quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Três Anos no Sertão da Bahia (parte 4/6)

...continuação

SENHOR DO BONFIM
Eu passava a maioria dos fins de semana na cidade de Senhor do Bonfim. Inicialmente me hospedei em hotel, em seguida numa pensão, em quarto individual com cama de solteiro e armário. Minúsculo e sem janelas, é verdade, mas individual, qualidade imprescindível em pensões. Oficialmente ninguém o utilizava durante a semana, período no qual eu lá deixava roupas e objetos pessoais.

Administrado por duas irmãs gêmeas, idosas e solteironas, o pensionato contava com mais três quartos coletivos, um banheiro coletivo, copa, cozinha, pequeno quintal, dispostos em imóvel térreo, estreito e alongado, com corredor interno, lateral, portão diretamente na calçada. Instalaram telefone apenas dois anos depois que entrei. Uma das gêmeas possuía filha deficiente, permanentemente em cadeira de rodas, que emitia ruídos pela boca, embora reconhecesse os hóspedes e demonstrasse alegria ou tristeza ao vê-los.

Fora o café da manhã, comível e com a opção de ovos sempre que solicitado, as demais refeições, incluídas na mensalidade, mal davam para engolir de tão mal preparadas, a partir de ingredientes exageradamente baratos. Comportando-se tipicamente como donas de pensão, as gêmeas economizavam em tudo e mais um pouco. Agrediam a carne de segunda ou terceira com pancadas intensas e demoradas sobre os bifes, a fim de estendê-los e fazê-los parecerem maiores, ainda que finos e insípidos. Adoravam se meter na minha vida pessoal. Queriam saber quem era aquela ou a outra, aonde eu fora de dia ou de noite, porque eu ia à festa ou porque eu não ia à festa. Deixá-las a par do fútil e superficial funcionava perfeitamente. O importante e essencial passavam longe delas. Não eram más pessoas, mas a vida vazia de solteironas, sozinhas, em contato com hóspedes sempre em atividades sociais, as conduzia às fofocas, mexericos e intromissões. Entrei em contato com pessoas simpáticas entre os que residiam nos quartos coletivos, alguns de longos anos de permanência, outros por meses somente.

Minha vida social, porém, se ligava aos demais moradores da cidade, fora da pensão. Senhor do Bonfim era habitada por gente simples, comunicativa, acolhedora. O tempo me concentrou junto aos colegas que giravam em torno da loja de discos ou da principal casa noturna. Quando não fincava o pé em frente à loja, especialmente nas manhãs de sábado, eu me encontrava com eles na praça, no bar do canto da praça, na casa de alguém, antes de a maioria se juntar na casa noturna erguida no bairro chique da cidade. Apesar de eu quase nunca dançar, por total falta de interesse e habilidade, o local tornava-se ponto de encontro dos amigos para tomar umas e outras, ouvir música, conversar e rir bastante, paquerar.

As baianas do interior eram perversamente simpáticas e envolventes. Conversava com todas, ia para lá e para cá na companhia delas, dava corda às provocações e brincadeiras. Deixava rolar da maneira mais deliciosa possível, sendo carinhosamente recebido por elas. Não havia cobranças. Queríamos ser felizes. Ciúmes infantis e sentimentos de posse seriam descabidos.

Sei lá como, mas eu me incluía aos mais diversos grupos de pessoas, aterrissando em algum bar, deixando a coisa correr por horas e horas. Apareciam homens e mulheres que jamais vira antes, virávamos íntimos do nada.

Às vezes excedíamos na quantidade de álcool e, de estômago vazio, depois do grupo se dispersar, sobrar eu e mais um ou dois, vagueávamos pelas ruas a procura de algo para matar a fome e tentar reverter o efeito das bebidas. Havia o botequim que servia carne de mocotó, iguaria ideal para rebater a bebedeira. Sentávamos nos bancos do balcão e pedíamos a salvação que vinha em porção generosa, em prato fundo, com caldo, farinha, o ovo frito no topo. Eu mergulhava de cabeça naquela delícia, lambendo os beiços. Suava pelo corpo todo, sentindo o alimento no organismo se contrapondo ao álcool. Era prazeroso demais. Mas não suficiente para quem comia horrores. Insatisfeito, chamava o balconista e pedia outro igual. O garçom, os colegas, os demais clientes do bar paravam o que estavam fazendo e me olhavam estupefatos. É que eu cometia a heresia de repetir aquele prato tão forte e pesado. E sob o calor tórrido do sertão baiano. O garçom ainda me olhava hesitante e esperava a minha confirmação, certo que não viria. Mas minha fome desesperadora exigia a segunda rodada de carne de mocotó, caldo de mocotó, mais farinha, o ovo frito coroando aquela maravilha da culinária sertaneja. Os olhos esbugalhados dos funcionários e frequentadores se mantinham voltados ao meu prato e a mim, incrédulos que um ser humano conseguisse a proeza, ou a ousadia, de comer dois pratos daquele petardo. O suor em cascatas, o calor me queimando do dedão do pé ao fio do cabelo, nada disso me importava, mas sim o prazer de matar a fome, matar o porre, saborear a comida. E jamais me fez mal. Ao contrário, a bebedeira passava e o sono vinha a galope. Despencava na cama da pensão até o início da noite, quando a vida social recomeçaria, a todo vapor.

Dois irmãos paraibanos, residentes em Senhor do Bonfim, ganharam fama pela valentia, ou melhor, pela falta de cérebro e excesso de violência. Andavam sempre armados, desafiavam deus e o mundo, se metiam em brigas, se envolviam em mortes, assassinatos, à faca ou à bala. Aconteceu de um deles, então com trinta e poucos anos, estar com a esposa grávida. O grande herói da mão armada cismou de abandoná-la em casa e aprontar pelas ruas. Passou aqui e ali antes de atracar no puteiro da cidade. Estava lá o sujeito ocupado com a escolhida no quarto quando bateram na porta. Ele saiu da cama e abriu a porta. Nem deu tempo de perguntar nada. O visitante que o procurava descarregou a arma de fogo sobre o corpo do valentão. Morreu ali mesmo, pateticamente nu, no quarto do puteiro, enquanto a mulher, grávida, o esperava em casa.

Os baianos levavam a sério e comemoravam a rigor as festas de Cosme e Damião, em meados de setembro. O caruru com arroz e farofa não faltavam na maioria das casas. Diz a lenda que a cada ano, para se alcançar as graças pretendidas, a quantidade de quiabos usados no caruru deveria ser maior que a das festas passadas. Ano após ano e as casas serviam carurus cada vez maiores. Primeiro serviam as crianças para somente depois liberarem os pratos para os adultos. As portas das casas mantinham-se abertas para as calçadas. Podia-se entrar em qualquer uma delas, conhecendo ou não os moradores. Era só sentar e esperar ser servido. Acontecia de eu passar em frente a uma casa, com a barriga para lá de cheia, não entrar, apenas passar, mas ser chamado lá de dentro para sentar e comer. Às vezes não conseguia me desvencilhar dos convites e fazia mais uma boquinha, mesmo sem fome. A cidade se iluminava e se alegrava. Era a abundância de comida pelas cidades, pelo menos no dia de Cosme e Damião.

A amiga mais próxima e íntima  tornou-se companheira de todas as horas nos fins de semana em Senhor do Bonfim. Ela me apresentou à amiga de Salvador, então a passeio pelo interior do estado. A soteropolitana logo notou em mim parceiro ideal para conversas mais culturais e filosóficas. Não ficamos somente nos debates teóricos à cerca de autores ou correntes de pensamento. A atração recíproca nos conduziu a outros mundos, mais terrenos e imediatos. A empatia surgiu rapidamente e nos entregamos. Mas o fim de semana terminou. Ela foi de volta a Salvador, eu rumo às prospecções minerais no sertão baiano. Passei os fins de semana seguintes na capital baiana, na companhia de minha nova paixão, ou pelo menos o que parecia ser no início. O entusiasmo mútuo, no entanto, não durou muito. A chama se apagou com a mesma rapidez com que se acendera. Apesar de transbordar em charme e simpatia, ela guardava outros planos na linda cabecinha. Casamento. E casamento no curto prazo. Nem queimei a pestana tentando entender as razões. Era tudo o que eu não desejava naquele momento. Situações e opiniões postas à mesa, clareza completa no impasse. Planos inconciliáveis. Prazer em conhecer, foi bom enquanto durou. Votos de felicidades. Fim de papo.

Soube pela amiga que, menos de um ano depois, a soteropolitana se casara e engravidara do primeiro de muitos filhos. E me percorreu forte sensação de alívio.

SALVADOR

Antes e depois da moça casadoira, eu reservava uns fins de semana em Salvador. Afinal queria manter contato com a vida cultural de cidade grande, ir ao cinema, teatro, apresentações musicais, renovar meu estoque de livros, variar minha alimentação, curtir as praias da capital. E cortar meu cabelo. Desde que reparei os barbeiros de Senhor do Bonfim cortarem os cabelos dos fregueses olhando o movimento da rua, conversando com passantes na calçada, raramente voltando os olhos para a cabeça da vítima sentada na cadeira do salão, achei melhor não correr o risco, praticando aquela atividade trimestral em Salvador.

E havia meus colegas da universidade, do mesmo ano de formatura, que moravam e trabalhavam na capital. Ficava sempre no apartamento de um deles. Até tinha cópia da chave, evitando acordá-los quando eu desembarcava na cidade antes do amanhecer do sábado. Eu abria a porta e entrava de mansinho, enquanto corpos masculinos e femininos dormiam abraçados no quarto e na sala, baqueados da noitada da sexta-feira.

Assim que levantavam e tomavam banho frio, decididos a acordar de vez, seguíamos às praias mais atraentes de Salvador, que naqueles anos se concentravam em Pituaçu, Piatã e Placafor. Eu bebia batida de tamarindo, comia acarajé, peixe frito, mergulhava no mar, observava as baianas desfilando pelas areias. O ambiente descontraído com os colegas geólogos, recheado de boas conversas, sérias ou engraçadas, me satisfaziam e me acomodavam naquela irresistível preguiça baiana. Mais descompromissos se seguiam à noite, depois de cochilos reparadores no final da tarde.

Pegava o ônibus de volta a Senhor do Bonfim na noite de domingo e desembarcava sonolento no meio da madrugada de segunda-feira, em tempo de dormir três ou quatro horas no quarto da pensão, antes de me preparar para me dirigir ao sertão pesquisar minério de cromo.

Aconteciam coisas estranhas nos ônibus entre Salvador e Senhor do Bonfim. Viagens noturnas, luzes apagadas, breu total, a maioria dos passageiros dormindo pesado. Algumas, então, se sentiam à vontade para manifestarem os desejos contidos, de realizarem fantasias. Ocorria que a mulher sentada no assento ao meu lado, de quem eu não recebera sequer o cumprimento no embarque, se soltava assim que o veículo penetrava a estrada e a escuridão tomava conta do ambiente. Cada uma revelava estilo próprio, variando na ousadia, afoiteza, delicadeza, carinhos. Faziam uso das mãos, pernas, lábios, ou línguas, combinação de dois ou mais desses recursos. Atacavam e gostavam que as coisas evoluíssem sob o comando delas. Em ritmos bastante diferenciados, roçavam as pernas, passavam as mãos, avançavam sobre o zíper, me puxavam, usavam e abusavam. Jamais falavam, apenas emitiam gemidos, respirando aceleradamente. E continuavam agindo, cada vez mais ousadamente. Tudo muito discreto e sem a intenção de criar mal estar ou bate-bocas no interior do ônibus. Bem antes do destino final, ela retornava à posição original no respectivo assento, às vezes até cochilava, como se nada tivesse acontecido. Nada comentava e nem se despedia no momento do desembarque. Jamais as encontrei novamente. Pelo menos não que as reconhecesse. Não foram em todas as viagens, mesmo porque nem sempre se sentavam mulheres ao meu lado, mas sei que não se tratavam de casos isolados.          
continua...

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