviário, ao lado de hotéis de tipos diversos. Por perto, ainda havia o abominável xópin, repugnante como qualquer um do gênero pelo mundo afora. Pelas ruas, pessoas circulavam em meio ao anonimato, olhares que nada tinham de curiosidade e espanto, como os que eu recebia pelos interiores menos visitados, mas sim cheios de segundas e terceiras intenções. Eu me aproximava da minha megalópole natal.
Durante o jantar, um casal jovem se sentou do mesmo lado da mesa, de perfil para o televisor instalado em parede lateral. Ela se virava a todo instante, mantendo o patético olhar bovino nas bobagens da programação, dando as costas para o rapaz. Desconsolado, ele esfregava as mãos no próprio rosto ou ficava olhando o vazio. Nada diferente das demais mesas, desse e de outros restaurantes das imediações. Os frequentadores, que saíam de casa em casal, com a família, em grupo de amigos, não conversavam, não se olhavam, não se notavam. Preferiam se idiotizar diante da programação embrutecedora da televisão.
Embarquei em ônibus lotado procedente de Espinosa. No caminho, visão instigante e animadora das montanhas da cadeia do Espinhaço de um lado, e a serra do Cabral do lado oposto.
Desci em São Paulo naquele início de julho. E, assim que entrei em casa, já comecei a fuçar o mapa na busca de roteiros para a próxima viagem ao deslumbrante norte de Minas Gerais.
muito bom Augusto viajar pelos seus textos, por lugares encantadores descritos de forma tão real, um abraço, abençoado Novo Ano.
ResponderExcluirHá várias viagens por diversos lugares do Brasil e do mundo já publicadas aqui no blog. Se delicie com os relatos e depois me conta o que achou...Abraços e ótimo 2012!
ResponderExcluirComo é agradável ler seus textos de viagem!
ResponderExcluirVoltarei mais vezes para conhecer mais os lugares por onde andou.
Abraços,
Bilá Bernardes
Obrigado pelos comentários. Há muitos relatos neste blog que passam por Minas Gerais e demais estados do Brasil, sobretudo da Amazônia. Fique à vontade para pesquisar, ler, comentar, divulgar...Abraços!
ResponderExcluirQuando você diz assim “... Fã ardoroso de estradas de terra...”, ou “...Foi um maravilhoso mergulho nos sertões do norte mineiro...”. Eu fico admirada! Viajar por Minas é assim... É sentir-se solto e respirar. Isso por si só já revela um desapego das mediocridades. (Já notei essa particularidade em você) O que eu gosto de ler em seus registros de viagem, é que, você sabe bem que ao viajar, não nos colocamos apenas como expectadores, mas nos envolvemos também. Existe uma troca. De olhares, emoções, aprendizado. E quando viemos embora trazemos essas emoções e cenários, mas deixamos também um pouco de nós. O melhor. Deveria ser sempre assim.
ResponderExcluirAdorei você contar que se aventurou por caminhar no meio do cerrado, sem trilha, sem nada. “Abríamos caminho com o próprio corpo.” Até mesmo seu relato sobre o transporte ilegal para se deslocar de uma cidade para outra não deixa de ser uma aventura. Claro que é um ponto negativo. Mas no fundo chega a ser emocionante e divertido. É o que vale.
E a tradição das festas juninas, quadrilhas, quermesses... Isso tudo é experimentar, provar. Eu adoro essas festas e as comidas típicas, as tranças nos cabelos, a brasa da fogueira de cor vermelho vivo queimando depois da meia noite. Céu estrelado...
Foi muito gostoso ler sobre sua passagem sobre essas cidadezinhas mineiras. As ruas pequenas, as igrejas, as badaladas dos sinos... As estradas ladeadas pelas montanhas, as cachoeiras, e por fim, as pessoas... Simples e pacatas. Os mineiros “gradam” muito de uma boa prosa, sem pressa de acabar. Que maravilha que outra característica sua que pude perceber é, você ser um bom ouvinte. Estou errada?
É exatamente como você descreve. Não há luxo e nem glamour, mas há historia, tradição, riqueza de detalhes... E certa calma que invade nosso ser e nos deixa a vontade e bem.
Adorei a foto das lavadeiras no rio. E também a ultima foto, aquela dos dois senhores de chapéu.
Como antes, o que me faz comentar suas historias é exatamente o teu amor pelas viagens. É o tempo que você perde e o que você ganha andando por aí.
"Passava os dias ali, quieto, no meio das coisas miúdas.
E me encantei."
Manoel de Barros
Com esse seu comentário, Lorena, o blog vai brilhar demais. Mas que texto mais lindo escreveu. Adorei, de verdade. E acertou em cheio o que eu procurava e como me deparava com às realidades, boas ou ruins. E ainda os versos de uma singeleza assombrosa do Manoel de Barros. Obrigado por permitir compartilhar tudo que me enviou. Valeu! Comente mais, muito mais...
ResponderExcluirO bom que gosto nas narrações são os olhares, que muitas vezes mostram o que os habitantes, nada ou pouco enxergam. Obrigada por bela leitura.
ResponderExcluirOi Luna!
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
Você captou o espírito desses relatos: o olhar. Procuro sempre expressar o que vejo e sinto nos lugares visitados. Libero minhas subjetividades.
Em outros relatos, de viagens pelo Brasil ou exterior, você notará as mesmas características. Pesquise à vontade...
Comente sempre!