Coronel Murta acordou, e parece ser a regra em dia útil, escandalosamente bem cedo. Dezenas de galos, próximos e estridentes, cantaram histericamente. Vozes e músicas altas vindo das casas vizinhas, crianças berrando, pessoas e veículos circulando. Antes de clarear completamente a cidade toda já estava de pé. E o lauto café da manhã do hotel consistiu de uma tigelinha com biscoitos de polvilho, café adoçado na garrafa térmica, leite frio na própria embalagem longa-vida. Só, somente só.
O dono do hotel lamentou a ação das minerações ilegais, operando via liminares fraudulentas, de feldspato em pó e em pedra, nas imediações da cidade. Geravam poeira permanente sobre a população, causando problemas significativos de saúde, sobretudo na estação seca.
Coronel Murta agradava aos olhos, pelo traçado irregular das ruas, algumas ladeiras, ruas e avenidas mais longas, com canteiros centrais bem arborizados e decorados, pelas montanhas ao redor e, obviamente, pelo rio Jequitinhonha margeando-a. Atravessei a ponte sobre o rio até a margem direita. Lavadeiras em grupos davam um trato em imensas trouxas de roupa. Faixas de pedras escuras e ilhas cobertas pela vegetação arbustiva e rasteira surgiam do leito do rio de águas também escuras. Em ambas as margens, a vegetação, agreste, acastanhada, ressecada, envolvia casas, sítios, povoados esparsos.
Dobrei na estrada de chão, botando as pernas para funcionar bastante. As montanhas de pedra circundavam as imediações da cidade. Surgiram casas, propriedades maiores, uma concentração pequena de moradias, sempre próximas à margem do Jequitinhonha. A vegetação se mantinha seca. Não avistei plantações, somente algum gado. Tampouco notei pescadores em atividade ou barcos em circulação. Lajedos graníticos abrigavam mandacarus, palmas, sisal e as simpáticas coroas-de-frade, impassíveis, imponentes. Rejeitos de garimpo ou mineração de turmalina preta se acumulavam em pontos esporádicos.
Horas depois retornei, atravessei novamente a ponte sobre o rio, desviando para o bar e restaurante da margem esquerda. Bem instalado na barranca do rio, com vista privilegiada das águas, praias, da margem direita, o local oferecia mesas dispostas sob a sombra refrescante. Abri com uma dose da cachaça branca. Comi traíra frita sem espinho, arroz fresquinho, salada verde.
A prosa correu solta com o dono do estabelecimento. Pena que ele se desconcentrava constantemente do assunto, se enveredava por outros, dos quais também se perdia, iniciava terceiros, quartos, quintos assuntos. Raramente conseguia a proeza de responder ao que eu perguntava. De vez em quando, eu o puxava de volta ao assunto original, tarefa inglória, pois, apesar de sentir o tranco, se dispersava novamente. Deixei rolar. Comi bem, matei a sede, me refresquei na sombra.
Mas que trechinho barulhento da cidade eu fui me hospedar! Os vizinhos de todos os lados não sossegavam um instante sequer, principalmente ao entardecer e começo da noite. Ligavam som alto, acompanhavam as músicas com vozes altas e de taquara rachada, gritavam entre si, riam, discutiam, brincavam aos berros. Tudo em volume alto. Mas não deixava de ser vida vivida à flor da pele. E as duas janelas do meu quarto no primeiro piso, sem falar a do banheiro e a do corredor, davam de cara para eles, captando cada ruído emitido.
Duas explosões consideráveis de mineração próxima ocorreram à tarde. Tremeu tudo. As residências mais próximas certamente sofreram efeitos mais comprometedores. E o consumo, tráfico e demais consequências do uso do crack chegaram a Coronel Murta. Fui alertado para não transitar por determinados bairros e trechos da cidade, mesmo durante o dia.
Não havia agências ou terminais de autoatendimento do banco em Coronel Murta e o jeito foi me deslocar para me reabastecer na desagradável cidade de Araçuaí. Fui e voltei de táxi-lotação, uma vez que os horários de ônibus eram espaçados e inconvenientes. O caminho pela estrada, apesar da vegetação árida e espinhosa, oferecia montanhas isoladas e o rio Araçuaí na entrada da cidade.
Após as tarefas bancárias, rumei para o já conhecido restaurante que servia comida típica e saborosa em espaço arejado. O senão ficou por conta do telão gigante, mais caixas de som espalhadas pelos quatro cantos do ambiente, transmitindo programação sensacionalista da televisão, entre crimes, tragédias familiares, congestionamentos, quase que exclusivamente ocorridas na região metropolitana de São Paulo. E de suma importância para os moradores de Araçuaí e arredores, sem a menor dúvida! Os frequentadores anestesiados pela mídia lançavam os costumeiros olhares bovinos para se idiotizarem cada vez mais.
A real vida noturna de Coronel Murta ocorria nos bares dentro do posto de combustíveis na margem da estrada para Salinas. Ali ocorria maior consumo de bebidas, mais olhares objetivos entre os interessados, comportamentos mais previsíveis e ensaiados. Nada sofisticado ou pretensioso, mas direto ao assunto mesmo.
No começo da manhã seguinte eu já caminhava em outra estradinha de chão, acompanhando o pé da montanha de pedra alongada. Lajedos com arbustos espinhosos apareciam vez ou outra. Casinhas esparsas, pequenas propriedades pouco cultivadas e irrigadas, grandes propriedades nada cultivadas, com algum gado, ou totalmente abandonadas, porteiras e cercas em frangalhos. Sertanejos cortavam paus nos trechos mais arborizados e os transportavam nas costas para construções ou lenha. Abelhas e marimbondos zuniam aos milhares nas árvores de maior porte. Uma abelha suicida aterrissou no meu joelho direito. Não picou, mas ficou atolada no mel que a envolvia.
O piso sinuoso e acidentado da estradinha se coalhava de placas de malacacheta, reluzentes ao sol. Pequenos canaviais e cheiro adocicado vindo de sítios apontavam para prováveis engenhos de cachaça e rapadura. De vez em quando eu cruzava com vaqueiros conduzindo reduzidos rebanhos de bois e vacas. Raros veículos trafegavam por ali. Os mais desagradáveis eram as caminhonetes cabines duplas dirigidas espalhafatosamente pelos motoristas endinheirados que, ao passarem voando por mim, levantavam poeira fina e eu não via mais nada. As motos e carros mais simples diminuíam a velocidade e geralmente me cumprimentavam.
Na volta fui direto ao bar na beira da água do Jequitinhonha. Matei a sede, tomei uma dose da cachaça, detonei tucunaré frito com arroz e salada. O dono apareceu após eu encher o bucho. Relaxei para ouvir a valer. Ele falou sem parar, invariavelmente fugindo do assunto inicial, viajando pelas galáxias da mente dele, detalhando o desnecessário, abrindo sem fechar parêntesis e mais parêntesis. Alternava minha atenção às estórias com o deleite da paisagem ao redor naquele início de tarde quente e ensolarada.
Pouco notei da véspera de São João. Raras e esparsas fogueiras queimavam em frente das casas. Discreta quadrilha à noite, ao lado do posto de combustíveis do trevo, na verdade mais como preâmbulo à balada que a sucederia pela noite e madrugada.
E segui em frente na viagem. O ônibus pegou a BR-251, rodovia entupida de caminhões, carretas, veículos em geral, percorrendo paisagem desoladora. Ocorreram dezenas de paradas em cidadezinhas, povoados, beiras de estrada. A repugnante parada na rodoviária de Brasília de Minas revelou banheiro emporcalhado, inundado de bosta e urina. Por pouco não causou vômitos nos passageiros, motorista e cobrador.
O veículo embicou à noite na beira do rio São Francisco. Enquanto aguardava a balsa para a outra margem, pude apreciar, sem qualquer iluminação para atrapalhar, o céu escandalosamente estrelado. Dava a impressão que daria para tocar nas estrelas, tal a nitidez e a sensação de proximidade. Até as poeiras de estrelas, muito delicadas e difíceis de serem vistas por conta da luminosidade excessiva das cidades, me encantou até dizer chega.
Na margem esquerda, já em São Romão, caminhei com a mochila nas costas até o hotel onde o idoso proprietário me levou a um quarto básico. Uma mineira, acompanhada de um inglês, estranhamente me perguntou se eu era brasileiro ou estrangeiro, mesmo depois de eu ter conversado, ali ao lado, com o dono do hotel, negociado preços, tipos de quartos, essas coisas.
Saí pelas ruas no meio da noite à procura de restaurante com cara de restaurante. Caí de cabeça na moqueca de surubim. Enchi a pança e voltei ao hotel para desabar na cama.
Dormi feito pedra. Sonhei horrores uns sonhos recorrentes. De tão recorrentes que, durante um deles, comentei para mim mesmo durante o sonho que aquilo não passava de sonho, ou que pelo menos desconfiava seriamente disso.
Como regra no norte de Minas Gerais, a população migrava para cidades aparentemente mais promissoras, do sul do estado ou de outros estados. E as cidadezinhas se esvaziavam. As administrações públicas não tomavam providências e os moradores que permaneciam desejavam apenas sobreviver. A população de São Romão dava as costas ao rio que banha e alimenta todos na cidade. Nada de importante da cidade se localizava perto das águas do São Francisco. Tudo se afastou em direção a ruas feias, sem personalidade, empoeiradas, sujas, largadas.
Menos de meia dúzia de construções antigas, ainda de pé, lembravam os tempos idos da cidade. Mas somente enquanto não ruíam de vez. Os moradores, também pacatos e discretos, garantiam o bom acolhimento e a simpatia necessária.
Bons restaurantes, bares e padarias, impediriam de se morrer de fome ou de tédio. A inauguração de um bar e restaurante se transformou no acontecimento da cidade durante o dia e à noite. Mesas se espalhavam pelo canteiro central da avenida ornada de palmeiras, concorrendo à altura com as barracas das festas juninas, vários quarteirões acima.
Rica em caju, a região reservava milhares de frutos maduros no auge da estação. Mas se perdiam nos terrenos, sítios e chácaras, pela falta de quem os colhessem e os consumissem. Outras frutas apetitosas também abundavam nas imediações. Enquanto isso, o monopólio asfixiante dos refrigerantes de transnacional estadunidense imperava no comércio, entupindo e envenenando a maioria do povo. E no café da manhã do hotel foi servido suco de laranja industrializado, insípido e cheio de conservantes.
Elogiado entusiasticamente por nove entre dez moradores de São Romão, a localidade de Riacho, a cerca de quatro quilômetros da cidade, restou como única opção naquele domingo ensolarado e sonolento. Fui a pé até lá por estrada arenosa, larga, movimentada, sem nada de interessante na paisagem, debaixo de sol, pisando em areia fofa.
Riacho talvez tenha sido atraente décadas antes. Mas tornou-se a meca de recreação da cidade, com quiosques dotados de mesas e churrasqueiras, bares, restaurantes, campo de futebol, barraquinhas de comes e bebes. Tudo ao lado de curso d’água estreito e de águas lentas, formando alagadiços pelo vale alargado. Muito lixo nas águas e em terra, jogados pelos frequentadores e não recolhido por ninguém. Embora fosse área de preservação ambiental, como alardeava a placa na entrada, nada se preservava, social ou ambientalmente. Fora do trecho mais urbanizado, porém, despontavam alagados e veredas com buritizais, repletos de pássaros de tamanhos e cores diversas. Em cidade que nada oferecia de lazer à população, nem o usufruto da convidativa ilha com praias no meio do São Francisco, bem em frente ao centro da cidade, Riacho, por bem ou por mal, transformou-se em paraíso para muitos.
E não é que o bar e restaurante inaugurado no fim de semana, sem ter comidas soberbas como a moqueca do primeiro restaurante que experimentei, agitou atraindo os moradores, sobretudo nos finais de tarde e à noite, tocando pagode ao vivo, de qualidade e repertório razoáveis? Comi e bebi bem em mesa improvisada sob as palmeiras do canteiro central da avenida.
Antes do amanhecer, em jejum, caí nas ruas frias e escuras da cidade. Peguei a balsa do São Francisco, lotada de veículos, caminhões, passageiros para os únicos dois ônibus diários saindo da cidade para destinos diferentes. Ambos lotaram e esmagaram pessoas de pé durante o trajeto.
Colocar mais ônibus em horários variados, a empresa monopolista nem pensava em fazer. O cobrador, no entanto, utilizava o supérfluo aparelho eletrônico de registros e emissões de passagens. Para um a um dos passageiros, ele marcava o destino, estipulava o preço, emitia o bilhete em duas vias, guardava a primeira no bolso da camisa, entregava a outra ao passageiro. Mas o processo não terminava aí. Como a empresa inexplicavelmente emitia duas passagens para aquele trajeto, o coitado do cobrador teve que repetir toda a operação acima a partir de Ubaí, para todos os passageiros, driblando as pessoas em pé pelo corredor apertado do ônibus. Modernidade inteiramente dispensável ao lado de desserviço ao povo sofrido que embarcava e desembarcava nas cidadezinhas ou na beira da estrada.
Saindo do asfalto, o ônibus entrou nas minúsculas vilas de Morrinhos e Bentópolis para arrebanhar mais passageiros. Nesta última teve que cruzar, na entrada e na saída, ponte estreitíssima de metal, praticamente da largura do ônibus, obrigando o motorista a mirar bem, usar e abusar dos espelhos laterais, reduzir a velocidade, quase parando, para atravessá-la. O riacho que serpenteava abaixo e corria perto da cidadezinha reservava águas cristalinas, esverdeadas pela vegetação do leito, num convite para mergulhos, a despeito do frio do amanhecer.
Novamente o ônibus parou na imunda rodoviária de Brasília de Minas. Novamente o imundo banheiro atolava na bosta e urina, sem qualquer tipo de limpeza ou manutenção. Só que desta vez, a administração do terminal ousou cobrar os passageiros em trânsito pelo uso daquele horror. A maioria se recusou a tal disparate, eu entre eles, fazendo as necessidades fisiológicas no banheiro do ônibus ou em algum beco por ali.
O ônibus cruzou todo o centro nervoso de Montes Claros, a fim de pescar mais passageiros. Depois, ambos os lados das rodovias se infestaram de imensas monoculturas de eucalipto, o famigerado deserto verde. Pouco antes da chegada, a paisagem se acidentou intensamente. Cristas rochosas surgiram. Riachos em vales profundos cortavam o relevo.
Desembarquei na instigante Grão Mogol entre ruas e construções antigas de pedra.
Me instalei, lavei as roupas empoeiradas, tomei banho caprichado e saí para jantar no miolo da cidade. Abri o apetite, já escancaradamente aberto, com duas doses da saborosa curraleira, termo usado para designar as cachaças artesanais na região.
continua...
olá, estou pegando o bonde pela metade.. vc está dando rolê de bike de onde para onde? pretendo fazer a estrada real se possível em janeiro...
ResponderExcluirOi Marcelo, tudo bem?
ResponderExcluirObrigado pelo comentário.
Bike, você quer dizer bicicleta rsss? Não, eu não percorri esse e outros trechos do Brasil e de outros países de bicicleta, mas sim de transporte coletivo, junto com a população local.
São vários os relatos que descrevo minhas viagens pelos interiores do Brasil e de outros países, contendo reflexões e críticas sociais e ambientais. Fique à vontade para ler, pesquisar, comentar, divulgar... Boas leituras!!!