segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Três Anos no Sertão da Bahia (parte 5/6)

...continuação
JUAZEIRO

Situada a 120 quilômetros de Senhor do Bonfim, a cidade de Juazeiro tinha o dobro da população e tornava-se opção para os finais de semana. Sem falar nas charmosas águas do rio São Francisco que a separavam da vizinha cidade pernambucana de Petrolina, de porte semelhante à irmã baiana. O que mais chamava a atenção ao observar as peculiaridades das duas cidades, mais que as semelhanças, eram as diferenças marcantes entre elas. A despeito de certa rivalidade que houve de outros tempos, as duas cidades se completavam nas variações. Alguns metros acima, Petrolina se livrava dos mosquitos que infestavam Juazeiro. O comércio brilhava em Juazeiro, a indústria em Petrolina. Juazeiro era mais feia e mais suja, pior para morar. Petrolina, mais limpa, arrumada e arborizada, vencia pela qualidade urbanística. Juazeiro reinava absoluta na alegria, lazer e diversão, contrastando com o silêncio e a tristeza das ruas de Petrolina. Tanto que não havia carnaval em Petrolina. Todos, pernambucanos e baianos, afluíam a Juazeiro a fim de se deliciarem com um dos melhores carnavais do interior da Bahia. E menos entupido de turismo predatório, mais voltado a carnavalescos da região, ausente de violência e criminalidade, mais espontâneo e autêntico, enfim mais humano que o exageradamente famoso carnaval de Salvador. E bem mais perto de Senhor do Bonfim.

Foi para lá que me dirigi nos carnavais daqueles anos. E me hospedava num quarto qualquer da casa do amigo dos amigos de Senhor do Bonfim. Nem sabia o nome dos donos da casa. Me recebiam bem, me deixavam totalmente à vontade, podendo entrar e sair a qualquer hora. Não trancavam as portas da rua à chave, às vezes nem sequer as encostavam. Nunca me perguntavam nada, apenas sorriam com minha presença. Não se importavam com meu estado de embriagues. Nada censuravam ou aconselhavam. Liberdade completa.

A maior parte do dia e da noite, eu passava fora da casa, pelas ruas de Juazeiro, perto da margem do rio, de bar em bar, atrás do único e animado trio elétrico da cidade, junto ou separado dos amigos. Nada de regras, a não ser me divertir até não poder mais. Não me lembro de como me alimentava. Algumas mulheres renderam frutos, outras apenas uma companhia temporária, sem contar as que me despachavam logo de cara. O trio elétrico funcionava apenas de dia. Os clubes ferviam durante a noite e madrugada. As águas do rio São Francisco funcionavam como intervalos para refrescar os corpos do calor. Ou então para os casais mais chegados que, sob a proteção da escuridão da noite, nos redutos mais afastados, namoravam impunemente dentro ou fora das águas. Os sertanejos sabiam viver, em que pesem as inúmeras adversidades durante o restante do ano. E eu aprendia com eles, mais precisamente com elas.

AS FESTAS JUNINAS

Festas Juninas com “F” e “J” maiúsculos eram as que aconteciam na região de Senhor do Bonfim na segunda metade do mês de junho, mais precisamente a partir da Festa de Santo Antonio, dia 13 de junho, na vizinha cidade de Campo Formoso, até a Festa de São Pedro, dia 29 de junho, no povoado próximo de Andorinha. Entre as duas datas a cidade de Senhor do Bonfim reinava absoluta durante duas semanas, oferecendo o mais famoso São João do sertão baiano. Às vezes as festas começavam no início de junho e ficávamos quase um mês em estado de graça. Tive o prazer e a honra de participar, e mergulhar na autêntica cultura sertaneja, em três festas juninas daquela virada da década de 1970 para a de 1980. As impressões deixadas não poderiam ter sido melhores. Os momentos passados nas festas, ao lado de pessoas tão especiais, permaneceriam para sempre nas lembranças, entre as mais intensas e importantes.

Armavam-se barracas de palha ao redor da praça Nova do Congresso e nelas se vendiam comidas e bebidas típicas, se apresentavam pequenos grupos musicais da legítima música sertaneja, organizavam atividades de lazer para crianças, se ofereciam bugigangas ligadas às festas juninas. O grande palco era montado entre as barracas. Nele se apresentavam as principais atrações musicais e artísticas em geral, sobretudo à noite, e também se realizava a concorrida cerimônia do casamento sertanejo no dia 24 de junho, dia de São João. Por entre as estreitas passagens em meio às barracas circulavam um mar de gente vindo de todas as cidades e vilas vizinhas, inclusive da distante Salvador.

Porém, para alegria e felicidade geral, as festas juninas de Senhor do Bonfim não se tornavam atração turística a ponto de se desfigurarem como costuma acontecer com tantos eventos populares pelo Brasil e mundo afora. As festas populares da região, pelo menos até aquelas datas, permaneciam intactas do turismo predatório e das garras dos capitalistas ávidos por lucros fáceis. Melhor para os que degustavam de legítimas manifestações da cultura popular. As festas tinham imperfeições, merecedoras de críticas, claro, mas nem de longe perdiam as marcas regionais.

A cidade e as redondezas praticamente paravam nessas semanas de festejos. Mas o máximo que eu e os demais colegas de trabalho conseguíamos eram um ou dois dias a mais nos picos das festas, além dos finais de semana e do feriado de 24 de junho, dia de São João. Eu contava os dias da semana enquanto caminhava pelas picadas da caatinga na torcida para que voassem e pudesse voltar à animação com os amigos e amigas.

Entrávamos em várias barracas, conversávamos, ouvíamos música, tomávamos goles, beliscávamos petiscos, topávamos com mais gente conhecida. Vez ou outra eu cruzava com tipos atraentes. Trocava olhares convidativos, chamava-as para se juntarem ao grupo ou me refugiava com elas em locais mais escuros, antes de retornar à companhia da turma. A música e a dança brotavam em todas as partes da praça. Casais ou grupos abriam a roda e de maneira improvisada começavam a dançar. Embora preferisse apenas ver e ouvir, nem sempre eu conseguia escapar aos assédios das baianas que me arrastavam para o meio da roda. Eu arriscava uns passos e não dava tanto vexame. Tomava contato com mulheres que jamais vira, eventualmente evoluindo para algo mais picante. Mas não era regra, nem o objetivo principal. Todos queriam se divertir entre velhos e novos amigos ao som e ao sabor da cultura sertaneja.

A véspera de São João, noite de 23 de junho, reservava evento especial e inusitado, a famosa Guerra de Espadas. Os organizadores isolavam algumas ruas do centro da cidade, longe das barracas da festa, permitindo aos participantes guerrearem à vontade, sem o risco de ferir os desavisados. E havia sim perigo de ferimentos, leves e graves, e até de morte. A Espada tratava-se de pedaço de bambu, com cerca de trinta centímetros de comprimento e cinco de diâmetro. Vedava-se firmemente uma das extremidades com espessa massa de argila. Preenchia-se o cilindro com pólvora, mais, eventualmente, limalha de ferro e pó de vidro. Introduzia-se um pavio na boca e a cobria de papel colorido como decoração.

Os participantes plantavam um tronco no meio do quarteirão com as prendas penduradas no topo. E a Guerra começava. Dois grupos, vindos dos lados opostos do quarteirão, tentavam disputar a prenda. Cada grupo expulsava o outro lançando as Espadas já previamente acesas pelo pavio. Aqueles objetos partiam como foguetes malucos, em alta velocidade, perfazendo rotas espirais, irregulares e imprevisíveis, mas agressivamente na direção dos oponentes. Os dois lados lançavam-nas ao mesmo tempo, em quantidade, de tal maneira que a rua, o ar, a paisagem, se impregnavam de inúmeros foguetes cortando o espaço do quarteirão. Mais pareciam mísseis em miniatura, traçando desenhos desvairados em ambos os sentidos, compondo sons e imagens belíssimas no meio da noite. De vez em quando elas caíam nas proximidades do grupo oposto, ainda acesas, o que forçava o integrante a agarrá-las em movimento e devolvê-las aos adversários.

E as cenas prosseguiam por duas horas ou mais, pelo menos enquanto as dezenas, ou centenas, de Espadas ainda possuíam pólvora para queimar. No final das contas, as prendas eram divididas por todos ou simplesmente abandonadas para a alegria das crianças da rua. Ninguém ousava passar por ali durante a Guerra, exceto os membros dos grupos em ação. Os moradores das casas do quarteirão assistiam a tudo pelas janelas e portas, sempre atentos a, de repente, terem que fechá-las para não serem presenteados com alguma Espada perdida que invadia a casa, enfurecida, queimando o que via pela frente. Não eram raros os casos de perdas de sofás, cortinas, móveis, roupas.

Curioso de acompanhar aquelas cenas inéditas, eu entrava em determinada casa, sem ser convidado ou mesmo conhecer quem lá morava, e me protegia ao lado dos sorridentes e também assustados anfitriões.

Os participantes da rua invariavelmente vestiam chapéus e roupas grossas a fim de se precaverem dos acidentes. No dia seguinte nos informavam sobre quem saíra ferido, quem se hospitalizara com queimaduras graves e outros casos mais sérios. Em dada noite eu tentei mudar de casa no meio da Guerra e uma Espada me pegou de leve no braço protegido por casaco de brim. A marca circular escura na manga serviu de troféu durante anos, enquanto aquele casaco me serviu. Apesar dos perigos, a Guerra de Espadas era espetáculo digno de se ver. Os riscos luminosos e coloridos na escuridão, os ruídos de foguetes, o cheiro de pólvora queimada, a gritaria dos participantes, os olhares vidrados da plateia refugiada nas casas, compõem imagens inesquecíveis.

A cidade de Cruz das Almas, nas proximidades do recôncavo baiano, rivalizava com Senhor do Bonfim a grandiosidade na Guerra de Espadas. Porém naquela cidade eles utilizavam bambus mais grossos, causando acidentes mais graves, e até mortes. A imprensa baiana noticiava os casos no dia 24 e as informações de Cruz das Almas não eram das mais agradáveis.

Porém, exceto parte da noite de 23 de junho e, ainda assim, em poucas ruas, as festas juninas brilhavam pela alegria, descontração, solidariedade, bastante comida, bebida, música, dança. Além de Luiz Gonzaga, mestre dos mestres no baião, xote e xaxado, animavam os festeiros daqueles tempos o Trio Nordestino, Genival Lacerda, Zenilton. O primeiro se caracterizava por letras leves e simples, a enaltecer as festas juninas e o jeito sertanejo de ser. Já Genival Lacerda e Zenilton criaram fama e escola com as letras de duplo sentido, extremamente bem construídas, sobretudo no caso de Zenilton, autor de letras antológicas e engraçadas, bem distintas e superiores ao lixo comercial que os sucederam anos depois. Os artistas lançavam discos no início do ano e nos davam aperitivos de quais e como as músicas das festas juninas emplacariam.  
continua...

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