terça-feira, 10 de maio de 2011

da Bolívia ao Chile (parte 3/3)

...continuação
Do alto de rochedo no centro de Arica, cidade situada em região que já pertenceu à Bolívia, se tinha visão privilegiada das redondezas, do deserto, das praias. Encontramos praia razoável para relaxar e tomar banhos refrescantes nas águas do oceano Pacífico. E também para observar o comportamento dos chilenos na beira do mar. Aterrissavam bem vestidos. Os homens com calça e camisa social, com cinto e tudo, sapato e meias. As mulheres de vestidos de noite, maquiagem completa, cabelos impecáveis do cabeleireiro. Como os vestiários no estilo europeu só apareceriam nas praias das cidades mais ao sul do país, os banhistas tiravam aquela parafernália toda na própria areia. E, por fim, se transformavam em praieiros. Mas a operação completa era demorada e cuidadosa. E os chilenos vestiriam tudo aquilo novamente antes de retornarem para casa.
Fizemos amizade com alguns desses jovens, encontrando-os diversas vezes pela praia, em papos animados. Política ou temas afins eram expressamente proibidos. Quando eu tentava enveredar por aí, eles desconversavam de maneira bem ensaiada.
Boa comida em Arica, pratos baseados em frutos do mar, sucos de laranja e outros cítricos. As noites permaneciam desertas com os chilenos assustados nos interiores das casas. Após curtas voltas noturnas logo voltávamos ao hotel por pura falta do que fazer. Tudo fechava cedo. Apenas os militares armados de metralhadoras e o vento ocupavam os espaços que deviam ser públicos e animados naquela cidade quente na beira do mar.
De ônibus a Antofagasta pela rodovia pan-americana. Hospedagem em hotel improvisado em carrocerias de ônibus. As instalações deixavam a desejar, mas compensavam pela ousadia e criatividade, sem falar no ambiente mais descontraído que o dos hotéis convencionais.
Também na beira do mar, Antofagasta era porta de entrada para incursões mais profundas pelo deserto de Atacama. A cordilheira dos Andes avistava-se ao longe, formando imagem que lembrava cobertores de lã dobrados, pela textura e a coloração acastanhada. Areia e rochas compunham a paisagem. As luzes ao entardecer forneciam espetáculo raro naquela aridez.
O azul das águas do Pacífico encantava, porém as praias decepcionavam pelo excesso de intervenção humana. Os chilenos insistiam em urbanizar as praias com concreto, vestiários, rampas de acesso, áreas de lazer artificiais, ridículas quedas d’água, lanchonetes, pistas de dança e os insuportáveis alto-falantes voltados para a areia massacrando com o lixo estadunidense. Era praticamente impossível relaxar e aproveitar qualquer coisa naquelas excrescências de concreto.
O jeito foi fugir rumo à praia de La Portada, acessada por ônibus local. Praticamente deserta e intocada pelos temíveis arquitetos chilenos, a extensa área guardava pequenas baías, falésias, passagens estreitas pelos paredões rochosos, e o mar do pacífico. Nada se vendia por ali. Nem comida, nem água. Valia pela natureza bruta e mais envolvente.
Antofagasta agradava mais que Arica, o povo parecia mais acolhedor. Surgiram boas conversas. Sobre temas alienantes e fúteis, é verdade, mas houve contatos com os moradores. O toque de recolher da ditadura continuava a impedir a existência de qualquer vida noturna. Os assassinos do regime patrulhavam cada canto, com as onipresentes metralhadoras apontadas aos cidadãos, de dia e de noite.
Novo ônibus até Santiago e de lá mais um ao litoral, à cidade de Viña Del Mar. Na primeira etapa, mais longa e demorada, fui presenteado com assento sobre a escada da porta traseira. Não havia como descansar os pés e mantive as pernas penduradas durante todo o trajeto, sem paradas para descanso, lanches ou banheiro.
Em Viña Del Mar escolhemos pousada caseira, dirigida por senhora descendente de alemães. Quartos amplos e limpos, café da manhã saboroso, atendimento informal.

Destino de chilenos abonados, guardando casas e apartamentos de padrão médio ou superior, Viña Del Mar encontrava-se bem urbanizada, limpa, florida. Ali ficava a minoria que apoiava a carnificina contra o povo chileno. Comércio de luxo, redes de lojas estrangeiras, artigos importados, futilidades em geral abasteciam a elite dominante. 
As praias, como não poderiam deixar de ser no Chile, assustavam com as agressões urbanísticas. Talvez no passado distante tenha havido beleza por ali. O concreto, as lanchonetes, as danceterias ao som do lixo estadunidense, os alto-falantes acabaram com a natureza. Na praia de Reñaca edifícios tentavam acompanhar a inclinação das encostas, formando construções esdrúxulas com elevadores panorâmicos.
Chilenos e chilenas mantinham-se extremamente formais quando iam à praia. Roupas sociais, penteados, maquiagem de quem ia a cerimônias de casamento, compunham o estilo de todas as idades. As raras camisetas exibiam estampas de Ipanema, Copacabana, Cabo Frio. E se espantavam com o que vestíamos, roupas simples e básicas, roupas de ir à praia.
Ainda assim permanecíamos bastante tempo nas areias, tentando apreciar as nesgas do que restou da natureza, observando o comportamento formal dos frequentadores. Raramente entrávamos na água, sempre gelada e com forte correnteza. Reparávamos também nas corridas repentinas dos cães pelas areias. No Chile ocorriam diariamente milhares de tremores de terra, a maioria imperceptível ao ser humano, mas registrada pelos sismógrafos ou pelos cachorros, devido à faixa de frequência das ondas sísmicas, imperceptíveis ao ouvido humano.
Muito mais interessante que a chata Viña Del Mar era a cidade portuária de Valparaíso, perto dali. Antiga, cheia de ladeiras estreitas, depósitos de madeira, barcos de pesca, mercados, bares e restaurantes nem sempre convidativos, moradores típicos. Tudo se encontrava mal conservado e sujo, mas autenticamente portuário. Um Chile mais chileno e menos submetido a invasões de costumes estrangeiros. Os militares fardados e armados de metralhadoras, no entanto, circulavam por todos os lados. Terror sem retoques. 
Em Santiago a escolha foi em hotel nas imediações do palácio de La Moneda, sede do governo de Salvador Allende, legitimamente eleito pelo povo, mas assassinado pelo golpe militar de 11 de setembro de 1973, patrocinado e organizado pelo regime dos Estados Unidos. O prédio estava ocupado pelo ditador Augusto Pinochet, lacaio das transnacionais, assassino do povo chileno, conforme ordens recebidas da classe dominante chilena e dos capitalistas estadunidenses. Marcas de balas e bombas ainda apreciam nas paredes externas do palácio. Mas ninguém podia observar esses registros por muito tempo, muito menos fotografá-los. As duplas de militares armados de metralhadoras logo apareciam e apontavam os canos na cabeça dos curiosos.
Perguntei na portaria do hotel por lugares interessantes para aproveitar as noites da capital. O funcionário respondeu laconicamente que não havia vida noturna no Chile. Contestei com o fato amplamente conhecido de que os chilenos sempre adoraram cantar e dançar nas praças e parques. Impassível, ele soltou a pérola que os chilenos mudaram e não gostavam mais de se divertir nos espaços públicos. Nada havia na cidade após 21h. As ruas, avenidas e praças da capital chilena se esvaziavam. Apenas os assassinos do regime pró-estadunidense marchavam com expressões de cães ferozes.
Lembrei-me do excelente filme Desaparecido do diretor Costa Gavras quando cruzei a ponte sobre o rio Mapocho. Durante aqueles anos da ditadura, o povo se deparava com cadáveres boiando nas águas levadas pela correnteza. Os assassinos do regime nem sequer se preocupavam em enterrar ou esconder os corpos dos chilenos que resistiam à barbárie.
Antes do golpe militar que impôs a ditadura civil/militar em 1973, o Chile contava com apenas 2% de analfabetos, possuía alto padrão de vida para a maioria do povo e era praticamente autossuficiente em gêneros de primeira necessidade. Dez anos depois, o regime a serviço das transnacionais importava quase tudo o que os chilenos precisavam. Papel higiênico vinha do Brasil, manteiga da Irlanda, chá do Sri Lanka, e assim por diante. A limpeza e a paz dos cemitérios do centro e bairros próximos escondiam a miséria das periferias. Mais da metade da população chilena se amontoava em Santiago. O desemprego esbarrava os 50%. A repressão sangrenta calava as vozes e as mentes do povo. Jamais consegui dialogar com o povo chileno sobre assuntos que abordassem a situação do país ou das pessoas. Eles logo entravam em pânico e receavam ser assassinados pelos militares. Nem depois de longos e animados comentários sobre o craque Garrincha, falecido naqueles dias e com fotos estampadas nas primeiras páginas dos jornais, eles se descontraiam ou pelo menos insinuavam algo. Ninguém queria engrossar os números do genocídio do povo chileno.
Talvez tenha sido no Chile onde mais ocorreram problemas com a diferença das línguas portuguesa e espanhola. Eu os entendia quase perfeitamente. Raramente precisava pedir que repetissem as frases. O inverso era terrível. Os chilenos não entendiam, não se esforçavam para entender o português, ou mesmo as tentativas de algumas palavras minhas em espanhol. Bastava a pronúncia não ser exatamente a que costumavam ouvir para não compreenderem nada. O ápice se deu em bar do centro de Santiago, onde pedi água mineral. Ambas as palavras são inteiramente iguais nas línguas portuguesa e espanhola. As pronúncias variam, mas não passam de detalhes imperceptíveis para quem queira se comunicar. O balconista não compreendia, ou fingia não compreender. Repeti três vezes, abrindo bem a boca, e nada. Somente quando dei a enrolada na língua, a fim de imitar o sotaque espanhol, ele saltou da letargia e me trouxe a garrafa.       
Tínhamos o endereço de senhora estadunidense residente em Santiago que encontramos em Machu Pichu. Pegamos o metrô. Da janela do vagão eu tentava ver na escuridão dos túneis sinais de corpos jogados nos concretos das paredes durante a construção das linhas. Era praxe nas ditaduras sul-americanas, incluindo a do Brasil, lançarem os corpos dos assassinados sob as torturas em buracos a serem preenchidos de cimento. Com a palavra, as paredes e fundações da hidrelétrica de Itaipu! Chegamos ao bairro da classe dominante da capital. Mansões e mais mansões se distribuíam em ruas arborizadas e fortemente vigiadas pelos agentes do regime. Fiquei impressionado com o tamanho e opulência da propriedade da senhora estadunidense, justamente em país que sofria com a miséria. E me recusei a entrar. Dei meia volta e peguei o metrô para o centro da cidade.
O retorno para casa seria em ônibus direto de Santiago a São Paulo.
A exceção fascinante do longo trajeto ficou por conta do trecho entre Santiago e Mendoza. O ônibus escalou por entre curvas acentuadas a cordilheira dos Andes até quase os 5 mil metros de altitude, cruzou terrenos rochosos, abismos, escarpas, picos nevados. As cores intensas se restringiam ao preto das rochas, ao branco da neve, ao azul do céu. Perto se erguia o Aconcágua, com cerca de 7 mil metros de altitude, a montanha mais alta da América.
A fronteira entre o Chile e a Argentina se deu no ponto mais alto da rodovia. Um túnel separava os dois postos de fiscalização. Ao desembarcar, o frio do verão dos Andes castigava. A beleza daquele cenário, no entanto, compensava qualquer desconforto climático. A descida pelo lado argentino não foi menos impressionante. Não cansava de me revirar no assento do ônibus para aproveitar cada ângulo da cordilheira.
Entre a cidade vinícola de Mendoza e Porto Alegre a monotonia reinou absoluta na paisagem. Os pampas de terras escuras eram um tédio só. Paradas tristes serviam para abastecer o estômago em restaurantes decadentes. A Argentina vivia momentos de hiperinflação e não faltavam notas de valor exageradamente alto. Até peguei nas mãos uma nota de 1.000.000, um milhão de pesos. Pena que a passei em frente logo em seguida. Perdi a oportunidade de guardar aquela raridade.
A chegada a São Paulo se deu de forma catastrófica. Enchentes de verão inundavam as ruas da cidade. O motorista do ônibus fez malabarismos para tentar atingir o terminal rodoviário do Tietê. Circulou por ruas estreitas e altas dos bairros de Freguesia do Ó, Casa Verde, Santana. Mesmo assim não conseguiu. O rio Tietê transbordara e cobrira as marginais. Mais peripécias, desta vez para chegar ao antigo terminal rodoviário da praça Júlio Prestes. Os passageiros chilenos comentavam entre si que não havia terremotos no Brasil, mas muita água.
Passavam das 2h da madrugada ao desembarcar em transversal da avenida Rio Branco, no começo de fevereiro, setenta e duas horas depois de sair de Santiago. Lembranças da viagem, intensas, belas e fascinantes, tenebrosas e apavorantes, vistas e sentidas nos olhos, peles, mentes, corações.

2 comentários:

  1. Tenho um amigo muito querido de Curitiba, que foi e voltou do Chile de ônibus e ele ficou encantado com a vista, trouxe fotos lindíssimas, ele é estudante e juntou dinheiro durante um ano para poder fazer esta viajem, poderia ter ido de avião, mas quando descobriu que de onibus seria muito melhor, não teve dúvidas.Eu e meu marido somos meio muchileiros, e estamos programando uma rota Brasil-Peru.
    Obrigada em compartilhar estas aventuras.
    Abraços.

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  2. Por terra, ou por rio, é sempre mais fascinante que de avião. E se a estrada for de terra, melhor ainda.
    Para o Peru, existe uma saída rodoviária por Assis Brasil-AC (asfalto no lado brasileiro) e fluvial por Tabatinga-AM. Pelas duas vale a pena. Depois me contem...Abraços!!!

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